Cantor negro em carro de luxo foi abordado aos gritos e com arma apontada na cara pela PM em travessia de balsas de SP. Jean William é tenor e trabalha com o maestro João Carlos Martins, um dos maiores do país
O cantor lírico Jean William, 36, foi abordado na manhã desta quinta-feira (28) por policiais militares armados enquanto aguardava com um amigo, no interior de um carro, o término da travessia de balsa entre as cidades de Santos e Guarujá, no litoral de São Paulo.
De maneira agressiva, ele foi questionado se o automóvel, um Jeep Renegade, era dele e se ele estaria levando drogas dentro do veículo. Jean William é tenor e trabalha com o maestro João Carlos Martins, um dos maiores do país. Em desabafo, o cantor aponta as consequências do racismo estrutural no cotidiano de pessoas negras.
O veículo dirigido pelo cantor estava estacionado já dentro da balsa que realiza a travessia. Os dois amigos estavam conversando, quando Jean olhou para a frente e se deparou com um policial militar apontando um revólver em sua direção. O mesmo policial, que estava com pelo menos outros três PMs, gritava para Jean, questionando se o carro era dele e ‘se havia drogas dentro do veículo’. “Levantei as mãos e tentei não fazer nenhum movimento que excedesse o mínimo”, relatou.
Os amigos foram obrigados a descer do carro, que foi rapidamente revistado pela equipe policial. “Olharam mais ou menos. Abriram o porta-malas e viram que tinha duas cadeiras de praia”, lembra.
Quando ambos responderam sobre suas profissões – cantor lírico, e o amigo, farmacêutico –, os policiais cessaram a abordagem agressiva. “Percebi, na minha leitura, que eles ficaram com uma cara de que não era ali que estava o que buscavam”, diz.
“O que a gente ficou muito indignado é que, depois que as coisas ficaram esclarecidas, o cara entregou as coisas na minha mão, e ninguém explicou nada. Eu me senti como se fosse um bandido. Todo mundo dentro da balsa assistindo, foi um constrangimento assustador. E tinha o medo, medo de fazer um movimento brusco para pegar meu documento e levar um tiro”, desabafou.
O dia dos amigos na praia não saiu como planejado. Após a abordagem, Jean passou o dia remoendo a situação, pensando sobre quais razões poderiam ter sido a motivação de ele ter sido o alvo dos policiais. “Não estou acusando a polícia, mas deveria haver uma averiguação antes. Eu não era a pessoa que merecia passar por isso”, explica.
Jean questiona o motivo de ele ter sido abordado com tamanha agressividade, pontuando que não questiona a ação dos policiais em si, mas todo o sistema que leva a crer que um homem como ele, negro, não poderia estar dirigindo um carro de alto padrão, sem que fosse roubado.
“Minha questão não é acusar, mas deixar claro o quanto essa abordagem nos agride. É [alto] o número de pessoas negras que são abordadas constantemente pela polícia sem motivo. É claro que existe essa cultura no nosso país”, aponta.
“É um tipo de padrão cultural que precisa ser questionado, um racismo estrutural. O que percebo, conversando com meus amigos, é que existe uma diferença no trato. Esse tratamento a gente não pode negar que tem a ver com a cor da pele”, explica.
“Não é a corporação, é a sociedade. Quando vê um indivíduo dirigindo um carro que comumente só é dirigido por pessoas brancas, causa agressividade e revolta”, desabafa.
William denunciou caso à Ouvidoria da PM
Além de tornar público o episódio nas redes sociais, William relatou o caso à Ouvidoria da Polícia Militar, que prometeu pedir uma apuração à Corregedoria da corporação, assim que a denúncia fosse registrada.
“Esse caso é da Ouvidoria do estado. Eu falei com o ouvidor, relatei tudo que aconteceu e agora vamos esperar a resposta da ouvidoria, daí por adiante”, afirma o cantor.
A PM informou que a abordagem seguiu princípios legais e técnicos, e que nenhuma denúncia ainda tinha sido apresentada.
Carreira de sucesso
Hoje com uma carreira de sucesso no Brasil e no exterior, com passagem pelos principais teatros do mundo, Jean William lutou muito não só para mostrar seu talento como também para vencer as barreiras do preconceito.
Ainda antes de ser revelado como solista da Orquestra Bachiana Filarmônica Sesi-SP, comandada pelo maestro João Carlos Martins, e de se apresentar em países como Itália, Emirados Árabes, Índia, Argentina e Estados Unidos, o promissor tenor chegou a ouvir comentários preconceituosos de pessoas que consideravam estranho um negro cantando músicas em italiano.
O preconceito vencido por Jean William partiu até mesmo de uma professora de música que, segundo ele, o orientou a seguir por uma carreira que não fosse a do canto lírico porque “não existem príncipes negros.”
Para ele, a forma com que foi recebido pelos policiais no litoral paulista foi mais um episódio a superar dentro de uma realidade de discriminação que insiste no país, que está muito além das falas preconceituosas.
“Existem muitos relatos sobre abordagens agressivas. A gente conhece muito bem como é que funciona a estrutura do racismo no Brasil, que às vezes não é você chamar alguém de macaco só, mas é toda uma abordagem, todo um sistema que trata o negro quando ele está muito ‘fora’ do seu ambiente”, analisa.