Este vídeo documenta o acontecimento recente do fechamento do setor de longa permanência/internação do Instituto Municipal Nise da Silveira, nome dado ao antigo Hospital do Engenho de Dentro no qual Nise da Silveira desenvolveu, por décadas, o seu trabalho de desinstitucionalização e tratamento de afecções psíquicas usando expressões artísticas.
Lucio Massafferri Salles*
O vídeo intitulado “Dos últimos sobreviventes à construção de novas trajetórias” documenta o acontecimento recente do fechamento do setor de longa permanência/internação do Instituto Municipal Nise da Silveira, nome dado ao antigo Hospital do Engenho de Dentro no qual Nise da Silveira desenvolveu, por décadas, o seu trabalho de desinstitucionalização e tratamento de afecções psíquicas usando expressões artísticas, escuta e um genuíno acolhimento às dores da alma; o direito de existir e viver livremente.
Em tempos tão desarmônicos e difíceis, anima o espírito poder rever nesse documentário, feito com arte pela amiga e companheira de Luta Antimanicomial, Valeria De Leoni, depoimentos de colegas com quem trabalhei e de pessoas que (em equipe) pude acolher e acompanhar em tratamento, visando a realização dessa liberdade para fora dos muros do hospital.
Este documentário me transporta em memória para o ano de 1987, quando conheci o Hospital do Engenho de Dentro durante a realização de uma pesquisa acadêmica em psicopatologia, que teve como tema de estudo o trabalho revolucionário e libertador de Nise da Silveira, no campo da Saúde Mental.
Nise era muito próxima de meu tio Arthur, que com ela trabalhou, e foi também colega de meu pai, Lauro; ambos psiquiatras alinhados com as ideias e as práticas desenvolvidas por ela.
Quis a força do desejo que eu viesse a ser estagiário de Nise em sua Clínica Casa das Palmeiras, me tornando posteriormente colaborador e coordenador desse espaço por um determinado tempo. Fui fortemente influenciado por esse convívio (1994/98; 2006/2008) e o meu período trabalhando no Instituto Municipal Nise da Silveira ocorreu no ano de 2011/12. A todos e todas as almas e corpos envolvidos nessa luta, a minha eterna gratidão, o meu respeito e o meu amor.
(Documentário -NRIS/IMNS: Dos últimos sobreviventes à construção de novas trajetórias)
Leia aqui todos os textos de Lucio Massafferri Salles
Dito isso, é importante deixar registrado que ontem, dia 17 de dezembro de 2021, foi inaugurado o Memorial da Loucura no espaço da antiga Casa Verde do Instituto Municipal Nise da Silveira. Considerando que no ano de 2021 os últimos moradores do Instituto Municipal Nise da Silveira foram desinstitucionalizados, com o compromisso de que novas “Casas Verdes” não surjam, se iniciou o trabalho de ocupação desse espaço para que nele fosse criado o Memorial da Loucura. Nesse local fica agora registrada a produção e preservação da memória na instituição.
O Memorial da Loucura não só documenta toda uma história, na linha do tempo, como afirma o pacto humano, ético e político, de manter vivos os debates e as reflexões sobre as melhores ações de acolhimento e tratamento da loucura.
Essa memória viva construída poderá ajudar a barrar a repetição de erros e desvios cometidos no passado.
Foto: Registros do Memorial da Loucura
Reflexões:
Segundo Nise da Silveira: “Quem passa por experiências profundas e radicais – como a loucura, a prisão, a morte de um ente querido, a tortura, o exílio e a fome – nunca mais volta a ser o mesmo. Os valores se modificam…[…]… Há quem ache que não aguenta ficar numa prisão, mas uma vez lá dentro, você aguenta…Não tem saída. Aguenta sim!” (HORTA; B. Nise. Arqueóloga dos Mares. 2008. P. 286-304).
“Cuidar verdadeiramente do outro, Talvez, o grande projeto humanístico colocado em prática pela psiquiatra alagoana Nise da Silveira, durante toda a sua vida, tenha sido cuidar verdadeiramente do outro, de sua alma (psique) e consequentemente de seu corpo. Nise cria que o próprio “estado do ser” denominado de loucura poderia ser em si mesmo uma busca, um esforço da alma em existir e em se organizar diante de um mundo (este sim) imerso em terríveis ambiguidades e irracionalidades. As formas das mandalas, desenhadas e pintadas pelos seus pacientes, nada mais seriam, cria Nise, do que o esforço em se organizar e dar unidade ao psiquismo estilhaçado pelo atravessamento brutal de uma realidade percebida como hostil. Assim, as expressões da arte, cuja potência e os efeitos curativos Nise tão bem soube utilizar em vida, na sua clínica, podem ser compreendidas como potentes movimentos de cura. A cura como transformação do ‘estado do ser’ que poderá ser vivido com mais alegria. A cura como modificação da alma, como uma boa mudança, de um estado psíquico para outro, melhor e mais bem posicionado, frente à lida diária com as aporias insolúveis das complexas relações entre pessoas e mundo. Tal processo, de potencialização da vida, tem grandes chances de dar certo, com um genuíno acolhimento, não só das diferenças relativas aos modos de expressão e de existência entres os seres, mas principalmente através do verdadeiro cuidado com o outro (SALLES; L.L.B.M. Nise da Silveira filósofa da alma).”
Leia também: Nise da Silveira filósofa da alma
*Lucio Massafferri Salles é filósofo, psicólogo e jornalista. Doutor e mestre em filosofia pela UFRJ, concluiu o seu pós-doutorado em filosofia pela UERJ. É especialista em psicanálise pela USU e criador do Portal Fio do Tempo (You Tube).
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