Coach que cobra R$ 3 mil por curso tem milhões de seguidores nas redes e foi chamado por bombeiros de "fanfarrão" e "irresponsável". Para convencer os possíveis clientes, ele aposta na retórica de tom religioso e garante saber o caminho para "destravar os códigos da prosperidade e do governo da alma"
“Encare os problemas, desafie-se o tempo todo e saia da zona de conforto para acelerar 10 anos de resultados em apenas 1 ano. Lives poderosas com verdades que as pessoas ao seu redor não dão conta de te dizer e nem você dá conta de escutar. O conteúdo mais cabuloso para sair da zona de conforto”.
É assim que o ‘coach’ Pablo Marçal apresenta o seu curso para possíveis ‘alunos’. Para ter acesso ao ‘conteúdo’, o interessado precisará desembolsar R$ 2.997 e o pagamento pode ser parcelado em até 12 vezes.
Marçal tornou-se conhecido do grande público nesta semana por ter colocado sob risco de morte pelo menos 32 pessoas em uma ‘expedição’ rumo ao topo do Pico dos Marins, em São Paulo. Ele foi chamado de ‘fanfarrão’ e ‘irresponsável’ por bombeiros.
Mas antes mesmo do episódio no Pico dos Marins o coach já acumulava uma boa base de seguidores. Apenas no Instagram são 2,4 milhões de pessoas que o acompanham.
Para convencer os possíveis clientes, Marçal aposta na retórica de tom religioso e propõe uma atividade que exige um sacrifício, que promete “destravar” capacidades de superação em cada participante. Em uma publicação, ele escreveu: “Deus é um investidor e um dia vai te perguntar: cadê o investimento que eu fiz em você?”.
Em seu site oficial e em suas redes sociais, Marçal afirma que “destravou os códigos da prosperidade e do governo da alma” e que tem “grande desejo de ajudar as pessoas a prosperarem em suas vidas ensinando os métodos e técnicas que desenvolveu e aplicou ao longo de sua vida”.
Em outro trecho, ele escreveu: “não vai ser fácil, não vai ser confortável e nem algo ‘animado’ de se fazer. Mas eu prefiro que você sofra a dor do desconforto por um curto período da vida para não sofrer essa dor de arrependimento uma vida toda!”.
Entenda o caso
Na última quarta-feira (5), Marçal subiu o Pico dos Marins com um grupo de 67 pessoas, prometendo “códigos que destravassem a mente” ao fim da escalada. O ponto é um dos mais altos do estado de São Paulo, com uma trilha complexa e histórico de mortes — a recomendação de guias que conhecem a região é que a prática de montanhismo na área seja feita nos períodos mais secos do ano, entre abril e agosto.
Durante a escalada, o grupo foi surpreendido por chuva e vento intensos, que destruiram e inundaram barracas. Quase metade dos participantes desistiu da expedição pelo cansaço ou pelas más condições do tempo. As 32 pessoas que seguiram até o topo precisaram ser resgatadas pelos Bombeiros, em operação que levou cerca de nove horas.
No Instagram, Marçal compartilhou vídeos que mostram as pessoas relatando cansaço, frio e querendo desistir da “expedição” enquanto eram convencidas por ele de que a circunstância “era uma chance de crescimento” e que era preciso “vencer os medos”. Os bombeiros revelaram que diversas pessoas corriam risco de morte e já apresentavam quadro de hipotermia.
“Ele foi totalmente irresponsável. Subir com um grupo de pessoas despreparadas e sem equipamento é colocá-las sob risco de morte. Essa foi a pior ação que a gente viu no Pico dos Marins”, afirmou Paulo Roberto Reis, capitão dos bombeiros e chefe da operação de resgate.
Trabalho de ‘coach’
Não existem números oficiais sobre coaches no Brasil. No entanto, só a Sociedade Brasileira de Coaching (SBC) já formou mais de 35 mil coaches, embora nem todos atuem na área. De acordo com especialistas, essa explosão da profissão se deve, entre outros fatores, ao desemprego e à facilidade de se inserir nesse mercado, já que não há regulamentação para o ofício nem fiscalização para os cursos de formação.
Mas à medida que o número de coaches aumenta, cresce também a quantidade de charlatões na área: são treinadores que chegam a prometer ‘reprogramação do DNA e cura quântica de doenças’, invadindo e desrespeitando áreas de trabalhos com base científica e terapêutica.
Por conta dos milhares de charlatões, uma proposta de criminalização do coaching reuniu 20 mil assinaturas no site e-Cidadania e se transformou na Sugestão Legislativa (SUG) nº 26, que tramita no Senado Federal.
Se aprovada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), a ideia poderá se tornar um projeto de lei. Outra corrente formada por deputados e entidades ligadas ao coaching reconhece que existem abusos no mercado e, por isso, deseja regulamentar a profissão, a fim de estabelecer limites e critérios para trabalhadores do ramo. Atualmente, tramitam na Câmara dos Deputados quatro projetos de lei com essa proposta.