A posição chinesa, longe de ser de uma “neutralidade estratégica”, é um aviso. Se a ascensão da China em si já era o grande fato de nosso tempo, soma-se a ela a atual cartada russa sobre os EUA e a OTAN. Uma nova história começa no mundo. Talvez uma nova Vestfália
Elias Jabbour*, Carta Capital
Compreender a posição chinesa no recente conflito ucraniano passa por perceber ao menos dois fatos marcam nossa época. O primeiro, relacionada à meteórica ascensão chinesa e o surgimento do que chamamos de uma “nova formação econômico-social”, centrada em uma imensa base produtiva e financeira públicas cujas lógicas de funcionamento escapam a qualquer teoria do desenvolvimento. O segundo acaba de ocorrer, mas que vem sendo desenhado desde o fim de 2021, quando a Rússia decidiu colocar seus próprios termos à mesa em relação ao destino da Ucrânia como última fronteira de expansão da OTAN.
A combinação entre os dois fatos/fenômenos nos apresenta uma dupla desmoralização do Ocidente: a Covid-19 expôs os limites do capitalismo financeirizado frente à força do socialismo chinês; e a atual cartada russa marca a desmoralização política e militar dos EUA e, consequentemente da OTAN.
Estaríamos, assim, diante de condições objetivas ao surgimento de um nova Paz Vestfália, inclusive já proposta pelas chancelarias russa e chinesa. No documento apresentado pelos dois países, fica evidente uma proposta de “refundação” do sistema internacional criado pelos europeus há quatro séculos.
É no contexto desta carta que os chineses – pedindo cautela aos envolvidos e sugerindo distância aos EUA – se posicionam. Sem alardes, sem palavras de ordem. Apenas levando à reflexão do quão são inaceitáveis e sem lógica as ondas de expansão da Otan.
Qual seria a reação da opinião pública internacional caso Rússia posicionasse mísseis e armas nucleares em direção à Washington, utilizando-se das fronteiras dos EUA com o México, Canadá ou reabrindo uma base militar em Cuba?
Putin vê como melhor solução que a Ucrânia se recuse a aderir à OTAN e permaneça neutra. A posição da chancelaria chinesa é parecida. Segundo sua porta-voz, “as preocupações legítimas de segurança da Rússia devem ser levadas a sério e tratadas”. A convergência não diz respeito somente ao caso ucraniano, mas também às constantes ameaças à soberania nacional chinesa impostas pela presença militar ocidental.
A China de hoje não é mais aquele país que recebia capital estrangeiro e fazia engenharia reversa. Acabou o tempo do low profile.
Na mesma proporção, os legítimos chineses interesses em matéria de segurança nacional tem sido violados pelos EUA. Taiwan continua se armando e sendo atiçada a declarar sua independência. Uma aliança militar foi formada por EUA, Austrália e Reino Unido para conter (sic) um tal de “expansionismo chinês”. Novamente a broma. É como se porta-aviões chineses estivessem passeando impunemente pelo golfo do México, mas ocorre o oposto. A China é constantemente provocada no estreito de Taiwan e no mar do sul da China.
Após a completa derrota e desmoralização dos EUA no Oriente Médio – e com a China ocupando rapidamente o espaço econômico aberto pelo lastro de destruição deixado pelo “ocidente” – restou ao atlantismo uma jogada arriscada e nada inteligente: unir a China e a Rússia em um jogo que nada tinha a ver com a conveniência ideológica pós-1949. O movimento hoje é oposto. Uma união eurásica está sendo imposta de fora para dentro dos territórios russo e chinês.
A posição chinesa, longe de ser de uma “neutralidade estratégica”, é um aviso. Se a ascensão chinesa em si já era o grande fato de nosso tempo, soma-se a ela este recente xeque-mate de Putin sobre os EUA e a OTAN. Uma nova história começa no mundo. Talvez uma nova Vestfália.
*Elias Jabbour é Professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE) e em Relações Internacionais (PPGRI) da UERJ. É autor, com Alberto Gabriele, de “China: o socialismo do século XXI” (Boitempo, 2021)
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