Mercado

Humanização, mercado de quadrinhos e servidão voluntária dos youtubers

Share

Num tempo em que tudo se transforma em produto, o que, respeitadas as distâncias diversas, tudo que é sólido desmancha no ar, em que a separação entre as palavras e as coisas desapareceu completamente e objetos macaqueiam para objetos tremulando objetos, humanizar é uma necessidade ainda mais virtuosa, humanos conversando com humanos

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

As bancas de revistas tiveram seu tempo na história da cidade. Era um lugar de encontro com a cultura de massa e os frequentadores reconheciam no jornaleiro um amigo. Não íntimo, mas que gentilmente sabia do nosso desejo e daquilo que a gente procurava ali. Isso é muita coisa, quando seres humanos se encontram!

Foi ali que tive na infância meu contato com a representação do sexo nos catecismos de Zéfiro, com as histórias em quadrinhos e também com a cultura mais considerada dos livros.

O jornaleiro, como parte e para além de seu ofício, mantinha conosco um elo de confiança e respeito. Por muitos anos convivi nas bancas e as de minha preferência, por conta do que continham e do jornaleiro, frequentei semanalmente como se fosse à missa. Por vezes ia só pra conversar. Foi assim que os quadrinhos assumiram uma importância na minha vida.

Acompanhei os diversos momentos da inconstância do mercado editorial até que a banca que frequentava todo final de semana se transformou numa loja especializada em quadrinhos. Os donos eram expatriados de Angola com a guerra civil e cresceram nessa mudança.

A mudança tinha um quê de incômodo para mim, pois os donos que estavam sempre na banca tiveram naturalmente que contratar empregados no novo ambiente de negócio. E a impessoalidade apareceu logo. Assim como aumentaram exponencialmente as ofertas de produtos. Parecia uma troca justa essa. A própria nomenclatura se alterava. Banca virou negócio e gibi virou produto.

Era parte já do fenômeno da globalização e a aceleração não demorou até que as próprias lojas especializadas tivessem que enfrentar também os seus limites.

As gigantescas lojas virtuais provocaram um duplo fenômeno nessa história. Condenaram as relações pessoais para o entulho da história e fizeram surgir os servidores voluntários do ego.

Com as relações virtuais, canais do you tube coalharam de ofertas especializadas: gente que viu a hora de servir ao mercado e não mais aos humanos.

E a servidão tinha múltiplos presentes. O jabá das editoras, a exaltação do ego especializado, as vezes a arrogância acadêmica de balconistas que se mostram superiores aos vendedores de porta em porta oferecendo enciclopédias, a submissão incondicional aos likes.

A servidão voluntária é um fenômeno antigo na cultura colonial. É uma mimese, uma imitação que procura se apresentar como diferença e por tantas vezes invade a vida dos demais como solução para pequenos delírios. Mas em todos os casos o que está na frente é o servir ao poder.

Confesso que assisto essas coisas por duas razões. Acho que os quadrinhos se tornaram um mistério por sua variedade e diversidade e para receber a indignidade dos vendedores voluntários como um alerta.

Identifico três tipos básicos de servidores: os que vendem gibis exaltando suas qualidades; os que se julgam academicamente superiores e vendem gibis academicamente superiores; e aqueles que se divertem exibindo sua cultura ordinária.

Tratarei aqui de cada um como um órfão da velha cultura do jornaleiro cuja substituição esse tempo de indignidades ostenta sem pudor.

O primeiro caso é mais imediato. O servidor voluntário do poder adora super heróis e se vincula permanentemente aos emissários das duas editoras americanas como um simbionte. Quer aumentar sua coleção de joias editoriais servindo de garoto propaganda risonho diante das ofertas recebidas. É um emprego o que quer, mas sem horário ou lugares marcados. Sonha viver disso como se o emprego de vendedor fosse algo novo e promissor. Os likes são seu alimento e seu salário e está sempre atento às variações de humor de seu público alvo.

Vigia cada gesto seu para acompanhar em tempo real as reações do usuário. Deve funcionar, pois as empresas enviam constantemente novos produtos para que esses servos os exaltem. A alegria que emitem é genuína pois imaginam que trabalham para si. Se sentem privilegiados diante de um mundo em que o trabalho já expirou sua validade e agora cada qual deve inventar o seu. Supõem que o seu é mais divertido, pelo menos.

A rigor, sabem ler quadrinhos e demonstram isso em seus programas. Não tornam sofisticadas as análises que se mantém na superfície do roteiro e da arte. Fazem breves resenhas, exaltam o momento da chegada dos produtos, gritam como infantes nos natais do passado e dão verdadeiros pulos com os lançamentos mais aguardados.

Leia aqui todos os textos de Eduardo Bonzatto

O ego infantil é seu atestado de vínculo e servidão, pois com a exaltação dos quadrinhos imaginam exaltarem as suas próprias e peculiares qualidades culturais.

Produzem muito, pois não podem imaginar que os usuários descansem dos assédios. Como os demais tipos, procuram a intimidade de seus ouvintes revelando passagens de suas vidas pessoais, suas angústias, a perda de um ente querido. Querem se tornar familiar à assistência.

O segundo tipo é mais pretensioso. Se coloca como vindo da academia e deixa sempre explicita sua produção. Nutre um claro desprezo por seus concorrentes e sempre que pode desdenha os consumidores. Assim pode exaltar sua própria cultura superior escolhendo a qualidade que apenas alguns parecem se identificar. Geralmente é professor universitário e orienta trabalho desse tipo de análise e isso parece garantir que suas próprias análises sejam validadas por sua prática doutoral. Esse diz que nunca está interessado no jabá e é chamado para fazer prefácios de lançamentos mais cultos.

Mas suas caretas e bocas não deixam dúvidas do seu ego infantilizado. Afinal, a fogueira das vaidades acadêmicas lhe é familiar e no universo nerd ninguém pode se ausentar. É um dominador do mercado dos servidores voluntários, pois acredita que ninguém lhe faz concorrência.

Eventualmente trás análises de obras em línguas diversas, numa clara exaltação de sua condição poliglota.
Não passa de mais um vendedor, mas se vê como um analista. No final das contas só quer os likes que comemora infantilmente. Geralmente pede colaboração em dinheiro para manter seus canais sofisticados com a promessa de que aumentam a cultura geral da assistência. Vendem significados junto com os quadrinhos. Repete com os demais o mesmo mantra “recomendo fortemente que você adquira esse quadrinho”.

Também têm aqueles que transformaram seus canais de youtube em editoras, mas esses não merecem crítica, pois sua atividade mercantil lhes garante um lugar cujo oportunismo deve ser reconhecido e louvado. Abandonaram a condição de meros reprodutores e se tornaram produtores de objetos. São prossumidores que produzem o que consomem. Nem podem ser considerados como um tipo a parte.

O último caso é mais complexo, pois ao contrário do primeiro tipo que apenas se apresenta como um repetidor, ou do segundo tipo, que exalta o próprio umbigo intelectual numa sala de edição, esse terceiro tipo é realmente mais sofisticado e mais divertido.

Quero deter nele algumas considerações que podem inclusive auxiliar os demais servidores do poder num caminho mais autônomo e menos indigno.

Nunca opera sozinho em suas apresentações. Essa é uma questão fundamental quando se pretende analisar qualquer coisa. A complexidade das parcerias amplifica os olhares e também as perspectivas de análise. Aqui estou considerando um canal muito especificamente, o formiga elétrica.

São parceiros cujo tipo de inteligência é tão abrangente que as conexões surpreendem sempre. Não é uma cultura segmentar, mas operam com literatura, cinema, publicidade, história, numa grande abertura que funciona como um atestado de reflexão verdadeiramente interessante e não raras vezes intrigante.

Combinam cultura geral com implicações diversas que formam uma teia de referências sem que em nenhum momento transpareça arrogância intelectual. E seus participantes possuem uma qualidade cultural realmente incomum. Isso lhes permite uma abordagem mais meticulosa e ao mesmo tempo mais original sobre as obras.

Num tempo em que tudo se transforma em produto, o que, respeitadas as distâncias diversas, tudo que é sólido desmancha no ar, em que a separação entre as palavras e as coisas desapareceu completamente e objetos macaqueiam para objetos tremulando objetos, humanizar é uma necessidade ainda mais virtuosa, humanos conversando com humanos. O respeito à inteligência se tornou uma virtude.

Os outros tipos só reduzem e a redução é a prova de sua imprudência ou incapacidade. O desejo pelos likes inibe a inteligência porque trata todo mundo como o mesmo. Num mundo de objetos telefalantes, ter a jovialidade de um nerd indiscreto ou a antiguidade de um professor que insiste em qualificar melhor o debate é da mesma natureza dos objetos.

Recusar essas facilidades faz com que não decaiam para o buraco indigno dos vendedores voluntários com suas vestimentas coloridas nem para o buraco ridículo dos vaidosos, mas tecem redes complexas para que os expectadores possam escolher alternativas compreensivas. E o melhor: esses caras se divertem verdadeiramente, não apenas gritam com a exaltação uniforme dos egos. Encontraram um lugar de reconhecimento sem assedio, sem bobagens, sem indignidade, de tal sorte que quando termina você se sente bem de ter assistido.

Não se sentir acossado por vendedores abusivos ou imbecilizado por vendedores metidos é uma coisa nesse tempo de disputas renhidas. Mas principalmente, poder assistir a um programa sem sentir vontade de comprar um produto é o mais importante sintoma de que as emissões têm outros princípios. Afinal, não resta muito de dignidade que a gente possa reconhecer num tempo como esse.

Na falta do jornaleiro, alguém que não me desrespeite e em quem eu possa confiar é já um alento.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e escritor

Siga-nos no Instagram|Twitter | Facebook