O processo de privatização da empresa é prova de que as instituições no Brasil não estão funcionando. Privatização da Eletrobras causará elevação de tarifas e perda de autonomia, apontam estudos
A diretoria da Eletrobras decidiu passar por cima do Tribunal de Contas da União (TCU) essa semana. Em uma manobra que visa claramente a pressionar o tribunal e ao mesmo tempo a acelerar o processo de privatização, a alta administração da empresa publicou a proposta de administração da Assembleia de Acionistas que decidirá sobre a privatização da empresa.
Nos referidos documentos constam valores e operações ainda não avalizadas pelo TCU, o que coloca o tribunal contra a parede: caso deseje recomendar alguma alteração, a assembleia terá de ser remarcada, atrasando todo o processo. Tal movimento ocorre logo após o relator do processo no tribunal apontar uma série de problemas na operação e a interrupção da votação para uma análise mais pormenorizada das questões apontadas.
A Associação de empregados da Eletrobras (AEEL), além de atuar contra essa medida absurda que resultará em aumento das tarifas de energia de energia elétrica e perda de soberania, também em diversos documentos, apontou uma série de irregularidades no processo de cálculo do valor das outorgas que está sob avaliação do TCU, como a utilização de preços futuros da energia até 40% inferiores ao atualmente praticados, a não precificação da potência das geradoras e a superestimação do custo de capital utilizado na valoração dos ativos.
Todos esses “erros” afetam o valor a ser arrecadado pela União em bilhões de Reais, e, por isso, deveriam ser cuidadosamente apreciados pelo TCU. Todavia, na tentativa de evitar alterações no projeto, a alta administração da Eletrobras decidiu tomar uma atitude que na prática tira toda autonomia do tribunal de contas, para levar o processo adiante a qualquer custo, ainda que isso signifique um grande desfalque nos recursos que deveriam ir para União.
De forma surpreendente, em atitude autodepreciativa tão inédita quanto ilegal, o plenário do tribunal de contas decidiu, em decorrência do pedido de vista da parte de Ministro Vital do Rego, acatar o pedido sem obstar o seguimento da desestatização, não obstante o corriqueiro ser o relator conceder a vista e retirar o processo da pauta. Ao decidir por essa interpretação própria à regra processual, o tribunal despeitou as prerrogativas do Ministro Vital do Rego e obscureceu a credibilidade dos estudos desenvolvidos para a desestatização da Eletrobras.
Tal atitude passa a irresponsável mensagem de que a privatização deve seguir independente de qualquer problema que ela possa apresentar. No plenário, um dos ministros que pedia pelo prosseguimento do processo ainda justificou a necessidade de tal medida alegando que um atraso no cronograma poderia afetar negativamente o valor de mercado da empresa, mostrando maior inclinação em envidar esforços para preservação dos interesses de instituições financeiras do que para o cumprimento de sua obrigação de zelar pela defesa do bem público.
Desse modo, a desestatização segue avançando, mas sob a ameaça de um julgamento inconcluso e com cartas marcadas. De toda forma, a manobra automutilante do plenário do TCU, por não encontrar respaldo no regimento do tribunal, pode ser mais um elemento a criar incerteza e abrir um precedente para posteriores questionamentos judiciais.
Infelizmente, esse é apenas mais um entre muitos episódios de inconstitucionalidades, manobras, atropelos e “tratoragens” ocorridos no processo de privatização da Eletrobras. O processo já começou errado quando da edição da Medida Provisória, que não cumpria os requisitos que tentavam justificar sua urgência. O governo utilizou como argumento em defesa da urgência da MP a falsa afirmação de que, de 2019 até 2021, a Eletrobras teve “seu valor deteriorado” e que a empresa não possui “capacidade de investimento”.
Não é preciso ser especialista para verificar a fragilidade desses argumentos. De 2018 a 2021 a Eletrobras acumula lucros que somam mais de R$44 bilhões e a empresa obteve expressiva valorização no mercado. A análise dos resultados da Eletrobras revela ainda que a empresa possui grande capacidade de investimento, sustentada por uma geração de caixa de mais de R$20,4 bilhões anuais, e seu nível de endividamento é baixo quando comparado a outras empresas do setor.
A empresa ainda pagou dividendos extraordinários, não obrigatórios, no início de 2021, com recursos que poderiam ter sido utilizados para investimentos. Portanto, a redução do nível de investimentos da estatal provém, portanto, apenas de decisões políticas das últimas gestões da empresa.
A defesa da urgência da medida contou ainda com o frágil argumento de que o projeto de lei apresentado em 2019 “se encontrava sem encaminhamento no Congresso Nacional”, ignorando que se trata de uma prerrogativa da Câmara dar andamento ou não aos projetos de lei, conforme julgue necessário.
Em verdade, a urgência na discussão prejudicou a avaliação criteriosa da proposta em discussão. Nesse sentido, o próprio relator afirmou no documento que: “a opção por esse instrumento introduz, sim, cenário desafiador para a completa tramitação da matéria em tempo hábil” (página 16 da MP 1.031).
Mas as inconstitucionalidades não ficaram restritas à opção pela forma de tramitação do projeto. O conteúdo da Lei 14.182 também está repleto delas. A proposta aprovada contempla, por exemplo, a continuidade das garantias da União para a empresa mesmo depois de privatizada (veja vídeo aqui), embora a lei proíba que a União atue como garantidora de empresas privadas.
Além disso, a previsão para alienação das ações da Eletrobras, que resultará na perda do controle acionário da União, caso ocorra sem a realização de um processo de licitação, violará o princípio constitucional com precedentes estabelecidos pelo STF nas ADIs 5624 e 5846 e também uma violará o Artigo 37, caput e inciso XXI, da Constituição Federal e do Artigo 29, caput e XVIII, da LEI 13.303/2016.
As pedaladas
Uma das manobras mais sórdidas contidas no projeto de privatização da Eletrobras está na forma do uso dos recursos arrecadados com a operação e na diluição no tempo dos impactos tarifários negativos. A energia elétrica vendida pelas usinas da Eletrobras que operam no sistema de cotas constitui a energia mais barata no balanço energético das distribuidoras.
A descotização prevista no projeto de privatização significa que as distribuidoras terão o direito e a obrigação regulatória de recompor o lastro que hoje é garantido por essa eletricidade mais barata por uma energia que será vendida a preços substancialmente superiores e integralmente repassada para as tarifas dos consumidores cativos.
A descotização será gradual, sobretudo em decorrência do cálculo político do MME de não incentivar maiores aumentos tarifários no ano eleitoral, sobretudo num contexto em que o atual presidente patina nas pesquisas e tem grandes chances de ser derrotado em primeiro turno.
A energia de cotas, um direito dos consumidores brasileiros, haja vista os contratos já assinados até 2042, tem os valores mais baixos do mercado brasileiro. A energia elétrica vendida sob esta modalidade possui um custo médio de R$65,5/MWh. Quando incorporados a essa tarifa os custos referentes ao risco hidrológico, que recai para o consumidor, a tarifa permanece abaixo dos R$103/MWh. Essa tarifa é muito mais baixa do que as praticadas tanto no Ambiente de Contratação Regulado (R$313/MWh) quanto no Ambiente de Contratação Livre (R$182/MWh) para os contratos de médio prazo).
Além da descotização, os consumidores sofrerão também com o impacto da contratação obrigatória de térmicas e PCHs, previstas na Lei 14.182. Somados, a descotização e a contratação obrigatória de térmicas provocarão um aumento de mais de R$400 bilhões nas tarifas dos consumidores residenciais. Os cálculos estão na tabela abaixo:
O cronograma de desembolso estabelecido para o valor a ser pago pela Eletrobras à Conta de Desenvolvimento Energético – CDE pode ser consultado aqui.
Fica óbvio o cálculo político quando não se altera o regime de cotas em 2022 e, mesmo assim, o governo Bolsonaro tenta driblar a Lei de Responsabilidade Fiscal e adiantar R$ 5 bilhões dos recursos arrecadados e que serão direcionados à CDE para que tentar disfarçar os estragos provocados pela péssima gestão do setor nos últimos anos. Essa é a primeira pedalada contida na privatização.
A segunda, que também possui efeitos de longo prazo, está contida nos artigos 6º, artigo 7º e artigo 8º da Lei 14.182, que tratam dos fundos setoriais, também possuem graves problemas de ordem constitucional. De início, a criação do fundo viola o art. 167, XIV da Constituição. Esses recursos deveriam ingressar no caixa da União como receita e sua destinação deveria estar prevista nas leis orçamentárias (PPA, LDO, LOA).
Como se trata evidentemente de obras públicas, sua realização à margem do orçamento configura violação aos artigos 165 e 167, I, da Constituição Federal. Além disso, o comitê gestor que administrará os recursos é composto unicamente pelo Poder Executivo, constituindo em violação à autorização legislativa das despesas públicas. Ao não incluir os fundos regionais e suas obras no orçamento, o governo está pedalando, burlando o teto de gastos, dado que essas obras seriam despesas do Tesouro e não realizadas pela Eletrobras com recursos próprios.
Percurso suspeito e manobras
O longo processo de aprovação da lei que permitiu a privatização da Eletrobras esteve, desde seu início, marcado pelas denúncias de inconstitucionalidades já citadas, mas também por denúncias de corrupção. Depois de mais de 3 anos em tramitação, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), à época presidente da Câmara dos Deputados, revelou que não colocaria o assunto em pauta porque o processo estaria “sob suspeição”, e acusou o ministro da Economia, Paulo Guedes, de estar “negociando a modelagem da privatização da Eletrobras para beneficiar acionistas” (veja matéria aqui).
A declaração de Maia foi dada em evento do Lide, organização de lobby ligada ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB-SP). A acusação se referia à extensão da concessão da Usina de Tucuruí e à permanência de garantias da União para empresa privatizada. Confirmando as suspeitas, a extensão do período de concessão da usina de Tucuruí, que, segundo Rodrigo Maia, estava sendo negociada por Paulo Guedes, foi concedida logo após a promulgação da lei e não foi considerada no cálculo do valor da outorga a ser paga pelos novos acionistas. A permanência da garantia da União para os ativos privados também consta na lei, apesar de ser inconstitucional.
Após a edição na forma de Medida Provisória 1031, sua tramitação não respeitou os ritos das casas legislativas. O governo se aproveitou do momento em que a pandemia explodia no país para, junto aos os presidentes da Câmara e no Senado que alteraram as normas da casa de modo a facilitar as votações, abolindo a necessidade de discussão das Medidas Provisórias pelas devidas comissões obrigatórias, acelerar a tramitação da medida. O rito sumário adotado facilitou a aprovação da proposta, na medida em que detalhes constitucionais e setoriais não precisaram ser discutidos em profundidade nas comissões para depois seguirem para o plenário.
Não por acaso, o apressado trâmite foi também cercado de suspeitas. Na Câmara dos Deputados, o deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) acusou o relator, deputado Elmar Nascimento (DEM-BA), de elaborar um relatório que favorece o empresário Carlos Suarez (veja aqui), sócio de empresas que atuam na área de gás e também possui projetos de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs).
No Senado, o cenário para aprovação da medida era complicado, com o governo com dificuldade para obter maioria e com curto prazo para aprovação da medida. O senador Marcos Rogério, relator do processo, modificou o relatório diversas vezes durante o reduzido prazo de tramitação naquela casa. A versão final de seu relatório foi apresentada apenas horas antes da votação, sob acusações de negociação de emendas para obtenção dos votos necessários à aprovação. Entre as acusações, estão as promessas de instalação de térmicas no estado do Rio de Janeiro e a aprovação de indenização para o estado do Piauí.
Mesmo após a aprovação, em uma manobra tão absurda quanto inédita, o presidente da Câmara, Arthur Lira, promoveu uma alteração na redação da lei, unilateralmente, e depois da redação final da proposta pelo Congresso já ter sido aprovada (veja matéria aqui). Ou seja, de forma totalmente antidemocrática, a redação foi alterada a despeito das discussões realizadas na Câmara e no Senado e a despeito da autorização dos congressistas que nela votaram.
O texto aprovado pela casas dá margem para interpretação de que, na privatização da Eletrobras, a União continuaria controlando a Eletronuclear e Itaipu, e também poderia continuar controlando uma ou todas as subsidiárias da Eletrobras. No limite, o Poder Executivo poderia privatizar a Eletrobras – a empresa holding – mantendo a mesma como acionista minoritária de Chesf, Furnas, Eletrosul e Eletronorte, com a União controlando essas quatro empresas por meio de outra estatal ou de forma direta. As mudanças realizadas alteraram profundamente o mérito da proposta e, em qualquer país com um judiciário sério, a manobra daria margem à derrubada do texto no Supremo Tribunal Federal (STF).
Mas, como todos os processos relativos à privatização caíram para um ministro indicado pelo atual governo, a probabilidade de que ocorra algum julgamento antes de que a privatização torne-se fato consumado é praticamente nula.
Já em andamento, o processo continua sendo alvo de suspeitas. O BNDES, designado para estruturação do processo de privatização, contratou um consórcio liderado pelo Banco Genial, que é um grande acionista da Eletrobras (gestor de 5% das ações preferenciais da empresa), para elaboração da modelagem e estruturação financeira do processo de desestatização.
A AEEL denunciou o Banco Genial por conflito de interesses no TCU, pois, sendo acionista da Eletrobras, não poderia atuar como “avaliador independente”, e muito menos integrar o consórcio contratado pelo BNDES para fazer o duediligence e a modelagem da capitalização. Apesar das diversas denúncias em diferentes instâncias (justiça comum, TCU, CVM), o Banco Genial continua escandalosamente na liderança do processo de privatização da Eletrobras.
E é assim que um processo que parecia complexo e desafiador está avançando de forma acelerada, sustentado pelas manobras e tratoragens e carregando consigo uma série de inconstitucionalidades, ilegalidades, irregularidades e contradições.
Desse modo, a privatização da Eletrobras é uma prova de que as instituições no Brasil não estão funcionando. A marcação da Assembleia de Acionistas pela Administração da Eletrobras para 22/02/2022, que passa por cima do TCU e ignora qualquer papel fiscalizatório que esse poderia exercer, é apenas mais um entre muitos dos episódios que mostraram que os interesses privados de grandes instituições financeiras estão acima das instituições.
Sobre a convocação para essa assembleia, encaminhamos carta aos conselheiros de administração e fiscal da Eletrobras, individualmente, alertando-os para as consequências que tal ação pode gerar para cada um deles.
Apesar de tudo isso, não desanimamos. Montamos estratégias para atuar nas arenas regulatória, jurídica, também junto ao TCU, a CVM e outras instâncias para impedir este crime de lesa pátria, mas contamos também com a mobilização da população e dos trabalhadores de toda Eletrobras! Por isso, continuaremos na luta contra essa privatização absurda, que muito prejudicará a população brasileira, e pedimos que todos se unam na luta contra mais esse crime que o governo de Guedes e Bolsonaro está promovendo!
Somem-se à luta contra a privatização da Eletrobras, pois ela afetará a todos!
*AEEL – Associação dos Empregados da Eletrobras é uma entidade de direito privado, sem fins lucrativos, com sede na cidade do Rio de Janeiro e foi fundada em 1983.
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