É o ser holístico que convocamos para enfrentar as contingências que a heteronomia nos impôs
Eduardo Bonzatto* e Anaide Carvalho, Pragmatismo Político
Estamos a viver o tempo da soberania heteronômica, em que até mesmo a autonomia e os processos de autonomização se tornaram exteriores aos seres.
Isso só é possível se as formas e modos de submissão se emancipam e erradicam alternativas. Então podemos distribuir o poder de modo generalizado e democrático, pois a emancipação é o modo radical de se submeter, que é o empoderamento.
Importante salientar que o poder é colonial e dominante e todas as suas manifestações são variações assimétricas de sua peculiar historicidade.
Modelo de família, de educação, de trabalho, de direito, de saúde são todos rizomas desse mesmo poder. Assim, o pai, a mãe, o professor, o patrão, o juiz, o médico são as expressões de uma autoridade que agora cede, na aparência, um canto para o empoderamento de mulheres, negros, crianças, dentre outros.
Mas essa sessão em nada altera a dinâmica da dominação, muito ao contrário, a reforça em sua modificação. A hierarquia, a injustiça, agora são acompanhadas da altivez, da arrogância, do cinismo.
Mas isso também implica em que seja esse o melhor momento para se tecer forma mais autônomas de existência, justamente pelo fato de que o sistema já não se importa com seus resíduos e seus descartes humanos, animais, vegetais. Só as minerações de dados importam.
De todas as formas heteronômicas implementadas pelo sistema, queremos aqui enunciar apenas uma: a medicina alopática que caracteriza o modelo intervencionista clínico historicamente determinado, cuja característica fundamental é o diagnóstico e a receita médica.
Afirmar isso é reconhecer que a população foi sendo aclimatada num ambiente em que o médico é intocável. Desde a forma com que escreve as receitas, de modo intraduzível para o paciente, até os discursos sociais das vacinas, o saber médico é a expressão de uma verdadeira divindade intransponível.
Isso criou uma situação social curiosa: com o surgimento de quaisquer transtornos da saúde, o sujeito recorre ao médico para seu socorro.
A medicalização sobre uma condição de doença foi se consolidando e se hegemonizando de modo consistente a partir do surgimento dos sistemas amplos de atendimento.
Anteriormente, em que os atendimentos públicos eram realizados pelas chamadas santa casas de misericórdias, apenas os casos realmente urgentes e graves chegavam aos médicos e enfermeiras. E ainda assim os medicamentos eram irrisórios diante do quadro atual. Eram os anos 1960-1970 e a forma com que as pessoas viviam ainda contemplava benzimentos, chás, emplastros, sinapismos, rezadeiras, dentre outros modos autônomos de lidar com a própria saúde.
Em 1970, apenas 1% do orçamento da União era destinado à saúde, e os cortes orçamentários resultaram na intensificação de doenças como dengue, meningite e malária. Para reverter a situação, o governo criou o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), unindo todos os órgãos previdenciários que funcionavam desde 1930 e melhorando o atendimento médico.
Mas tanto a indústria farmacêutica quanto a própria formação médica no Brasil foram ampliando a dependência que os sujeitos tinham em relação ao poder do discurso médico. Cada vez mais essa forma de dependência retirava do sujeito sua autonomia para resolver no âmbito do lar ou da comunidade as mazelas da saúde, que ia se ampliando também pela complexidade da vida urbana, com uma ampliação das zonas de exclusão, com as conurbações que faziam emergir gigantescos problemas de saneamento, de empobrecimento, de doenças.
Os anos 1980 testemunhou o engrandecimento do sistema de saúde (a Lei Federal n. 8.080, de 1990, regulamenta o Sistema Único de Saúde com o objetivo de identificar e divulgar os condicionantes e determinantes da saúde, formular a política de saúde para promover os campos econômico e social e fazer ações de saúde de promoção, proteção e recuperação, integrando ações assistenciais e preventivas.) e preparou também a gestação da invasão dos sistemas de saúde privados que marcaria o cenário globalizado a partir dos anos 1990.
A grande maioria da população já estava pronta para pedir diagnóstico e medicamento, essa relação pronta e acabada da heteronomia, quando tanto o saber médico quanto a solução são soberanos e as torrentes de pacientes dependentes invadem os sistemas de atendimento.
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O colapso do sistema foi crescente e consistente, mas aí já não se podia culpar os pacientes pela invasão. A cultura criada pela necessidade de diagnóstico e medicamentos onera absurdamente o sistema que reconhece que cerca de 70% dos atendimentos poderiam ser dirimidos se os pacientes resolvessem no âmbito externo suas aflições.
Devido justamente a esse modelo heteronômico assumido pela autoridade médica, o medo passou a ser um componente de desgaste do próprio sistema. Basta entender que os problemas mais relevantes do acesso ao sistema são enfermidades como hipertensão, diabetes e obesidade, todas elas de fácil gestão autônoma sem esse histórico da soberania médica.
O protocolo de Manchester é um tipo de classificação de risco que separa os pacientes em níveis de urgência, necessário justamente para dirimir o inchaço causado pelos problemas de busca que impacta o sistema.
Foi proposto em 1996 e chegou ao Brasil em 2008.
É um sistema de triagem que aponta cinco níveis de urgência.
O primeiro, vermelho, socorro imediato; o segundo nível, laranja, 10 minutos de espera; o terceiro, amarelo, 60 minutos; o quarto, verde, 120 minutos e o quinto, azul, 240 minutos.
Tivemos dificuldade em encontrar estudos que indicassem os percentuais em cada um dos níveis de urgência do protocolo quando se trata do SUS, mas num desses estudos pudemos constatar algumas indicações bem interessantes. Trata-se da dissertação de mestrado de Chistiane Chaves de Souza, GRAU DE CONCORDÂNCIA DA CLASSIFICAÇÃO DE RISCO DE USUÁRIOS ATENDIDOS EM UM PRONTO SOCORRO UTILIZANDO DOIS DIFERENTES PROTOCOLOS (BH, 2009).
Primeiro uma grande concentração de pacientes jovens entre 20 e 49 anos (63%), além do fato de que a maioria é de mulheres (53%).
Infere-se que o percentual de ida aos diferentes lugares de tratamento da saúde, incluindo aqui os públicos e os privados, que poderia ser resolvido no âmbito autônomo chegue a 70%.
Claro está que esse processo que se agudiza no mundo neoliberal teve consequências. A proletarização na formação médica de um lado e a precarização na nova realidade do trabalho impuseram pelo menos dois movimentos nada surpreendentes. De um lado, o crescimento vertiginoso da automedicação numa população exausta da indiferença dos médicos, mas também devido à nova prática de consulta à rede virtual de informações que se tornou um oráculo devotado a cada vez mais abrangente potencialidade vital; de outro, uma reação cada vez maior contra as vacinas, que com o covid e a ânsia por vacinação nesse caso, pode ou não ser revertida.
Em seu livro Nêmesis da Medicina, Ivan Ilich informa que:
“Ao colonizar uma cultura tradicional, a civilização moderna transforma a experiência da dor, tornando-as sinais de alarme, que apelam para uma intervenção exterior, a fim de interrompê-las. Se, por um lado, a medicina engaja-se na redução do sofrimento, por outro, aumenta a dependência por ela própria. A dor, quando assumida como responsabilidade da vida do homem, torna-se experiência pessoal, enfrentada de maneira autônoma, e não mecânica e constrangedora; experiência cotidiana e comum, pessoal e social, e não artificial e individualista. O sofrimento pode evocar o dever, a separação, a oração, a lamentação, a piedade, a raiva. A cultura estimula a capacidade individual para continuar a viver com a presença ou a ameaça da dor. No entanto, atualmente a dor faz nascer um processo em bola de neve: o indivíduo aprende a ser consumidor de anestesias e se lança à procura de tratamentos que provocam insensibilidade, inconsciência e apatia” (ILLICH, 1975).
A busca por formas autônomas do enfrentamento de doenças pode não só aliviar a pressão sobre os sistemas institucionais de intervenção como, e principalmente, significar o resgate de uma vida boa, que acontece quando os seres recuperam sua dignidade diante de um sistema que é por princípio desigual, desumano e desprezível.
“A maioria das doenças que temos hoje em dia podem ser diagnosticadas e tratadas por pessoas comuns. Para a maioria essa declaração é muito difícil de ser aceita, porque a complexidade do ritual médico lhes ocultou a simplicidade de seus próprios instrumentos básicos...” – Ivan Illich.
Os termos aqui empregados foram gerados todos a partir do princípio de que o enfermo possa cumprir seu encontro com sua liberdade.
Sozo (do hebraico, cura, libertação), therapeia (do grego, cura), epoulossi (cicatriz), helian (do germânico, fazer-se inteiro) são evidências de que a fábula do cuidado não precisa cumprir seus protocolos.
“Certa vez, atravessando um rio, Cuidado viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter. O Cuidado pediu-lhe que desse espírito à forma de argila, o que ele fez de bom grado. Como Cuidado quis então dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter o proibiu e exigiu que fosse dado ao invés disso, seu próprio nome. Enquanto Cuidado e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra (Tellus) reivindicando que o nome fosse o seu, uma vez que havia fornecido um pedaço do seu corpo. Os disputantes resolveram então, tomar Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente equitativa: ‘Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como porém foi o Cuidado quem primeiro o formou, ele deve pertencer ao Cuidado enquanto viver.” (https://www.blogs.unicamp.br/eccemedicus/2013/04/27/dek-a-cura/)
Queremos aqui indicar caminhos e possibilidades para que o humano possa se reconciliar consigo e com sua plenitude; o que acontece quando sua falsa soberania diante de todas as outras formas de vida é questionada e ele se volta para dentro dos fluxos vitais.
É o ser holístico que convocamos para enfrentar as contingências que a heteronomia nos impôs.
Esse ser integral, é bom que se diga, não é o indivíduo que se isola da vida e a preda, mas está ligado à comunidade ampla que o envolve, em níveis corpóreos, sentimentais e espirituais, ou seja, a todas as formas de vida e suas manifestações mais sutis.
*Anaide Carvalho é alquimista e professora *Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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