Política

‘Projetos nacionais’ e suas condicionantes políticas

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Há papel dos EUA em cada uma das rupturas de governos democráticos com projetos nacionalistas – Vargas, Goulart e Dilma –, contando com aliados nas elites locais e sua narrativa ‘liberal-conservadora’

Imagem: Marcello Casal Jr | ABr

Marco Aurélio Cabral Pinto*, Brasil Debate

O objetivo do presente artigo é reagir ao desafio proposto pelos professores R. Bielschowsky (CEPAL/UFRJ) e C. Medeiros (UFRJ), em recente encontro da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP), realizado na Universidade Federal Fluminense (UFF), em junho de 2018.

Em consenso, identificou-se o esforço de elaboração de “projetos nacionais” como insuficiente para a retomada do desenvolvimento na conjuntura. Torna-se necessário também conhecer as condições políticas para implementação.

O imperativo de síntese limita o presente trabalho a alguns poucos aspectos, no nível de complexidade compatível com a elaboração de políticas públicas.

A questão que se perseguiu foi: quais as restrições impostas pela política para desenho de “projetos nacionais” para o Brasil na conjuntura? Espera-se argumentar que um entre os muitos condicionantes é a natureza dos interesses que ocupam o núcleo de poder no Estado norte-americano, o qual reúne credenciais como dominador externo.

1. A posição dos brasileiros na hierarquia internacional é percebida, a partir da lógica dos diferentes dominadores, como necessariamente periférica.

Para a coalizão novecentista liderada por banqueiros, latifundiários e detentores de grandes riquezas, o Brasil será levado a se consolidar internacionalmente como fazenda exportadora de alimentos e minérios. Para os porta-vozes destes interesses, não há necessidade de se desenvolver indústria, ao contrário. Alega-se que “grupos populistas” enganam a sociedade com promessas falsas para promover “corrupção e favorecimento”. Assim, defendem a “diminuição” do Estado como vacina contra “a ineficiência”.

Após a República observou-se no Brasil ascensão de grupos industriais associados a firmas sediadas no eixo EUA-Europa, participantes das cadeias de produtos manufaturados. Os grupos industriais locais foram progressivamente mobilizados em setores de máquinas, fármacos, automotivo etc.

No Brasil após 1990, a perda de importância da indústria na atividade econômica (PIB) acompanhou o processo de desnacionalização do capital. Este duplo movimento teve nos governos do PT continuidade, explicada pela manutenção de juros reais elevados e câmbio artificialmente valorizado. Ou seja, setores industriais com até então elevada participação de capital nacional se reorganizaram como divisões de empresas “globais”. Ou, mais frequentemente, terminaram atividades.

Com isso, nos últimos 25 anos os EUA (corporações+Estado) afirmaram a condição do Brasil como entreposto industrial para a América do Sul. Entreposto limitado a esforços permanentes de modernização tecnológica, usualmente com recursos públicos locais subsidiados. À engenharia local, com honrosas exceções, coube a tarefa de “tropicalizar” produtos e processos concebidos no eixo liderado pelos EUA.

O imperativo de desenvolvimento de infraestrutura logística e energética para fazer frente ao esforço de industrialização requereu imobilização de massas de recursos públicos. Como associados ao esforço de industrialização, grupos de construção civil pesada nacionais orientaram as estatais privadas em contínuo esforço de superação de distâncias e tamanhos requeridos para investimentos.

Em síntese, entre 1930 e 1990 e, depois, entre 2003 e 2014, foram os grupos de construção civil pesada que impulsionaram os eixos de desenvolvimento territoriais, beneficiando-se de crescimento industrial motorizado a partir dos EUA.

Por esta razão, os recentes (porém recorrentes) ataques contra a Eletrobrás e a Petrobrás, a destruição das firmas de engenharia de construção civil pesada e, sem esquecer, a venda de controle acionário da Embraer para a Boeing, reforçam evidências de que o capital industrial “nacional” encontra-se em curso de extinção forçada no século 21.

2. O Estado é uma organização única, cuja ocupação de postos se dá a partir de acordos estabelecidos entre interesses privados, externos ao Estado. Participam interesses “nacionais” e “internacionais”, tanto quanto “industriais” ou “financeiros”.

Quanto maior a crise político-econômica em dado país, maior a dificuldade na formação de pactos políticos intra e intersetoriais. No nível mais elevado do complexo jogo de formação de pactos políticos encontram-se interesses até certo ponto contraditórios, entre finanças e indústria.

Naturalmente que há muitas representações políticas no Estado, incluindo-se aquelas comprometidas com minorias sociais, sindicatos, associações etc. No entanto, assume-se que estas representações sociais mais amplas, fora dos circuitos de acumulação de capital, pouco participam dos jogos organizacionais que culminam na ocupação do núcleo do poder público.

Há também a burocracia pública, em cujas subculturas organizacionais se dá o que realmente importa – a forma como ocorre (para quem, como, onde etc) a prestação dos serviços públicos. No entanto, o poder auferido aos cargos comissionados é suficiente para impor, em curto ou médio prazo, ações programáticas legitimadas nas urnas.

No capitalismo, a lógica de acumulação circular de poder-dinheiro impõe às corporações permanente embate pela ocupação do Estado. Com isso, as firmas se organizam segundo esferas de acumulação – a economia real, ligada à sobrevivência física (produção e consumo); e a economia virtual, cuja acumulação depende de atração crescente de recursos provenientes da economia real para os mercados de capitais.

Na metrópole norte-americana, os grupos “nacionais”, “financeiros” e “industriais”, disputam historicamente espaço na ocupação do Estado. É disso que se trata a essência da alternância de poder nos EUA. Alternância na ocupação de postos públicos por grupos organizados segundo interesses industriais e financeiros nacionais norte-americanos. Lembra-se que este pacto político resultou de uma guerra civil sem precedentes na história.

O que merece destaque na presente síntese é que o projeto desenvolvimentista proposto pelo PT em 1989 só obteve condições políticas para implementação 12 anos depois (2003), após consagrado o retorno do grupo industrial norte-americano (2000) ao poder e após encerrado longo ciclo dominado por banqueiros (1980-2000).

3. Tentativas coordenadas de implementação de políticas públicas que conflitem com acordos celebrados pelas corporações internacionais na montagem do pacto político brasileiro têm sido interrompidas com suspensão dos direitos democráticos. Ou seja, quando elites brasileiras amparam ações de Estado que conflitem com acordos celebrados na metrópole, historicamente prevaleceram os acordos celebrados na metrópole.

Isto é, até certo ponto, o que ocorreu no encerramento dos governos democráticos com “projetos” nacionalistas de G. Vargas (1954), J. Goulart (1964) e D. Rousseff (2014/15). O papel dos EUA em cada uma das rupturas se concentrou em serviços de inteligência e treinamento de agentes brasileiros, contando-se com aliados nas elites locais para “contenção” de danos na operacionalização.

Estes aliados, distribuídos pela vida pública brasileira, respondem frequentemente a narrativas liberais, porém com moral conservadora. Por esta razão, não se deve diminuir a força do pensamento liberal-conservador no Brasil a qualquer tempo. É por meio da narrativa liberal-conservadora que se destroem ou restabelecem pactos políticos.

4. Considerações finais

– Para os banqueiros internacionais o Brasil deve se especializar como fazenda produtora de alimentos e minérios; para os oligopólios no eixo EUA-UE-Japão, o Brasil deve subsidiar a montagem de entreposto industrial para a América do Sul;

– Na montagem do pacto político nos EUA concorrem interesses em parte conflitantes, industriais e financeiros. O golpe de 2015/16 foi planejado e executado durante gestão democrata/altas finanças. Já o governo D. Trump atua em favor de políticas que favorecem gastos em infraestrutura e tecnologia, aproximando-se do núcleo industrial norte-americano;

– Como forma de arbitrar conflitos entre atores externos na montagem do pacto político brasileiro, os grupos nacionais que protagonizaram o “projeto” nos últimos anos devem ser readmitidos no topo da hierarquia decisória.

– Como contrapartida, parte da agenda implementada pelas altas finanças nas sombras do golpe de 2015/16 não deveria ser revista, incluindo-se reforma trabalhista, saques do BNDES ou Lei das Estatais. Naturalmente que se deve esperar anistia equivalente para o PT e o ex-presidente Lula.

– O(a) próximo(a) presidente da República terá como missão reconstruir o pacto político em bases duradouras. Para isso, deverá atuar junto às oligarquias regionais (Estados) para equacionar as dívidas de maneira a recuperar a capacidade de investimento.

Em síntese, os formuladores devem levar em consideração que nos EUA há condições favoráveis para implementação de projeto industrializante, condicionado à capacidade de resistência, por parte dos grupos industriais/construção civil nacionais e das elites regionais, em ceder espaços políticos para agendas liberalizantes.

*Marco Aurélio Cabral Pinto é professor da Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense, mestre em administração de empresas pelo COPPEAD/UFRJ, doutor em economia pelo IE/UFRJ. Engenheiro no BNDES e Conselheiro na central sindical CNTU.

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