Após alinhamento com EUA de Trump, tentativa é de voltar a meio-termo; agronegócio está no centro da aproximação
Thales Schmidt, Brasil de Fato
Ao contrariar os Estados Unidos e manter viagem oficial à Rússia durante a maior crise de segurança na Europa nas últimas décadas, o presidente Jair Bolsonaro (PL) tenta mudar sua política externa, afirmam pesquisadores ouvidos pelo Brasil de Fato. O plano, todavia, chega tarde e não é suficiente para reverter o desgaste criado ao longo de seu governo.
Em Moscou, o presidente brasileiro encontrará seu homólogo russo, Vladimir Putin, na quarta-feira (16). Ele também tem agenda prevista na Duma, a Câmara baixa do Parlamento russo, e reunião com empresários.
A viagem foi marcada ainda em 2021, mas ganhou novos contornos com a escalada da tensão entre Ucrânia e Rússia. A Casa Branca argumenta sem trazer evidências que os militares russos podem atacar a qualquer momento e, junto com Japão, Holanda e Coreia do Sul, pediram que seus cidadãos abandonem a Ucrânia.
O Kremlin nega qualquer intenção bélica na disputa que também envolve os limites da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a venda de gás russo para a Europa e a situação de áreas rebeldes pró-Rússia que estão em guerra civil na Ucrânia.
Washington fez pressão para que a viagem fosse cancelada e relatos surgiram na imprensa brasileira de que a Casa Branca transmitiu o recado de que a visita poderia implicar uma chancela brasileira às políticas russas.
Bolsonaro, e seu Ministério das Relações Exteriores, não cederam. Pelo contrário, fontes do governo afirmaram, sem se identificar, ao jornal O Globo que um dos objetivos é justamente mostrar que o Brasil não é um “pau mandado” do presidente dos EUA, Joe Biden, e demonstrar não ser “submisso”. O Itamaraty, afirma a publicação, acredita que a ideia é abrir um caminho de diálogo entre os presidentes
“Brasil é Brasil. Rússia é Rússia. Faço um bom relacionamento com o mundo todo”, disse Bolsonaro no dia 3 de fevereiro. “Se Biden me convidar, estarei nos EUA com o maior prazer”.
Tarde demais, dizem pesquisadores
O professor de política internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Paulo Velasco, avalia que o episódio demonstra uma tentativa de “voltar às práticas mais tradicionais da nossa diplomacia” após anos de alinhamento automático com o então presidente Donald Trump.
“Aquele período de convergência absoluta com o governo Trump marca um desvio de rota no que é a tradição do Brasil em termos de política externa. O Brasil, pelo menos desde anos 60, busca assumir uma postura internacional mais autônoma conforme o que entende como sendo o seu interesse nacional”, analisa o pesquisador.
Bolsonaro repetiu o coro de Trump de que as eleições que o afastaram da Casa Branca teriam sido fraudadas e demorou mais de seis semanas para reconhecer publicamente a vitória de Biden. Além do episódio, no período o Brasil também se alinhou com Washington em questões estratégicas da diplomacia mundial, como a disputa em torno do 5G e o uso de tecnologia chinesa.
Os filhos do presidente se empenharam publicamente na defesa de Trump e o ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, chegou a escrever que o ex-presidente dos EUA seria responsável por “salvar o Ocidente” e atacou a China com teorias da conspiração.
Para Velasco, com o afastamento de Araújo e a posse de um novo ministro, Carlos França, a diplomacia brasileira “passa um pouco menos de vergonha”, mas o esforço não é suficiente para reverter os estragos dos últimos anos.
“A nossa diplomacia tem sido um desastre desde que começou o governo Bolsonaro. Acho que é um pouco tarde demais para, no último ano de governo, caso não seja reeleito, ele tentar de fato reassumir uma posição mais pragmática e autônoma. Acho que a comunidade internacional continua enxergando, claro, a política externa do Brasil, do governo Bolsonaro, como uma política externa inconsistente, falha, errática, caótica. Falta a ela uma lucidez, uma coerência”, diz o professor da Uerj.
O professor de relações internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), Flávio Rocha de Oliveira, acredita que um dos objetivos da viagem é ter mais atenção da Casa Branca, mas também acredita que é tarde demais para reverter um isolamento cultivado pelo próprio Bolsonaro ao longo dos últimos anos.
“Eu acho que não vai colar. O Bolsonaro pode querer sinalizar isso [que não está isolado], ele vai fazer uma sinalização. Mas o fato é que o próprio presidente, a figura da liderança política do presidente, ela está desprovida de qualquer projeto nacional ou projeto de integração efetiva do Brasil nas relações internacionais”, afirma Rocha.
Viagem interessa ao agronegócio
A Rússia é a maior fornecedora de adubos e fertilizantes químicos ao agronegócio brasileiro. Em 2021, os russos venderam US$ 3,5 bilhões do material ao Brasil, o que se refere a 23,3% do total do mercado de importações do setor no país, à frente de China (14%) e Marrocos (11%).
Ainda no setor de fertilizantes, o grupo russo Acron comprou a Unidade de Fertilizantes Nitrogenados (UFN3) da Petrobras, em Três Lagoas, no Mato Grosso. A compra foi anunciada nos primeiros dias de fevereiro deste ano.
O agronegócio também tem uma participação relevante na pauta de exportações do Brasil à Rússia. Em 2021, os três produtos que o Brasil mais vendeu para os russos foram soja (22%), carnes de aves (11%) e café não torrado (8,4%).
“Uma das razões é garantir que o agronegócio brasileiro continue tendo acesso a esses fertilizantes da Rússia. Se ele não tiver esses fertilizantes em preço bom, o agronegócio vai ter que começar a comprar de outros fornecedores e vão ter que pagar mais caro. E isso é uma diminuição de lucro do pessoal do agronegócio”, diz Oliveira.
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