Livro imagina o que aconteceria se Bush fosse julgado por mortes na Guerra do Iraque
No livro, Bush é capturado enquanto jogava golfe na Escócia e levado para uma cela em Haia. Os EUA tentam invadir a corte para resgatá-lo, sem sucesso, e o julgamento começa. Obra busca lembrar que nenhum líder dos EUA foi processado por milhares de assassinatos no exterior
Rafael Balago, FolhaPress
Como presidente dos EUA, George W. Bush ordenou a invasão do Iraque em 2003 sob o argumento de que o país teria armas de destruição em massa. Elas nunca foram encontradas, mas Bush não foi responsabilizado por isso: conseguiu se reeleger em 2004 e vive hoje, aos 75 anos, uma tranquila rotina de ex-presidente.
O escritor Terry Jastrow buscou imaginar o que aconteceria se o ex-líder americano fosse julgado em um tribunal pelos erros e consequências daquela guerra, que gerou centenas de milhares de mortos.
Um levantamento da agência de notícias Associated Press apontou ao menos 110 mil óbitos, mas outras entidades dizem que o número total pode ser bem maior, pois os anos de caos econômico e social que se seguiram dificultaram muito a vida no Iraque, causando, ainda que indiretamente, outros milhares de mortes.
No livro “The Trial of George W. Bush” (o julgamento de George W. Bush, em tradução livre), lançado nos EUA, Jastrow mistura realidade e ficção para debater como seria esse julgamento. No enredo, o americano é capturado enquanto jogava golfe na Escócia e levado para uma cela em Haia, na Holanda, sede do Tribunal Penal Internacional (TPI).
Os EUA tentam invadir a corte para resgatá-lo, sem sucesso, e o julgamento começa, com espaço para que acusação e defesa exponham seus argumentos.
Na narrativa de Jastrow, os advogados de Bush primeiro tentam desacreditar o TPI ao alegar que cidadãos dos EUA não podem ser julgados ali porque o país não reconhece sua autoridade. Washington se retirou do Estatuto de Roma, de 1998, que abriu caminho para a instalação do tribunal, em 2002.
A defesa do ex-presidente também alega que ele fez a guerra com o objetivo de proteger os cidadãos americanos e aliados do país, como Israel. Segundo os advogados, essa seria a missão principal de Bush como presidente dos EUA, um dever pelo qual ele não poderia ser punido.
Os defensores argumentam ainda que as perdas de vidas durante o conflito foram tristes, mas justificáveis frente ao objetivo maior de tornar o mundo mais seguro.
Já a acusação diz que, embora Saddam Hussein (1937-2006) fosse um ditador, não houve provas de que ele teria ligação com os terroristas por trás dos ataques de 11 de setembro de 2001, e que relatórios da própria inteligência dos EUA apontavam que o Iraque não representava uma ameaça.
Os promotores destacam que a invasão americana levou o país no Oriente Médio a anos de instabilidade, com inúmeras mortes de civis, inclusive por patrulhas dos EUA, além das cenas de humilhação e tortura, como as que ocorreram na prisão de Abu Ghraib, a que iraquianos foram submetidos.
Na obra, Jastrow vai intercalando os argumentos como em um jogo, enquanto relembra os detalhes da invasão do Iraque e explica o funcionamento do TPI. Apesar do tom de imparcialidade, o autor deixa claro que defende a responsabilização de Bush pelo que ocorreu no Iraque, e considera que isso ajudaria a evitar guerras futuras.
“Quando a Guerra do Vietnã estava no auge, no fim dos anos 1960, eu era um adolescente e pensava que os EUA nunca deveriam ter participado dela“, conta Jastrow à Folha.
“Depois que Bush travou sua guerra contra o Iraque, que matou centenas de milhares de pessoas e custou trilhões de dólares, eu pensei ‘o que poderia parar esta loucura?’. E escrevi o livro.”
Jastrow, 73, fez uma primeira versão da obra em 2007 e conseguiu publicar o material neste ano, pela editora Square One. Ele fez carreira na TV e atuou por décadas como produtor e diretor de transmissão de grandes eventos.
Em seu currículo está, por exemplo, a cerimônia de abertura das Olimpíadas de 1984, em Los Angeles. Nos últimos anos, passou a escrever livros. Seu estilo, direto e focado nos diálogos, dá ao leitor a sensação de estar assistindo a um clássico filme de julgamento.
“Se um líder de uma potência suspeito de crimes de guerra é preso e levado a julgamento, muitas outras prisões e julgamentos viriam em seguida“, diz. Ele lembra que, até hoje, o TPI julgou apenas ditadores de países africanos e da região dos Bálcãs.
O autor fez uma ampla pesquisa sobre as regras do Tribunal de Haia, mas afirma não saber avaliar se líderes nacionais poderão ser processados no futuro pelas mortes causadas pela má gestão da crise da Covid.
“Não sei responder se as regras definidas pelo TPI, muitas delas pensadas para crimes de guerra, poderiam ser aplicadas a uma pandemia. Mas é uma questão interessante“.
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, foi denunciado ao TPI pela acusação de crimes contra a humanidade e incitação ao genocídio contra povos indígenas, em 2019, e há um debate se as acusações de que erros na gestão da pandemia, como defender medicamentos comprovadamente ineficazes contra a Covid-19, podem gerar uma nova acusação contra ele na corte internacional.
Ainda que não haja um processo contra o líder brasileiro agora, porém, ações contra ele ou contra outras liderenças no futuro não estão descartadas.
“A lei criminal internacional não tem prescrição. Isso significa que uma pessoa suspeita de um crime é passível de responsabilização até o dia em que morrer“, explica Jastrow.
“George W. Bush tem 75 anos agora. Vamos dizer que ele viva mais 10 ou 15 anos. Ele ainda estará sujeito a ser preso e levado a julgamento em Haia. Então, ele não é um homem livre, e está sujeito a ser julgado e preso pelo resto de sua vida.”