O crime artístico mais chocante do século 21: dois Van Gogh furtados em 3 minutos. Pintor holandês falecido há mais de um século traçou a agitação de sua própria alma perturbada com tanto brilho, tanta sutileza, tanta sensibilidade, que continua a cativar milhares de pessoas de diferentes origens em todo o mundo
Andrew Graham-Dixon, BBC*
Eram quase 8 horas da manhã do dia 7 de dezembro de 2002, um sábado. Estava frio, apenas 2°C, e quase não havia ninguém nas ruas do centro da capital holandesa.
No bairro dos Museus, uma van parou. Dois homens descarregaram uma escada e colocaram algumas ferramentas em uma bolsa. Pareciam dois trabalhadores comuns.
Eles encostaram a escada na parede, colocaram suas balaclavas e começaram a escalar um dos edifícios culturais mais conhecidos de Amsterdã, o Museu Van Gogh.
Escondidos atrás de uma parede, eles usaram um par de marretas para abrir um buraco em uma das janelas de segurança reforçada da galeria, disparando o primeiro de uma série de alarmes.
Lá dentro, eles rapidamente olharam para as paredes e pegaram duas pinturas que estavam perto do buraco por onde haviam entrado, uma paisagem marinha e uma imagem de uma igreja, ambas do período inicial do pintor holandês Vincent van Gogh (1853-90), um dos artistas mais importantes da história.
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Isso acionou mais dois alarmes, enquanto o sistema interno de câmeras de vigilância os filmava.
Um dos seguranças do museu entrou em contato com a polícia, mas ela chegou, estava de mãos atadas porque os regulamentos do museu não permitiam que ela enfrentasse os ladrões.
Os assaltantes então colocaram as pinturas, ainda em suas molduras, em sua bolsa de ferramentas e escaparam por meio de uma corda que amarraram no início do assalto a um mastro na frente do prédio.
Quando a polícia chegou, eles voltaram a se disfarçar de trabalhadores comuns e fugiram. Toda a operação durou apenas 3 minutos e 40 segundos.
Mas por que furtar obras de um dos artistas mais famosos do mundo? A quem poderiam ser vendidas, sendo bens praticamente não comercializáveis? Por que alguém as compraria, se elas teriam que ser escondidas para sempre?
Como as obras-primas podem ser salvas antes de serem perdidas para sempre?
Qual foi a verdadeira história por trás do roubo de duas das pinturas mais pessoais e queridas de Van Gogh?
O mais amado e o mais furtado
Van Gogh é um dos melhores entre os grandes artistas da história.
Suas pinturas, em todas as suas formas, são populares com o público geração após geração. E um ímã para colecionadores de arte milionários ou bilionários.
“Retrato do Dr. Gachet”, por exemplo, foi vendido pela casa de leilões Christie’s de Nova York em 1990 por US$ 82,5 milhões (quase R$ 900 milhões em valores atuais).
Quando obras de arte são negociadas por quantias desse patamar, não é de se admirar que o mercado de arte esteja repleto de trapaceiros, negociantes fraudulentos, falsificadores… e ladrões.
E de todos os artistas cujas obras foram roubadas, Vincent van Gogh ocupa praticamente o primeiro lugar.
Desde que os nazistas na Alemanha confiscaram pela primeira vez as pinturas de Van Gogh em 1937, mais de 40 de suas obras-primas foram roubadas em pelo menos 15 assaltos em galerias ao redor do mundo.
Muitas acabaram sendo recuperadas, mas outras ainda estão desaparecidas.
O ladrão
Em Amsterdã, no assalto de 2002, logo teve início uma corrida para rastrear as pinturas roubadas do Museu Van Gogh antes que elas desaparecessem para sempre em alguma coleção privada.
A polícia holandesa colocou um de seus principais detetives no caso: Bob Schagen. Seu instinto lhe disse que o furto tinha sido obra de ladrões profissionais.
Mas os assaltantes, mesmo que o fossem, cometeram um erro crucial. Entre os restos da janela quebrada havia um boné, e abaixo, junto à corda, outro.
“Havia DNA neles”, relata Schagen.
A análise de DNA levou ao principal suspeito, Octave “Occy” Durham, um ladrão profissional. “Ele era conhecido por ser um ladrão muito bom. Sabíamos que ele era especializado em grandes roubos, então seguimos seu rastro.”
Depois de fugir para a Espanha, Occy Durham foi finalmente preso em dezembro de 2003 e levado de volta à Holanda. Não havia dúvida de que ele havia sido um dos ladrões das pinturas, mas ele se recusava a revelar onde as obras estavam.
Uma das poucas maneiras de rastrear as obras era descobrir se os suspeitos de repente estavam com muito dinheiro e, em caso positivo, descobrir de onde ele tinha vindo.
“Escutas telefônicas apontaram sinais de que eles venderam as pinturas rapidamente“, disse o promotor holandês Willem Nijkerk. “Há uma intervenção telefónica datada de março de 2003, quando se fala num montante de 50 mil euros. E isso era apenas metade do que eles esperavam receber.”
Além disso, a polícia descobriu que eles estavam comprando relógios, carros, faziam viagens à cidade de Nova York, ao parque de diversões Disneyland Paris.
“Pinóquio”
Há evidências em uma escuta policial feita antes de Occy Durham ser preso, descrevendo a época em que ele vendeu as pinturas. Ele recebeu o dinheiro de um homem misterioso que se apresentava como Pinóquio em um clube famoso no centro da região de Old Amsterdam.
Mas as autoridades não conseguiram encontrar ninguém com o pseudônimo “Pinóquio”.
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Em maio de 2004, Occy Durham foi levado a julgamento pelo furto dos dois quadros. A amostra de DNA e as escutas telefônicas foram suficientes para sentenciá-lo a quatro anos e meio de prisão, além de uma indenização de 350 mil euros (quase R$ 3 milhões em valores atuais) ao Museu Van Gogh. Mas ele ainda se recusava a revelar quem estava com as obras.
O juiz que emitiu sua sentença descreveu seu furto como um crime contra o patrimônio cultural holandês, referindo-se à arte como parte da alma da nação.
Van Gogh
Mas Van Gogh faz parte da alma de muitos.
Por que continua a cativar tantas pessoas de diferentes origens em tantas partes do mundo? Talvez seja em parte porque ele traçou a agitação de sua própria alma perturbada com tanto brilho, tanta sutileza, tanta sensibilidade, que você não pode deixar de ser afetado por isso.
Aqui, ele está tendo um bom dia.
Existem outras pinturas muito mais sombrias.
E o fato de sabermos que sua vida terminou em estado de miséria é outra coisa que nos comove em relação a Van Gogh.
Podemos sentir sua luta contra a escuridão em todos os momentos.
Essa simplicidade, tragédia e beleza de sua vida fascinaram as pessoas desde que sua genialidade foi descoberta após sua morte.
As pinturas furtadas contam suas próprias histórias, e cada uma tem um significado especial na vida e obra de Van Gogh.
Os ladrões provavelmente não sabiam, mas quando roubaram uma pequena paisagem marinha um pouco escura, estavam tomando uma parte muito importante da carreira de Van Gogh como artista, porque ele a pintou na segunda quinzena de agosto de 1882.
Até então, ele só havia trabalhado em aquarela e lápis, mas seu irmão Theo o incentivou a pintar a óleo, e daquela vez ele finalmente seguiu o conselho.
Ele comprou alguns tubos de tinta, uma nova invenção que permitia aos artistas saírem do estúdio, e foi para a praia de Scheveningen, no meio de um vendaval.
O vento soprava com tanta força que toda vez que ele aplicava tinta, a areia se incrustava nela.
Ele teve que raspá-lo e começar de novo.
O resultado final foi esta imagem pequena, mas poderosa.
E como ele disse ao seu irmão… “Eu não posso acreditar que não tinha descoberto a pintura a óleo. Há uma espécie de infinito nisso. (…) Não consigo colocar em palavras. Sinto que a pintura está em minha medula, em meus próprios ossos“.
Desde aquele momento, Van Gogh sabia que estava destinado a ser pintor.
É por isso que, quando essas duas obras foram furtadas, alguns tentaram se consolar dizendo: “Pelo menos não é uma de suas grandes obras-primas” Mas esta é uma peça maravilhosa, é a primeira vez que o vemos usando esse material, óleo, com que ele faria coisas tão mágicas.
A outra pintura roubada também foi de grande importância pessoal para Van Gogh e sua família, e uma pessoa foi particularmente afetada por seu desaparecimento.
“Vincent não teve filhos. E seu irmão, Theo, foi a pessoa mais importante em sua vida. Theo é meu bisavô“, diz Willem van Gogh.
A obra “Congregação Deixando a Igreja Reformada em Nuenen” foi criada pelo artista para sua mãe no início de 1884. Mostra a igreja onde seu pai era pastor.
“Seu pai morreu um ano depois, e Van Gogh quis homenageá-lo. Ele acrescentou todas aquelas figuras, pintadas com sombras, como se estivessem assistindo a um funeral, simbolicamente o de seu pai“, diz o bisneto de Theo.
Com o passar do tempo, sem encontrar as pinturas, Willem passou a temer o pior. “Pensei: ‘Provavelmente nunca mais os verei novamente’“.
O que fazer depois de um furto como esse?
Como você faz para recuperar pinturas roubadas?
Em 2005, em Hoorn, no norte da Holanda, 24 obras-primas holandesas foram levadas em um único assalto, arrancadas de suas molduras. Desapareceram por uma década. Mas algumas foram recuperadas repentinamente em 2016.
A história oferece uma visão assustadora e perturbadora do mundo obscuro do crime internacional de arte. “Não existem ‘criminosos da arte’, eles são simplesmente criminosos”, diz Ad Geerdink, diretor do Museu Westfries,
“Eles não se importam com o que estão roubando. Trataram muito mal as pinturas. Nós as recuperamos em condições muito, muito, muito ruins.”
Para eles, diz Geerdink, “as pinturas nada mais são do que mercadorias a serem comercializadas“.
Meras moedas de troca
As artes furtadas foram negociadas várias vezes e acabaram na Ucrânia, nas mãos de senhores da guerra, oficiais de inteligência e altos funcionários do governo.
“O mundo da arte e o mundo do crime estão muito mais intimamente relacionados do que a maioria das pessoas imagina“, diz o investigador independente de crimes de arte Arthur Brand, que foi fundamental para trazê-las de volta.
Mas como encontrar o que desapareceu?
“O submundo do crime é muito pequeno. E eles fofocam o dia todo. Então, eventualmente, você consegue uma pista. A arte furtada passa de mão em mão muito rapidamente. As peças são usadas como notas para o comércio de armas e drogas“.
Qual é o seu valor nesse mundo?
“O padrão é 10% do valor no mercado livre. Ou seja, se você roubar uma pintura no valor de US$ 10 milhões, pode usá-la como uma nota de 1 milhão de dólares“.
Esse uso de pinturas como moeda do mercado paralelo coloca a própria arte em grande risco.
“Esses caras não têm ideia de como tratar as pinturas; eles as armazenam em algum lugar úmido e depois de alguns anos algumas delas se desfazem. Então, você não pode esperar 20 anos porque o risco é cada vez maior“.
Tic-tac
Em Amsterdã, anos se passaram sem que ninguém soubesse das duas pinturas furtadas em 2002. “Nós nunca paramos de procurá-las. Mantivemos a esperança, por isso sempre investigamos todas as informações sobre seu paradeiro“, disse Nijkerk.
Na ausência de novas informações, a investigação em Amsterdã perdeu força. Mas em 2016 tudo mudou, graças a uma investigação discreta, mas persistente, em uma das cidades mais bonitas da Itália, que também tem o seu lado sombrio. O crime organizado atormenta a cidade de Nápoles há anos.
A Camorra “é uma das maiores e mais antigas organizações criminosas da Itália, composta por uma série de facções muitas vezes violentamente concorrentes“, disse Stefania Castaldi, uma das principais promotoras da região, que lidera a luta contra a organização.
Em grande parte erradicada sob o líder fascista Benito Mussolini, a Camorra voltou ao poder durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45), quando os militares dos EUA fizeram acordos secretos com chefes do crime para derrubar Mussolini.
As atividades da Camorra incluem atualmente tráfico de drogas, despejo ilegal de lixo tóxico, lavagem de dinheiro, extorsão, prostituição, assassinato e comércio ocasional de arte roubada.
E apenas alguns meses depois que os Van Gogh foram furtados, uma guerra brutal eclodiu em Nápoles entre diferentes facções da Camorra pelo controle do tráfico de drogas.
No final, alguém acabou vitorioso… mas quem?
Por meio de informantes, Castaldi apurou que Raffaele Imperiale, um napolitano que morava em Amsterdã, “era um dos maiores traficantes de drogas do mundo“. Mas o que isso tem a ver com os Van Goghs roubados vendidos ao tal de Pinóquio em Amsterdã mais de 10 anos antes?
A descoberta veio de uma fonte incomum: o próprio suspeito.
Imperiale revelou tudo aos promotores italianos em uma confissão rara, escrita em 29 de agosto de 2016.
“Io, subscrito Raffaele Imperiale…”
(“Eu, abaixo assinado Raffaele Imperiale, nascido em Castellammare di Stabia, declaro o seguinte”).
Ele então entra em grandes detalhes sobre como entrou no negócio de drogas em Amsterdã na década de 1990 e quanto dinheiro ganhou.
“Migliaia di chili di cocaina…”
(“Milhares de quilos de cocaína foram vendidos”).
E o que ele fez com esse dinheiro?
Bem, no que diz respeito a esta história, a parte interessante vem no final do longo documento: no Anexo Um, na lista de seus bens pessoais que Imperiale estava disposto a entregar ao Estado.
“Due quadri di Vincent van Gogh”.
(“Duas pinturas de Vincent van Gogh”).
“Di valore inestimabile”
(“Inestimável, que comprei em 2002, com recursos da organização, por cinco milhões de euros”).
Raffaele Imperiale era Pinóquio.
Arte por liberdade
Mas por que ele disse que pagou 5 milhões de euros pelas pinturas quando os holandeses tinham certeza de que apenas 100 mil de euros haviam mudado de mãos?
Afinal, em primeiro lugar, por que ele queria as pinturas? E por que ele confessou?
As respostas estão no próprio sistema jurídico italiano, em uma cláusula destinada a incentivar testemunhas a se manifestarem contra o crime organizado.
Se eles fornecerem informações até então desconhecidas, explicou Castaldi, eles podem obter uma pena reduzida.
Para Imperiale, algo tão valioso, não apenas para a Itália, mas para o mundo, como um par de pinturas de Van Gogh, poderia ser a última moeda de troca no acerto de contas final: o número de anos ele passaria atrás das grades.
Isso resolve uma das questões com as quais começamos; nos dá o motivo do crime.
No entanto, ainda havia uma pergunta: onde estavam as pinturas?
Embora o pai de Imperiale nunca tenha participado das atividades criminosas de seu filho, nem tenha sido investigado, ele foi procurado pelos investigadores em sua residência.
“E lá as encontramos, escondidas sob um piso falso na cozinha, envoltas em produtos de limpeza“, relata o coronel Giovanni Salerno.
Depois de quase 14 anos, as pinturas perdidas de Van Gogh reapareceram diante dos olhos do mundo no Museu Capodimonte, em Nápoles.
“Elas simbolizam a história de um milagre“, disse Alex Ruger, diretor do Museu Van Gogh. “E também é uma questão de orgulho local e nacional aqui na Itália. Foi um golpe contra o crime organizado. Foi uma celebração em muitos níveis, com uma dimensão adicional, do bem contra o mal, e o bem venceu“.
Seis meses depois, as pinturas finalmente chegaram ao Museu Van Gogh, em Amsterdã.
Axel Ruger (centro), diretor do museu Van Gogh, posa ao lado das duas pinturas recuperadas em 30 de setembro de 2016
t”Você pode imaginar como ficamos extremamente felizes e muito, muito emocionados por tê-las de volta em sua própria casa“, exclamou Willem van Gogh.
No fundo, era uma história sobre o sagrado e o profano.
As ligações entre o mundo do crime e o da grande arte não devem nos surpreender, porque os criminosos não são ignorantes: eles sabem o quanto valorizamos as obras dos grandes pintores. Eles entendem que, se as possuírem, quando chegar a hora do julgamento final, poderão usá-las para ganhar alguns anos de liberdade.
A própria natureza da transação significa que, em muitos casos, receberemos as pinturas de volta. Mas não é um processo fácil, e um pequeno golpe de sorte é sempre necessário.
Se a promotora Stefania Castaldi não tivesse investigado a Camorra tão profundamente, ela nunca teria alcançado Imperiale e os Van Gogh.
“Às vezes você vira uma esquina e encontra algo inesperado”, diz Castaldi. “É por isso que você deve manter a fé e nunca desistir. Devemos amar e cuidar de nossa herança porque a beleza é algo que nos une a todos“.
*Este artigo é adaptado do documentário da BBC “Stealing Van Gogh”
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