Após áudio vazado de influencer, outras mulheres denunciam o médico Renato Kalil
"Ele falava da minha vagina como se eu não estivesse ali" e "tem vídeo dele me rasgando com a mão". Conhecido por ser o 'médico das famosas', Renato Kalil é denunciado ao Cremesp após conversa íntima vazada de influencer; outras mulheres decidem se manifestar
O médico Renato Kalil foi denunciado ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) após um áudio vazado de uma conversa íntima da influencer Shantal Verdelho.
Shantal relatava ter sofrido violência obstétrica durante o parto da filha mais nova, Domênica. “Confesso que não estou muito bem, é difícil não me ver bem, emocionalmente falando”, disse a influencer. “É uma história realmente pesada”.
A influencer acusou Kalil de usar palavrões contra ela durante o parto e expor sua vagina para o pai da criança, Mateus Verdelho, durante o procedimento e também para terceiros.
“Queria pedir para vocês compreensão, porque esse é um assunto que me constrange, é um assunto íntimo. Pelo menos um assunto que era para ser íntimo, não era para ter saído do âmbito familiar e das minhas amigas mais próximas. E que envolve a minha filha, e o rostinho dela em as notícias, de uma bebezinha de três meses”, disse Shantal em seu perfil no Instagram.
Por causa da grande repercussão do caso, o médico deixou as redes sociais e a influencer anunciou um período de afastamento das postagens “para estar com a família”.
Relembre o caso
Nos áudios vazados, Shantal contava para as amigas a experiência ruim que sofreu durante o parto da pequena Domênica. “Demorei para perceber o que tinha acontecido porque na hora do parto eu tava em uma outra dimensão. (…) Foram várias posturas dele muito ruins e acabou sendo horrível meu parto. Se eu mostrar [o vídeo], vocês vão sentar e chorar”, conta a moça para as amigas.
Vídeos curtos do parto onde o médico fala alguns palavrões também começaram a circular por grupos de What’sApp de mães e gestantes.
Shantal confirmou, por meio de nota, o conteúdo do áudio e vídeos, mas disse lamentar que uma conversa privada dela tenha ido parar nas redes sociais, no que chama de “assunto delicado e ainda constrangedor”.
“Os vídeos e o áudio foram enviados em um momento de troca, desabafo e compartilhamento com suas amigas, a respeito de maternidade e sobre os suas escolhas de obstetras. A intenção era unicamente dividir sua experiência de forma privada e com pessoas mais próximas”, afirmou Shantal Verdelho.
No desabafo feito às amigas, a influencer narrou várias passagens onde o médico usou palavrões e palavras de baixo calão durante o parto em setembro.
“Quando a gente assistia ao vídeo do parto, ele me xinga o trabalho de parto inteiro. Ele fala ‘Porra, faz força. Filha da mãe, ela não faz força direito. Viadinha. Que ódio. Não se mexe, porra’… depois que revi tudo, foi horrível”, comenta a influencer.
“Ele chamou meu marido e falou: ‘Olha aqui, toda arrebentada. Vou ter que dar um monte de pontos na perereca dela’. Ele falava de um jeito como ‘olha aí, onde você faz sexo, tá tudo fodido’. Ele não tinha que fazer isso. Ele nem sabe se eu tenho tamanha intimidade com meu marido”, completa.
Ela disse também que vai tomar providências jurídicas contra o médico, “em vista dos últimos ocorridos divulgados pela falta de decoro de um profissional da área da saúde”.
Mais denúncias
Após assistir ao vídeo do parto da influenciadora Shantal Verdelho, a jornalista britânica Samantha Pearson, correspondente no Brasil do jornal The Wall Street Journal, sentiu que tinha chegado a hora de falar.
Ela, que também foi paciente do médico, disse, em entrevista exclusiva ao jornal O Globo, ter passado por episódios de assédio moral, principalmente na gravidez de sua segunda filha, nascida em meados de 2019.
Quando engravidou de seu primeiro filho, em 2015, a jornalista jamais imaginou que o desejo de ter um parto normal a levaria a viver uma situação que hoje descreve como profundamente traumática.
Samantha conta que chegou ao consultório de Kalil na reta final de sua primeira gestação, porque queria evitar uma cesariana e tinha boas referências do médico que, naquele momento, era considerado uma eminência na obstetrícia brasileira.
O primeiro balde de água fria chegou no parto de seu primeiro filho. Samantha optou por não ser anestesiada e diz ter ouvido perfeitamente Kalil dizer a seu marido, em tom de “brother”, que tinha “feito um ponto ali, que ele não ficasse preocupado, porque tava tudo bem”.
“Ele falava da minha vagina como se eu não estivesse ali. Passei semanas chorando sozinha em casa, sem saber se ele tinha dado mais pontos do que o necessário, com medo de transar, de sentir dor. Fui a outros médicos para saber se isso podia ser checado, mas não podia. Foi horrível”, comenta.
A sensação de que algumas coisas estavam muito erradas começou naquela primeira gravidez, mas a ficha terminou de cair em 2019, quando esperava sua segunda filha. Em consulta no oitavo mês de gestação e na frente de sua equipe, Kalil teria comentado, segundo a jornalista: “Samantha, você vai ter de emagrecer porque senão seu marido vai trair você”.
A jornalista, de 39 anos, saiu da consulta arrasada. Ainda no consultório de Kalil, diz, foi trocar de roupas e desabou a chorar. Ela sofrera anorexia na adolescência e aquele comentário que classifica como machista e agressivo a convenceu de que seu segundo parto não seria com o mesmo médico. Foi uma decisão muito difícil, apesar do assédio moral que hoje vê com toda clareza.
“Hoje percebo que eu não era a gringa maluca, eu estava certa, nada daquilo era normal. Ele disse aquilo na frente de sua equipe, eu estava quase nua, totalmente exposta. Meu marido estava lá e sempre percebi que o que ele queria o tempo todo era agradar meu marido, como se eu, a paciente, não estivesse lá”, conta a jornalista.
Kalil, conta Samantha, teria dito ainda que “as mulheres no Brasil estão desesperadas porque tem cada vez mais veados. Você vai ter de emagrecer porque senão ele vai te trair”. Em áudio enviado à jornalista alguns meses depois, quando percebeu que ela não estava mais indo a seu consultório, o médico afirma que “quis fazer uma brincadeira porque ele está todo sarado, bonitão, cuidando dele e do corpo dele, era um elogio pra ele”.
No ano em que a jornalista procurou Kalil, enfatizou ela, “ele era o rei do parto normal” num país onde, na contramão de muitos países, entre eles, a Inglaterra, 90% dos médicos fazem praticamente só cesariana. Samantha queria ter seu filho no Hospital Albert Einstein, e ouviu de muitas fontes que Kalil abria todas as portas.
“Na minha segunda gravidez voltei a ele por isso, tive medo de procurar outro médico e alguma coisa dar errado. Mas em cada consulta vivia coisas muito ruins. Ele me contava intimidades de outras pacientes e de sua própria mulher. Muitas vezes, as pacientes das quais ele falava estavam na sala de espera”.
Ela nunca tinha falado sobre seus traumas com Kalil porque, admite, queria tentar esquecer tudo o que viveu com ele. Mas quando viu o vídeo do parto de Shantal conta ter sentido vontade de vomitar e um impulso incontrolável de falar.
“Sempre estou do outro lado, defendendo que as pessoas falem. Agora é a minha vez e estou disposta a colaborar com tudo o que for necessário para que seja feita justiça. Ele não me xingou, nem me rasgou, mas a parte psicológica me afetou muito, e ele estragou um momento que deve ser um dos mais bonitos da vida de uma mulher. Se existem outras mulheres assediadas moralmente, gostaria de transmitir confiança para que também falem”.
“Médico dos sonhos”
Muito presente nas redes sociais, onde postava vídeos sobre suas clientes celebridades e dicas de saúde, Kalil era também figura recorrente em programas de TV. Tudo isso fez com que ele se tornasse o “médico dos sonhos” de muitas mulheres. É só ver vídeos de relatos de parto de famosas que tiveram o “privilégio” de poder ter esse médico para ler comentários do tipo: “meu sonho era fazer meu parto com o Dr. Kalil.”
No meio de todo o horror que começa a ser revelado, um detalhe diz muito sobre o comportamento de Kalil. Shantal conta que ele revelou em seu Instagram o sexo do bebê antes mesmo que a mãe desse a notícia para a família — o casal havia decidido esperar para descobrir essa informação apenas na hora do parto. Ou seja, ele correu para narrar o parto da paciente para ganhar likes e engajamento.
“Existe atitude que mais denuncia o estilo ‘médico do Instagram’ do que isso? Qual o limite desse tipo de comportamento? Para agradar a audiência, vale passar por cima da privacidade da paciente? No caso do ‘Dr. Kalil’ muitos limites foram rompidos. O fato de ele ser queridinho das famosas e desejado por muitas mulheres torna tudo pior. O ‘hype’ fez com que muitas mulheres o procurassem e, claro, é mais difícil identificar abuso vindo de alguém que ‘todo mundo gosta!'”, comenta a jornalista Nina Lemos.
“Quando uma mulher sofre violência obstétrica ou outro tipo de abuso moral é comum que, por um tempo, a gente ache que ‘está vendo coisas’ ou exagerando. No caso de um médico famoso e querido por tantas mulheres ricas, fica ainda mais difícil acreditar que, de fato, está ocorrendo um abuso”, finaliza a jornalista.