Blade runner: Um título, três histórias, um tempo sem fim
Blade runner é um título cuja tradução para nossa língua é lâmina corredora, aqueles que cortam os seus iguais e que os “aposentam” prematuramente. Lembro que aposentar aqui é metáfora para eliminar
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Ficção científica é uma coisa estranha quando acontece de um produto com essa legenda se tornar ele próprio uma ficção científica.
Muitas obras desse tipo são visionárias quando o tempo conclui sua previsão. Algum filósofo chamaria isso de futuralidades (Franco Berardi). Um exercício seguindo uma prescrição razoavelmente consistente em que anacronismo estende num trilho as percepções de um determinado presente.
Não custa lembrar que o futuro é uma invenção colonial. Nenhuma comunidade anterior ao modelo de dominação eurocêntrico ousaria imaginar o futuro, pois para essas culturas plurais a circularidade do tempo vivido é tão concreta que uma ideia tão estapafúrdia como o tempo linear só poderia promover o riso e bem sabemos que o riso é a arte mais contundente da rebeldia e da heresia.
A circularidade do mundo, da vida, do tempo e do espaço é o que torna os universos comunais tão estranhos para o ordenamento colonial. Por isso a destruição do seu sentido carece de educação para a edificação de um centro. Daí que a ficção é da ordem colonial, pois precisa do exercício de projeção a partir de sua própria e peculiar concretude temporal e social.
E com raras exceções, o futuro é sempre distópico, pois o presente é sempre dolorido. É verdade que houve um tempo de utopias generosas, mas a guerra estava tornando a vida um inferno e a linearidade do tempo carecia de preencher de esperança seus leitores.
A dor dos presentes coloniais é mais sutil, mas muito mais danosa. Ela opera sempre na psicosfera e se oculta no inconsciente.
Exemplo foi o criador da palavra “robô”, que aparece pela primeira vez em R.U.R.: Robôs Universais de Rossum, peça de teatro do escritor checo Karel Čapek em 1920. Segundo o dramaturgo, o termo foi criado por seu irmão, não por ele próprio, e deriva do tcheco “robota”, que significa trabalho forçado, um sinônimo de trabalho escravo.
Blade Runner é um livro roteiro de filme de William S. Burroughs.
Na visão fantástica e futurista de William S. Burroughs dos Estados Unidos em 1999, o país é uma distopia na qual adolescentes conhecidos como “blade runners” contrabandeiam instrumentos cirúrgicos ilegais para cirurgiões e médicos clandestinos. Enquanto isso, as ruas de Nova York estão inundadas de viciados, gangues errantes e animais de zoológico perdidos enquanto o caos engole uma civilização em ruínas. Esta novela-roteiro apresenta uma visão fatalista da sociedade.
Burroughs havia adquirido um pequeno livrinho com o mesmo título de um médico, Alan Nourse, que escrevia sobre ficção científica e medicina. Em 1974, ele escreveu essa ficção sobre uma epidemia que havia assolado Nova York e o mundo todo.
Burroughs pretendia mesmo filmar aquele roteiro, mas acabaria vendendo por uma ninharia quando Hampton Fancher, que redigiu os primeiros tratamentos da adaptação do livro de Philip K. Dick para o cineasta Ridley Scott (o filme é de 1982) e que procurava um nome entre Android e Dangerous Days.
Na obra de F.K.Dick não existe uma única menção aos blade runners. Nada. Um dos filmes mais importantes da ficção científica já realizado estava também sendo gestado numa esfera de sincronicidades desconcertantes.
Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968), de Philip K. Dick é uma obra tão singular e complexa exatamente por colocar a crise moral do protagonista numa ambiguidade ainda hoje difícil de ser aceita. Ao tempo do romance, todavia, era revolucionária e mesmo o filme de Scott teve dificuldades em apresentar o problema em sua abordagem.
Essa ambiguidade moral está plenamente ativa até hoje, em que a boa intenção carrega de injúria e desumanidade o homem vitruviano atual, cuja centralidade, harmonia, proporção áurea, beleza, ciência e perfeição paradoxalmente conduz o mundo para a mais gritante devastação ecológica e a maior desigualdade de toda sua história.
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Mas para o momento pandêmico atual, a distopia de Nourse é perturbadora. Alan Edward Nourse (1928-1992) nasceu em Des Moines, Iowa. Doutorou-se em medicina em 1955 pela Universidade da Pensilvânia, tornando-se médico e escritor de ficção científica. Seu romance Bladerunner propõe a história uma visão eugenista vigente no universo mais íntimo daqueles que sabiam dos movimentos da medicina. A esterilização de pessoas doentes ou simplesmente pobres, de débeis mentais e mentalmente doentes era ainda tolerada em vários estados americanos, em que uma vigilância médica totalitária, sustentada por discursos científicos eugenistas diante de problemas sociais, fazia da ficção de Nourse escrita em 1974 que apontava para 2009 a ruína moral de seu próprio tempo, em que um mundo legislado por interesses espúrios fez surgir medicinas clandestinas e o comércio de medicamentos não autorizados.
Esse sistema paralelo de suporte à vida, com medicina, medicamentos, equipamentos será gerido pelos chamados bladerunners,
A ideia de burocratas que controlam as sociedades por meio de um conceito de saúde universal é hoje mais gritante e sensível do que nunca. Seus personagens tentam evadir-se da vigilância biométrica, falsificando rastreadores de localização (veja as falsificações atuais sobre as vacinas), constrangidos pelas forças policiais autoritárias. O sentimento atual de vigilância devido à situação pandêmica é dessa mesma natureza, em que cada cidadão se tornou um policial armado da denúncia contra aqueles que não se alinham ao movimento uníssono global pela saúde coletiva.
No tratamento dado por Burroughs do texto de Blade runner a cidade é apresentada dessa maneira:
No ano de 2014, Nova York, centro mundial da medicina clandestina, é a cidade mais glamorosa, mais perigosa, mais exótica, vital e distante que o mundo já viu. O único transporte público é o velho IRT que manca a oito quilômetros por hora através de túneis mal iluminados. As outras linhas estão abandonadas. Carros movidos à mão e a vapor transportam produtos, as estações foram convertidas em mercados. Os túneis inferiores são inundados, dando origem a uma Veneza subterrânea. Os trechos superiores de arranha-céus abandonados, sem serviço de elevador desde os tumultos, foram tomados por gangues de asa-delta e autogiro, montanhistas e macacos de campanário…(Burroughs, W. Blade Runner, a movie, 1979, p. 7)
Nessa versão da novela, será o caráter transgressor dos blade runners que receberá maior ênfase em detrimento das teorias médicas de Nourse. A epidemia de meningite que originariamente marcara a história será substituída por uma epidemia de câncer generalizado que seria tratado com um vírus antigo extraído de um crânio de cristal maia, que causa mutações bizarras e um frenesi sexual incontrolável.
As relações atuais entre o corona vírus e a asfixia, em que a infecção viral funciona, como nos lembra Franco Berardi, como metáfora da mutação cultural, está presente também na obra de Burroughs e antes na de Nourse: “o ovo mortal maia libera o Vírus-23, que emerge do distante mar do tempo morto e se espalha pelas cidades do mundo como incêndios em florestas”.
Mas dessa vez o erotismo foi erradicado pelo vírus da segregação e do isolamento temerário. E o homem amoral de Ridley Scott sucumbiu aos gestores da produção do filme que o obrigaram a erradicar a ambiguidade em que aquele que caça os replicantes é ele também um replicante sem o saber (presente na versão do diretor encontrada anos depois).
Blade runner é um título cuja tradução para nossa língua é lâmina corredora, aqueles que cortam os seus iguais e que os “aposentam” prematuramente. Lembro que aposentar aqui é metáfora para eliminar. Quando a hegemonia dos grandes deu lugar ao empoderamento dos menores o corte parece generalizado: homens e mulheres que receberam o poder para destruir outros, ávidos para desempenhar as funções abjetas em troca de crédito, pais que objetificam seus filhos para realizar os seus próprios sonhos ou para garantir um futuro melhor para si, amantes que aprisionam seus parceiros na esperança de evitar a solidão, a distopia da realidade é infinitamente pior que a da ficção.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor