De braços abertos para o crime: narcotraficante com conexões no PCC ganhou 18 autorizações para garimpar no governo Bolsonaro
Lúcio de Catro, Sportlight
“Brasil, uma mina de oportunidades”.
Ninguém fez valer o slogan do governo Bolsonaro para a política de mineração mais do que os narcotraficantes.
Incentivados pela sistemática liberação de garimpo em áreas protegidas, pelos ataques aos órgãos e funcionários ligados a repressão e fiscalização de ilegalidades, e por leis que regulamentam a extração em terras indígenas e unidades de conservação, criminosos se lançaram em uma corrida do ouro desde a posse do atual presidente. Além da própria obtenção do metal, a atuação no ramo abre amplas possibilidades para a lavagem de dinheiro obtido com o tráfico de drogas.
A “Operação Narcos Gold”, realizada pela polícia federal no último dia 4 e que tinha como um dos pilares o mandado de prisão preventiva de Heverton Soares Oliveira, o “Grota” ou “Garimpeiro”, foragido, reforça o que é fato conhecido por quem acompanha o setor de mineração: a presença efetiva de líderes do narcotráfico ligados a grandes organizações criminosas como beneficiários de autorizações para garimpar no atual governo.
A Agência Sportlight pesquisou e constatou que, durante o governo Bolsonaro, “Grota” obteve 18 “permissões de lavras garimpeiras”. Todas com protocolo de entrada em 19 de setembro de 2019.
Tanto as datas de entrada como as de autorização definitiva fazem mais sentido se analisadas em perspectiva geral. Associadas ao discurso e a prática das ações do governo Bolsonaro no setor, permitem que se forme o quebra-cabeças que compõe o chamado “narcogarimpo”.
Foi no mesmo setembro de 2019 que Bolsonaro lançou o “Programa Mineração e Desenvolvimento” e as bases para o que sempre defendeu em seus discursos: o vale-tudo no garimpo. No papel e em tese, o novo código criava e ampliava oportunidades para a atividade minerária regular. A maior delas, regulamentar a mineração em terras indígenas, proposta por meio de projeto de lei (191), foi encaminhada ao congresso em fevereiro seguinte. E lançou as bases para remover mais um obstáculo para a mineração em áreas protegidas, com a liberação do garimpo nas florestas nacionais.
As relações entre o calendário das permissões do narcotraficante Heverton Soares Oliveira e a agenda do governo Bolsonaro não param na data de protocolo de entrada, em 19/9/2020.
O passo fundamental para a autorização de pedidos protocolados como os de Heverton foi dado no dia 5 de novembro de 2020. Na audiência em que recebeu lideranças do garimpo no Planalto, Bolsonaro prometeu e ameaçou retirar o papel de entidade responsável por analisar e emitir a permissão de lavra da Agência Nacional de Mineração (ANM), transferindo a missão para o Ministério de Minas e Energia. Mais diretamente sob o seu guarda-chuva e sem a ingerência de órgãos técnicos com mais funcionários de carreira, as permissões teriam maior celeridade e quantidade. E menos controle. O presidente afirmou na cerimônia:
“Pegaram a legislação da lavra dos garimpeiros e jogaram para agência de mineral. Lá é que decidem essas questões, mas dá para eu voltar o ministério isso aí. Conversei com o ministro Bento Albuquerque, das minas e energia hoje para nós decidirmos. Se deixar para o lado de lá, a gente não sabe, complica”, disse o presidente.
A ameaça e encostada na parede foi o suficiente para um festival imediato de liberações por parte da ANM. E Heverton Soares entrou no pacote. No dia 17 de novembro, menos de duas semanas depois do ultimato de Bolsonaro, “Grota” recebeu 4 autorizações definitivas entre os seus 18 pedidos. Dois dias depois, dia 19, o sinal verde para mais 13 autorizações. E por fim, em 24 de fevereiro, ganhou o último selo, completando o ok para as 18 solicitações.
Na mesma semana em que recebeu as permissões definitivas, “Grota” efetivou a compra do avião Cessna monomotor, transferido para seu nome em 24 de novembro de 2020, de acordo com consulta da reportagem aos registros aeronáuticos. Com esse avião, realizava o transporte das drogas, segundo a denúncia. O avião foi apreendido na “Operação Narcos Gold”.
Todas as autorizações de mineração obtidas por Heverton Soares são para garimpar em Itaituba, oeste do Pará. É nesse pedaço do norte do Brasil que “Grota”, de acordo com a polícia federal, mantém fazendas, haras, pistas de pouso, empresas de maquinário de extração mineral e peças de carro. Toda uma estrutura para, na verdade, movimentar seu negócio-fim: o tráfico de drogas. Além de uma vida de ostentações, festas e promoção de eventos.
Com essa ampla rede de fachada, a investigação estima que movimente mais de R$ 30 milhões mensais obtidos através do tráfico de drogas. Dono de um prontuário de crimes rico e espalhado pelo Brasil, com processos na justiça do Maranhão, Rondônia e São Paulo por tráfico de drogas, organização criminosa, lavagem de dinheiro e homicídio, mesmo assim recebeu da ANM as permissões de lavras garimpeira.
As conexões criminosas do dono das 18 concessões vão além. Analisando os processos em que “Grota” aparece, a reportagem encontrou citações e denúncias de ligação com a facção criminosa que domina o crime organizado de São Paulo e se expande pelo país, o PCC. Uma denúncia do Ministério Público do Maranhão (MPE), relata que Heverton é o líder de organização criminosa e que ela opera com o PCC:
“A organização criminosa tem atuação interestadual e internacional, estruturada de modo estável e sofisticado, com elevada quantidade de armamentos e recursos, e seguindo relatórios de inteligência das Secretarias de Segurança dos Estados do Pará e Maranhão, é responsável pela realização de assaltos a agências financeiras e transportadoras de valores, nessas unidades da federação, além de integrarem e de realizarem o comércio/tráfico internacional de drogas, mantendo conexões com outras organizações criminosas como o PCC, segundo informes policiais”.
A mesma denúncia não tem dúvida em apontar o garimpo como meio de fachada para a lavagem de dinheiro obtida com o tráfico de drogas.
“O transporte das drogas era realizado por meio de aviões que partiam de outros estados até o oeste do Pará. Nesta região era feita a distribuição dos entorpecentes para outras unidades da federação… foi verificado ainda que o grupo utilizava garimpos de ouro como base para pousos e decolagens no transporte de drogas e, também, como fachada para lavagem de dinheiro”.
Permissões para “grota” não são ato isolado. Outros envolvidos com o narcotráfico já foram beneficiados no governo Bolsonaro
As 18 permissões de lavra garimpeira para um narcotraficante como “Grota” no governo Bolsonaro não são ato isolado.
Em 14 de dezembro de 2020, outra reportagem da Agência Sportlight, mostrou que Silvio Berri Junior, preso na “Operação Enterprise”, realizada em 23 de novembro de 2020, recebeu, em 3 de outubro de 2019, 10 permissões para extração de ouro e cassiterita em Jacareacanga, sudoeste do Pará. Coração do triângulo que se completa com Itaituba e Novo Progresso e onde está uma parte do território dos Munduruku, da antiga Reserva Garimpeira do Tapajós e de outras unidades de conservação federal.
Comparsa do lendário bandido “Uê” ganhou permissões de lavra no atual governo
Silvio Berri foi apontado como um dos líderes de outro quadrilha de narcogarimpo e “coordenador das atividades de transporte aéreo de carregamento de cocaína” dessa organização. Sua folha corrida no crime incluía ser o braço direito do lendário bandido da facção criminosa Comando Vermelho, Ernaldo Pinto Medeiros, o “Uê”. Mesmo assim, não teve dificuldades para também receber suas permissões.
A partilha de garimpos amazônicos para o narcotráfico no governo Bolsonaro não fica em pessoas físicas como Heverton Soares e Silvio Berri. Na recente “Operação “Narcos Gold”, o juiz Alexandre Rizzi, à frente do caso na 1ª Vara Penal de Santarém, também determinou busca e apreensão em 10 empresas, de acordo com o juiz, “envolvidas no negócio”.
Entre essas 10 empresas, 3 são de Heverton Soares: a Vale do Ouro Serviços Agropecuários Ltda, a Stilo Sound Acessórios Automotivos Ltda e a Mineração Vale do Ouro. E uma outra, de acordo com o processo, seria uma cooperativa de garimpeiros com sede em Itaituba, a Cooperativa dos Garimpeiros Mineradores e Produtores de Ouro do Tapajós, a Coopouro.
A reportagem constatou que no dia 19 de março de 2021, a Coopouro entrou com 27 pedidos de permissão de lavra garimpeira junto a ANM. Os processos ainda estão correndo.
Outro lado:
*Nota da reportagem: depois de quatro dias após o envio do pedido de “outro lado”, após a publicação, a ANM enviou resposta na terça-feira, 16/11, às 17h55. Segue:
“Com relação à sua demanda, informo que esta ANM solicita apenas os documentos previstos na Legislação Minerária aos requerentes. Pesquisas de vida pregressa, judiciais ou afins não são de competência da ANM, cabendo aos órgãos específicos judiciais e de polícia”.
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