Por que não se vê notícias sobre derramamento de sangue de civis no Iêmen e na Somália? Alguma manchete sobre o bombardeio dos EUA ao país africano?
Denis Castilho*, Pragmatismo Político
Além dos 28 países que passam por conflitos de diferentes ordens, neste início de 2022 pelo menos quatro regiões enfrentam guerras. Uma delas ocorre na Síria, onde o governo de Israel vem matando combatentes pró-Síria no ar. Na Somália, os Estados Unidos lançaram ataques com mísseis e a Arábia Saudita, por sua vez, já matou milhares de civis no Iêmen.
Organizações como Médicos Sem Fronteiras (MSF) têm divulgado informações a respeito desse último conflito confirmando que a guerra civil no Iêmen é tida como uma das maiores crises humanitárias atuais com mais de 377 mil mortes, 3,6 milhões de deslocados internos e 24 milhões de pessoas carecendo de suporte humanitário, conforme destaca Paulo Motoryn (2022). Na Somália, bairros residenciais foram bombardeados e ataques com drones vem sendo realizados.
Outra guerra acontece na Ucrânia desde 2014 no Donbass. Durante oito anos essa guerra vem sendo insuflada pela ultradireita ucraniana com patente incitação do Ocidente, por um lado, e apoio russo aos separatistas, por outro lado. Essa guerra já provocou mais de 14 mil mortos e 1,5 milhão de deslocados. Os dados são das Nações Unidas.
O nobre leitor deste texto pode estar confuso. Ocorre que, para a mídia corporativa brasileira (que apenas reproduz informações da Associated Press e Reuters) ou para quem acredita e tem ela como único meio de informação, existe no momento apenas uma guerra (a da Ucrânia) e ela começou há poucos dias.
Fique por dentro:
Conflito na Ucrânia pode ser o início de uma 3ª Guerra Mundial?
As origens da crise na Ucrânia e como o conflito se tornou inevitável
A narrativa do que se passa ali ou o acobertamento do que ocorre na Somália, a despeito de todo drama, virou espetáculo em recendente controle corporativo da informação.
Nessa guerra, o império já ganhou.
Não fosse assim, os piedosos também estariam postando suas orações pelas vítimas da Somália ou, meses atrás, da Palestina. Veríamos uma verdadeira comoção internacional (com efetiva ajuda humanitária) aos refugiados asiáticos. No entanto, a imensa maioria é invisível às manchetes e ao pranto.
Por que não se vê notícias sobre derramamento de sangue de civis no Iêmen e na Somália? Alguma manchete sobre o bombardeio dos EUA ao país africano?
Alguma mobilização internacional seguida de ação humanitária e tons piedosos à essas vítimas? Vidas pretas importam, mas importam onde? A Polônia e tantos outros países europeus vêm há tempos negando abrigo e passagem a refugiados asiáticos.
O mais recente movimento migratório europeu e sua repercussão midiática seriam suficientes para uma lição global – ou ao menos uma demonstração sobre quais vidas (e de onde) valem mais?
Está fragrante a absoluta subordinação dos meios de comunicação corporativos brasileiros às agências estadunidenses e britânicas. Sem dúvida, têm sido eficientes instrumentos de imperialização porque a guerra de informação, desinformação e contrainformação é um ponto chave do intervencionismo contemporâneo. A guerra, hoje, também é estética e se tornou um produto roteirizado. Ela gera o espetáculo da informação porque busca a confirmação coletiva que reforça o enredo.
Leia aqui todos os textos de Denis Castilho
Em vista disso, as mídias, redes virtuais e o sensacionalismo cumprem papel fundamental e ainda revigoram o oriente como uma invenção binomial do ocidente, tal como muito bem destacado por Edward Said (1990). O “nós contra eles” nunca esteve tão vivo e adornado pela peste dos nacionalismos. Eis aí uma ferramenta perigosa e tão bem manipulada pelo império agora traduzido no espetáculo de uma comoção seletiva.
Impressionante como as notícias criam um imaginário seletivo a ponto de colegas bem instruídos caírem nas chantagens mass-medio-afetivas ao publicarem postagens parciais e enviarem preces que acabam por linhas tortas ou retas canonizando neofascistas e neonazistas incitados (e apoiados) há anos pelos EUA.
↗ Como os EUA usaram o neonazismo na Ucrânia para isolar a Rússia
A geopolítica dos Estados não abre espaço à ingenuidade. Ela deve ser condenada (assim como os nacionalismos e as guerras que dela derivam) de forma veemente, mas entendendo de onde ela realmente é forjada. Sua análise também deve abranger absoluta compreensão histórica e geográfica do tabuleiro.
Aqui me reporto ao caso russo-ucraniano envolvendo eminente interferência estadunidense – além do imbróglio do Nord Stream 2 e o projeto de rearranjo geopolítico sino-russo via ampliação de diferentes redes que poderão configurar uma nova forma de imperialismo frente ao já consolidado.
Por isso tudo, o posicionamento anti-guerra não pode, de forma alguma, ceder às chantagens imperialistas, à guerra de narrativas e muito menos ao espetáculo da informação.
*Denis Castilho é doutor em geografia e professor do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás.
Referências
MÉDICOS SEM FRONTEIRAS. Disponível em: https://www.msf.org.br/
MOTORYN, Paulo. Guerras pelo mundo: Síria, Somália e Iêmen também sofreram ataques aéreos nos últimos dias. Brasil de Fato, 25 fev. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3pnrVMY
NAÇÕES UNIDAS. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br
SAID, Edward w. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Tradução: Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Acompanhe Pragmatismo Político no Instagram, Twitter e no Facebook