Governo Bolsonaro ameaça ir a tribunal internacional para defender a Igreja Universal
Problemas enfrentados pela IURD com Justiça em Angola mobiliza governo Bolsonaro, que fala até em risco de relação bilateral. Investigação aponta que igreja brasileira arrecadava anualmente R$ 400 milhões no país africano; a maior parte do valor era enviado ao exterior de forma ilícita. Há também denúncias de racismo e esterilização forçada
Blog do Noblat e BBC
O esforço diplomático e político do governo Bolsonaro a favor da Igreja Universal do Reino de Deus, que enfrenta problemas em Angola, onde algumas lideranças são alvo de uma série de acusações, envolve ações diversas e até ameaça de recorrer a tribunais internacionais.
Num momento em que o presidente Jair Bolsonaro tenta segurar o eleitorado evangélico, o governo brasileiro segue no forte auxílio a integrantes da igreja naquele país. Troca recente de telegramas entre diplomatas brasileiros de Brasília e Luanda, a capital, obtidos pelo Blog do Noblat, revela o empenho do Itamaraty no auxílio a lideranças dessa igreja.
A situação do bispo Honorilton Gonçalves, por exemplo, preocupa as autoridades brasileiras. Um dos mais próximos do líder Edir Macedo, o bispo Gonçalves é acusado e investigado em Angola por lavagem de dinheiro e associação criminosa.
Um dos telegramas, de meados de novembro, aponta a preocupação com sua situação. A correspondência informava sobre uma audiência em um tribunal onde o religioso seria ouvido, passada a fase de investigação e denúncia pelo Ministério Público. O bispo foi ouvido durante três dias, a partir do último dia 18.
“O risco de prisão ainda existe, mas já não como sentença definitiva e, sim, como medida cautelar privativa de liberdade” – alertava o telegrama, que é o canal de comunicação entre embaixadas e consulados com o Ministério das Relações Exteriores.
Um dos diplomatas, então, sugere a consulta a um jurista independente. E chega a falar da necessidade de demonstrar às autoridades angolanas os impactos na relação bilateral entre os dois países.
“Caso o jurista independente corrobore as denúncias de atropelos processuais flagrantes e o esgotamento dos recursos internos, o curso de ação seguinte seria iniciar conversações informais com as autoridades do governo angolano, em Brasília e Luanda, nas quais demonstraríamos nossa preocupação com o assunto e os impactos sobre uma relação bilateral que dá sinais de fortalecimento (superado entrave recente), e faríamos apelo a um retorno a maior rigor processual que assegure o direito de defesa”.
Num dos trechos, a diplomacia brasileira entende que Angola dificulta o direito do bispo Gonçalves em sair do país, “que está sendo indevidamente negado”. O prazo legal de impedimento já teria expirado há um ano, desde meados de novembro. Na sequência, o Itamaraty ameaça uma reclamação formal contra Angola em tribunais internacionais.
“Seria uma reclamação formal conforme estipulam os tratados e convenções internacionais, tanto na Comissão de Direito Internacional quanto na Corte Internacional de Justiça”. Essas cortes estão no escopo das Organizações das Nações Unidas (ONU).
No final, a diplomacia brasileira entende que se não forem detectados “vícios flagrantes ou graves” por parte do Estado angolano ou não se confirmem as denúncias de “cerceamento de sua defesa”, a ação da embaixada brasileira em Angola “seguirá sendo a continuada assistência consular”.
Edir Macedo pediu a interferência de Jair Bolsonaro, que determinou empenho do Itamaraty e até o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, esteve em Luanda e tratou desse assunto com autoridades locais.
Bolsonaro chegou a enviar uma carta ao presidente João Lourenço pedindo “tratamento adequado”. Em julho, Mourão se reuniu com Lourenço em Luanda e teria tratado do assunto, sem sucesso.
“Tudo será esclarecido. Não sou criminoso”, diz bispo Gonçalves
A fase de depoimento começou no dia 18 e Honorilton Gonçalves, que é réu, já compareceu três vezes ao tribunal. Em vídeos postados em suas redes sociais nos últimos dias, o bispo garantiu que tudo será esclarecido e relatou a situação.
“Foram sete horas (no primeiro dia) sentado, olhando para a frente, não pode cruzar as pernas, olhando para a frente. Nenhum gesto” – relatou o bispo.
O bispo evita falar das acusações que pesam contra ele nesses vídeos e cita passagens bíblicas.
“As tribulações (situações adversas) produzem perseverança e esperança. Nesse momento você que passa por uma tribulação sabe que está abençoado e que tudo vai passar. Temos que aprender a viver firme e na fé”.
“Quantas pessoas estão passando por uma situação pior que a nossa. Gente querendo morrer”.
Ele relata que, num momento no tribunal, um deputado angolano o ofendeu e ameaçou dar-lhe bofetadas.
“Não sou criminoso. Desculpo o deputado”
Entenda o caso
Quatro líderes da Igreja Universal foram acusados e indiciados pelo Serviço de Investigação Criminal (SIC) de Angola por lavagem de dinheiro e associação criminosa. Um deles é um bispo angolano e outros três são brasileiros, incluído Gonçalves.
Os angolanos que integravam a Universal no país romperam com o grupo de Macedo. Os brasileiros foram acusados de crimes como racismo, fraudes, evasão de divisas, entre outros. O bispo Gonçalves era o principal líder brasileiro da Universal no país.
A Igreja Universal já se manifestou sobre o caso e afirmou se tratar de um “golpe religioso”. Os dirigentes angolanos da igreja são apontados como “ex-pastores” e dissidentes envolvidos em denúncias de “roubo, adultério e extorsão”, entre outras acusações.
Denúncias de racismo e esterilização forçada
As investigações começaram em novembro de 2019, quando um grupo de 330 bispos e pastores angolanos da Universal (dentre quase 550 membros ao todo) divulgaram um manifesto com acusações públicas contra representantes brasileiros da igreja em Angola, onde atua oficialmente desde 1992.
Segundo a PGR de Angola, apenas uma parte das acusações feitas por bispos e pastores angolanos foi investigada pela polícia e pelo Ministério Público porque na denúncia pública havia também questões individuais.
Entre eles, os relatos de racismo (o bispo Edir Macedo é acusado de ter afirmado numa conferência que os negros vieram dos macacos), de vasectomia ou retirada de útero forçadas para que os pastores não tivessem filhos e “desviassem o foco” da igreja (acusação feita também em outros países como o Brasil) e de perseguições a pastores que engravidassem suas mulheres (com redução de salário, de cargo e do status da moradia oferecida pela igreja).
“Nos últimos 12 meses, a anterior e atual liderança brasileira por orientação do Bispo Edir Macedo tem forçado os Pastores solteiros e casados a submeterem-se a um procedimento cirúrgico de “esterilização”, tecnicamente conhecido como vasectomia que, são claras violações graves dos direitos humanos, da lei e da Constituição da República de Angola, práticas estas que são estranhas aos costumes da nossa realidade africana e angolana“, afirmava o comunicado divulgado no fim de 2019.
Não é a primeira vez que a Universal é acusada de esterilização forçada por ex-missionários. Acusações como essa ocorreram em outros países, como São Tomé e Príncipe e Brasil, onde a instituição foi condenada recentemente a indenizar um pastor pela prática.
Desde o fim de 2019, a situação desandou para os brasileiros da Universal. Todos foram destituídos dos cargos de liderança na seção angolana da igreja, 25 bispos e pastores foram obrigados a deixar o país, o controle dos templos foi transferido com anuência do governo angolano e a TV Record África saiu do ar em abril de 2021 por, segundo o governo, descumprir regras que proíbem estrangeiros no comando da emissora e que exigem o credenciamento oficial de estrangeiros atuando como jornalistas.
Em comunicados, a Record em Angola afirmou que “pauta e sempre pautou pela legalidade nos mais de 15 anos presentes em Angola e em todo continente africano“, que não havia nenhum jornalista estrangeiro em seus quadros no país e que o diretor-executivo Fernando Henrique Teixeira (um dos quatro denunciados pela Procuradoria-Geral da República), que ocupava o cargo havia dez anos, seria substituído pelo jornalista angolano Simeão Mundula.
Entidades jornalísticas de Angola expressaram preocupação com o fechamento da Record e de outros dois canais ligados ao ex-presidente José Eduardo dos Santos (Zap Viva e Vida TV). Representantes do Instituto para a Comunicação Social da África Austral em Angola (MISA-Angola) afirmaram à imprensa local que a medida asfixia a liberdade de imprensa e que as emissoras deveriam ter sido notificadas das supostas irregularidades, e não fechadas abruptamente.
Vale lembrar que a Record em Angola chegou a ser advertida pela Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana (Erca) por veicular ataques e críticas a religiosos angolanos que passaram a comandar a igreja no país.
Até o momento, a emissora continua sob o comando de nomes ligados à Universal no Brasil, mas os dissidentes angolanos têm dado sinalizações de que podem iniciar uma guerra para assumir o controle da emissora no país porque, segundo eles, ela foi erguida com dinheiro recolhido nos templos e pertence à igreja.
Acusação de evasão de divisas após Fogueira Santa
Novo líder da Universal em Angola, Bezerra Luís afirmou à televisão pública do país que a antiga liderança da igreja usava bispos, pastores e suas mulheres a fim de levar parte do dinheiro arrecadado em Angola para outros países, como Brasil e África do Sul, geralmente depois de eventos conhecidos como Fogueira Santa.
Nesses eventos, os fiéis são instados a sacrificarem valores elevados em dinheiro para receber em retorno de Deus. “É uma troca. Deus nos dá a Sua plenitude e nós O entregamos tudo o que somos“, explica o site da Universal.
Em 2018, a gaúcha Carla Dalvitt conseguiu vencer uma disputa judicial com a igreja brasileira na qual afirmava ter sido coagida pela congregação religiosa a doar a ela tudo o que tinha e acabou ficando sem dinheiro e sem carro. Ela disse estar desesperada naquele momento, mas acabou mudando de ideia.
A igreja, entretanto, se recusou a devolver-lhe os valores. À época, a instituição afirmou que “o dízimo e todas as doações recebidas pela Universal seguem orientações bíblicas e legais, e são sempre totalmente voluntários e espontâneos“.
Saiba mais: Igreja Universal ameaçou e obrigou mulher a doar bens para a instituição religiosaI
O novo comando da IURD em Angola afirmou que não seguirá mais a teologia da prosperidade, doutrina que defende o pagamento de dízimo e considera a riqueza material uma benção de Deus, mas não está claro que linha doutrinária devem seguir.
Segundo Bezerra Luís, quantias enormes eram arrecadadas de fiéis pela Universal em Angola durante a Fogueira Santa. Em seguida, grupos de até 150 missionários angolanos e brasileiros que atuavam em Angola eram designados para visitar o Brasil e cada um deles, junto com suas mulheres, recebiam cerca de US$ 15 mil (quase R$ 75 mil em valores atuais) em dinheiro vivo para serem transportados na bagagem pessoal e entregues a um representante da igreja no Brasil.
A Receita Federal brasileira autoriza a entrada de até R$ 10 mil (ou o equivalente em moeda estrangeira) por pessoa sem necessidade de declarar a quantia às autoridades.
Além disso, a liderança angolana afirmou que havia também envio de dinheiro vivo escondido em carros de luxo que seguiam em direção à África do Sul, onde a Universal também atua desde 1992.
Por que só agora?
Diversos bispos e pastores angolanos afirmam que todos esses problemas ocorrem há anos. Mas por que só agora se movimentaram contra as lideranças brasileiras?
Há dois pontos principais. O primeiro foi a mudança de governo, mais especificamente a saída de José Eduardo dos Santos, que comandou Angola de 1979 a 2017.
A chegada de João Lourenço à Presidência e a mudança nas lideranças no país fizeram com que bispos e pastores angolanos da Universal no país avaliassem que a proximidade da igreja com o poder havia perdido força e, portanto, a tentativa de mudar o comando da instituição poderia prosperar.
O segundo ponto foi a chegada do bispo Honorilton Gonçalves a Angola em 2019 para liderar e tentar controlar as insatisfações internas da denominação no país, onde 41% da população é católica e 38%, protestante, segundo os dados mais recentes do governo angolano.
Segundo Acúrcio Estêvão, diretor jurídico e porta-voz da Ordem de Pastores Evangélicos de Angola, os relatos de vasectomia forçada e discriminação racial, por exemplo, são feitos há anos por missionários angolanos, que cobravam uma participação maior deles na condução dos rumos da instituição.
“Os bispos anteriores souberam gerir essa relação. Tinham consciência dos problemas. E quando arrebentasse um ou outro cano, eles conseguiam estancar aquilo e se mantinha um problema interno. Há muitos anos, ouço falar de problemas na Igreja Universal, mas era muito difícil ver um pastor ou um obreiro comentar esse problema fora da esfera da igreja. Mas isso ocorreu com Honorilton, porque os problemas não são novos, mas houve uma forma nova de lidar com eles, com arrogância.”
Estêvão afirmou ter tentado mediar uma conciliação entre as lideranças brasileiras e os dissidentes angolanos a fim de evitar que o caso tomasse as proporções atuais. Mas os brasileiros rejeitaram qualquer negociação e disseram a ele que “Deus nunca negociou com o Diabo“.
Crise levou a pressão sobre Bolsonaro
A crise teve desdobramentos políticos no Brasil. O governo Bolsonaro e parlamentares passaram a ser cobrados publicamente por membros da Universal com o objetivo de reverter a perda de comando da igreja em Angola, um dos 134 países em que a denominação evangélica divulga atuar.
O caso se agravou em meados de 2020, quando uma assembleia com membros da Universal em Angola determinou a dissolução de sua diretoria e a destituição do bispo brasileiro Honorilton Gonçalves e do presidente do conselho de direção da Universal, bispo Antonio Pedro Correia da Silva, além de ter encerrado o serviço eclesiástico de missionários brasileiros da Universal em todo o território de Angola. A Universal no Brasil disse que a assembleia foi fraudulenta.
À época, o próprio presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, havia tentando interceder em favor da igreja de Macedo, seu aliado e eleitor na campanha à Presidência. Ele enviou uma carta para o colega angolano, o presidente João Lourenço, manifestando preocupação com os acontecimentos no país e pedindo o aumento de proteção aos brasileiros.
Além disso, a pressão da Universal e da bancada evangélica fez com que Bolsonaro, o então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e o embaixador do Brasil em Angola, Paulino Franco de Carvalho Neto, assumissem publicamente posições em defesa da igreja no país africano.
Mas a ofensiva diplomática não surtiu efeito e desde aquela época a Universal no país é comandada por angolanos. Membros do governo de Angola se apressaram em dizer publicamente que o caso era isolado e não prejudicaria a relação entre os dois países.
No Brasil, a crise gerou alguns sinais de que a igreja liderada por Edir Macedo poderia romper com Bolsonaro por causa da insatisfação com a atuação das autoridades brasileiras no caso. “O governo brasileiro, que deveria proteger os brasileiros em Angola, falhou nessa missão. Foi omisso e não atuou de forma ativa para evitar a deportação“, disse a TV Record brasileira.
Mas especialistas ouvidos pela BBC em maio de 2021 avaliaram que o possível rompimento com o presidente não iria além de ameaças por parte de Macedo.
“Há milhões de reais para o financiamento direto de campanhas de propaganda para a Record no governo Bolsonaro, via Secom (Secretaria de Comunicação). Como ela recebe por isso, não vai abdicar dessas verbas. Não vai sair de uma forma tão explícita do governo agora“, disse à época o teólogo protestante Fábio Py, professor do programa de pós-graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense.