Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Prévia do livro Além da Psique a ser lançado brevemente.
O estado de normose indica que a patologia social se transformou na normalidade. Isso é preocupante e interessante ao mesmo tempo. Preocupa porque a normalidade nunca foi exatamente normal e interessante porque podemos nos divertir percebendo a resposta dos sujeitos ansiosos em se sujeitarem.
Não é difícil nomear as patologias da moda neoliberal: ansiedade, depressão, vitimização e empoderamento são suas formas mensuráveis. Muitos são os livros e ensaios para identificar cada uma delas, embora quando tratamos do empoderamento, muitos nem sequer imaginam como patologia social.
O neoliberalismo convida a invenção do próprio trabalho avisando que aquele antigo, em que a relação carecia de normas, está em vias de desaparecer. Outras formas rapidamente tem assumido a dianteira. Terceirização, uberização, empreendedorismo, em todos os casos a invenção é amparada por uma forma de solidariedade social, afinal todos estão no mesmo barco social prestes a naufragar.
Não é de se estranhar que as doenças da psiquê sejam preponderantes nesses tempos tempestuosos. O futuro está nublado de cinzas e os corações e mentes tremem diante das incertezas.
Mas essas incertezas também geram novas possibilidades interativas. Já que é o império do serviço, o servir tomou proporções mercantis.
Serviço tem muitas possibilidades de entendermos. Há o servir ao poder que engloba uma infinidade de naturalizações. Há o servir ao humano que também está numa zona bem nebulosa e atuação.
Pastores, dentistas, taverneiros, psicólogos, cada um a seu modo quer assistir aos doentes da sociedade em seu tempo de orfandade.
Os pastores prometem acalanto para as almas puídas; os dentistas prometem beleza; os taverneiros, silêncio para o coração e os psicólogos, bom esses prometem cura.
Mas se os pastores, os dentistas e os taverneiros se alimentam em seu próprio ofício, os psicólogos carecem de um avatar como lenitivo para suas próprias dores.
Se as almas, os dentes e o coração teimam em surtar, o sofrimento da psiquê procura um tipo especial de alimento que seja permanente: quer entender esse mundo finalista, pois entre a dor e o nada tem que escolher a dor, senão tudo acaba. Será ao psicólogo que pedirá auxílio.
A esperança é um negócio. Por isso a formação de psicólogos, nesse tempo de grandes demandas, se tornou ligeira. Chamam de psicoterapeuta esse formando de boteco, mas a impressão é que de que sua botica é de ouro.
Uma vez aberta a portinhola do consultório, quem é que vai dizer sobre as diferenças?
Vivendo as mesmas agruras temporais de seus conterrâneos, o psicólogo, que também frequentou um psicólogo por anos a fio, faz aquilo que está preparado a fazer: ouve.
Nessa função, se transforma num oratório, um lugar próprio para orações, mas igualmente para a oratória do paciente. Parece que existe uma suspeita de que falar ajuda a entender. A si e ao outro. Então, falar, ouvir, aproxima, o um do outro. E isso poderia gerar um amuleto. Mas a aproximação não acontece entre objetos sofredores e o amuleto não se coagula na realidade distorcida pelo sofrimento normal do dia a dia.
Não sei como é a formação de pastores e taverneiros, mas os dentistas desse tempo, como os mecânicos, aprendem só a trocar peças, não sabem mais consertar. Os psicólogos em suas formações não poderiam aprender a trocar peça, imagino eu.
Isso nos leva a questionar a boa vontade e a boa intenção em suas jornadas; querem ajudar pessoas que sofrem, mas o sofrimento que as acometem também manifesta em seus curadores.
Devo chamar de pacientes ou clientes seus sofredores?
Não foram poucos a se embrenharem na formação superficial de psicoterapeutas. Se um dos lados dessa equação é uma vontade cristã de ajudar o próximo, o outro é inegavelmente um oportunismo de gerenciar a vida alheia retirando nacos de benefícios diversos.
Não deixa de ser sintomático que muitos psicoterapeutas tenham se tornado coaching e outros tantos condenem a prática oportunista.
Coaching é uma forma de des-envolvimento na qual alguém denominado coach, ajuda um aprendiz ou cliente a adquirir um objetivo pessoal ou profissional específico através de treinamento e orientação. O aprendiz é por vezes denominado coachee.
Justifica-se essa expansão funcional para o bem da heteronomia. Pois uma das coisas que o neoliberalismo fez com o indivíduo foi acabar definitivamente com o rompimento entre ele e seus mestres.
Os velhos senhores da heteronomia abdicaram de gerenciar os sujeitos que já haviam terminado completamente o processo de sujeição social a uma forma que se tornava absoluta.
Pais, professores e patrões saiam de cena e pediam a seus subalternos que inventassem um novo mundo para si. Desesperados, esses órfãos pediram socorro na psicoterapia e alguns psicoterapeutas perceberam o fenômeno e fundaram redutos de coach para corrigir o problema da heteronomia. Já que autonomia continua sendo uma impossibilidade linguística até: palavra herética que não deve ser pronunciada com outro sentido que não o do novo trabalho que rompe com todos os vínculos de segurança e de convivência para o mais absoluto abandono à própria sorte do novo trabalhador. Que cuidará de sua seguridade, aposentadoria, previdência, saúde, sem que um dia sequer lhe possa ser concedido para o laser, senão aqueles que ele mesmo abdicar do trabalho.
Endividado pelos chamados do cartão de crédito, esse trabalhador só pode adoecer sem que a doença se torne incapacidade para o trabalho. Sublimada, a doença pessoal se torna doença social e se normaliza como normose. É um cenário perfeito de desumanização, pois já que todos estão assim, só resta mesmo correr atrás de lenitivos sempre medicamentosos: pastores, taverneiros, dentistas e psicoterapeutas.
Mas esse novo trabalho que gera essa nova forma social é ele próprio um engrama da psiquê. É um traço definitivamente impresso na psiquê pela experiência física do abandono heteronômico, da perda dos referenciais de mando. E uma vez encerrada uma fase histórica, o sujeito estará também definitivamente modificado.
As gerações que aprenderam com pai, professor e patrão agora se viam sem o chão daqueles que sempre lhes disseram o que deviam fazer.
Leia aqui todos os textos de Eduardo Bonzatto
Soltos no ar, sem cordas a segurar, sem que a mãe possa ouvir o seu choro, o sujeito carece de um substituto e busca no próprio mercado que se alterou o socorro do amparo, sem perceber que ninguém lhe pode auxiliar, pois seu mundo mudou completamente.
É aterrador isso! Não só pela condição absolutamente alienada do sujeito, mas porque aqueles que ele procura também estão soltos no ar, sem deus, sem medicamentos viáveis, sem dentes e sem paz.
O que assemelha todos esses guias espirituais químicos é sempre a palavra. Por isso, psicoterapeutas acreditam que falar é a saída, embora décadas de inutilidades oratórias não consigam convencê-los do contrário.
Para transcender as limitações dos psicoterapeutas e suas conversas inúteis, a primeira fronteira é justamente ir além da psicologia. A tensão entre Freud e Jung, entre as dimensões psíquicas individuais e as expansões atávicas do inconsciente coletivo pode ser um lugar de entremeio, ocupado pela parapsicologia.
O entendimento de que existam fenômenos que pareciam transcender as leis do que os psicólogos entendiam como sendo próprias da natureza abria um novo caminho a ser tentado.
Intuição, telepatia, psicocinese, premonição, enfim, paranormalidade acaba por sugerir que devemos agora justamente ir além da normalidade, já que a própria normalidade se tornou patológica.
Considerando essa nova expansão necessária ao enfrentamento dos constrangimentos históricos que impactam a psiquê individual, podemos avançar para além da própria limitação da psicoterapia convencional inserindo questões mais sofisticadas de abordagem. Trataremos aqui da psicomagia.
Alejandro Jodorowisky foi quem primeiro aventou a possibilidade curativa da psicomagia. Alegando que a relação de cura deva opor à “cura pelas palavras” a “cura pelas ações”, Jodorowisky acena para um exercício teatral e assumidamente mágico, reconhecendo que cada ente possui um problema de caráter diferente e deve receber abordagem diversa. A identificação e enfrentamento do trauma é a primeira parte. Segue uma ação que permitirá a expansão da mente por meio de algum ato que se abra como permissão ao
‘indivíduo de viver uma novidade, olhar o mundo de forma distinta e chegar a um ponto de felicidade”, abrindo processos de criatividade seja pela estranheza como pela coerência psicanalítica, simbolizando o que é imaginado na ação.
Para se ter uma imersão maior nas possibilidades da psicomagia, o filme do próprio Jodorowsky, Psicomagia: A Arte Que Cura (Psychomagic: A Healing Art) — França, 2019, pode ser assistido.
Mas precisamos ir além da teatralização proposta por Jodo. Se a ação é mais contundente que as palavras, e considerando que a individuação é parte fundamental do problema que se agravou durante o século passado e principalmente nesse, somente ações de encontro podem colocar o indivíduo isolado e egoísta diante da novidade. E esse encontro deve aspirar à máxima diferença. Na diferença do encontro real com sujeitos igualmente diferentes de si, a convivência para a ação trás o estranhamento que deve fazer calar a voz interior que julga, que avalia, que segrega e que isola reduzindo a arte de viver numa doença de indiferença, apatia, tedio e infelicidade.
O movimento do encontro com as diferenças procura enfrentar uma limitação daquele que se sujeita, o sujeito, pois se sujeita porque esqueceu sua natureza humano-terra. Se como humano a modernidade o isolou, como humano-terra sempre fez parte de toda a teia da vida, estando ligado aos entes sem as hierarquias que danificaram a percepção sobre a realidade. Jung dizia que “quem olha para fora, sonha; quem olha para dentro, desperta”: a busca pelo humano-terra dentro de nós será um despertar da ilusão do ego que está exposta nas redes virtuais de existência.
Esse isolamento que acabou se formulando no ego, com os encontros para o servir (servir ao humano e não servir ao poder), a separação tende a ser confrontada.
O importante aqui é que precisamos de um caminho interior pautado no autoconhecimento para reconhecermos que a prisão cartesiana da razão que atinge nesse ponto histórico sua maior força pode ser quebrada com respeito incondicional com o próximo, com aceitação incondicional como forma de viver o presente, com contemplação que torna as urgências do tempo uma questão menor na nossa vida e, principalmente, com o reconhecimento de que a autonomia é a única forma de liberdade, pois ela nos revela que tudo que vive é nosso próximo e que é o poder que impede nosso encontro com o amor que, parafraseando a poetisa, é “essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que a explique e ninguém que não entenda”.
O amor incondicional e não vulgarizado impede que os problemas se tornem pedras, que o futuro nos apresse, que o passado nos cause arrependimento ou culpa e que os outros deixem de ser o nosso inferno pessoal. Mas encontrar o amor é uma tarefa incomum: precisamos de não nos levarmos tão a sério, reconhecendo o nosso ego como um inimigo e adotarmos como forma de vida a irreverência conosco. Só então poderemos vislumbrar os outros todos (humanos, animais, vegetais, minerais, etc.) que nos cercam de energia, afeto e presença.
É mágico sentir as conexões com as formas de vida que nos envolvem, nos recolocando no movimento inconsútil da vida plena. A magia, equidistante tanto da religião quanto da ciência, pode nos auxiliar no curso de acontecimentos que expandam nossa percepção para além das estreitas dimensões do isolamento imposto pelo egoísmo.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
Siga-nos no Instagram | Twitter | Facebook