Quando Putin invade a Ucrânia reativa a velha ordem eslava
Entender a história da revolução russa sob o prisma do termo “desenvolvimento” provoca um estranhamento. Pois “desenvolvimento” é uma palavra edulcorada para ocultar o predomínio dos valores das elites da Europa Ocidental sobre o mundo todo
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
“O poder vicia como a carne sangrenta” – Goya
Deus não produz linhas retas. O toróide é a revolução, em que tudo gira e retorna ao mesmo ponto num infinito espaço topológico homeomorfo. E este é o máximo de igualdade a que se pode ambicionar. É a diversidade que prevalece no final e o respeito às diferenças, e o horror às desigualdades, as únicas alternativas para um mundo polimórfico.
Entender a história da revolução russa sob o prisma do termo “desenvolvimento” provoca um estranhamento. Pois “desenvolvimento” é uma palavra edulcorada para ocultar o predomínio dos valores das elites da Europa Ocidental sobre o mundo todo.
Sou um leitor voraz de jornal. Assino pelo menos quatro jornais diários e os devoro nas primeiras horas matinais com um prazer indizível, ao sabor de um chá inglês. Poderia exercer tranquilamente a função de copydesk sem nenhum problema.
Eis que nessas buscas desenfreadas pelo recôndito, topo com esta notícia deliciosa num velho jornal: Ele tem a força. Vida cultural e intelectual na Rússia se divide diante da hegemonia política de Vladimir Putin, que deve fazer seu sucessor nas eleições políticas presidenciais de hoje .
No fundo, a parte que mais me interessou foi rever a velha disputa entre eslavófilos e ocidentalizantes tão atualizada pela Rússia contemporânea. Leiamos juntos a preciosidade:
“Primeiro brasileiro a basear uma tese sobre a União Soviética em arquivos disponibilizados com sua redemocratização, Ângelo Segrillo chegou a Moscou pela primeira vez no auge da perestroika, em 1989.
Já então graduado em filosofia nos EUA, se especializou em língua e literatura russa pelo Instituto Puschkin, em 1992.
Nos anos 90, voltou à Rússia várias vezes, pesquisando os arquivos que serviriam de material para seu doutorado em história pela Universidade Federal Fluminense, concluído em 1999 e lançado no ano seguinte como “O Declínio da URSS – Um Estudo de Causas” (ed. Record).
Depois, lançaria mais três livros (um como co-autor), sempre tendo a Rússia como tema.
Nesse período, viu as transformações que a abertura para o Ocidente e o capitalismo levaram às idéias russas.
Do entusiasmo com a liberdade e de consumo do início da década, os russos passaram à desilusão causada pela crise econômica, que, segundo ele, fez crescer o movimento “eslavófilo”, defendendo uma sociedade russa “única” e dissociada da Europa.
Para Segrillo, que leciona no departamento de história da USP, à exceção dos intelectuais clássicos, menos envolvidos com política, o debate em torno das eleições e do governo da Rússia se reparte em dois campos principais.
Os eslavófilos, simpáticos ao “homem forte” Putin – que, segundo as pesquisas, deve eleger hoje seu candidato à sucessão presidencial, Dmitri Medvedev, de quem pretende se tornar primeiro-ministro – e os “ocidentalistas”, que rejeitam seu autoritarismo.”
Podemos dispensar a entrevista em sua totalidade, já que para o que nos interessa, esse trecho é suficiente. Senão vejamos: segundo a notícia, a disputa entre eslavófilos e ocidentalistas se dá, nesse contexto, entre os partidários de Putin, contra, portanto, o capitalismo selvagem, e aqueles que querem a continuidade das reformas, em que a memória da revolução russa ainda é a fonte nutriente do futuro.
Seria muito legal investigar a fundo essa questão. É o que proponho no ensaio a seguir.
A liberdade é a possibilidade de escolher um outro mundo além desse em que a injustiça e o horror da iniqüidade definem nossa derrisão.
Em 1864, um jornalista francês chamado Maurice Joly publica um livro que hoje, observado retrospectivamente, soa perturbador. Com o título de Diálogo no inferno entre Maquiavel e Montesquieu, a obra trazia referências explícitas acerca de um plano de dominação global a partir de uma perspectiva que hoje podemos chamar de eurocêntrica.
Publicado na França como uma forte crítica não somente a Napoleão III, mas também como denúncia a todo o sistema financeiro internacional em construção, que apontava um claro projeto de dominação da Europa por uma burguesia que se pretendia transnacional e que se consolidava definitivamente no poder, o livro não seria levado muito a sério pelos historiadores futuros, nem mesmo pelos coetâneos .
Não era o único livro a tratar de um projeto de dominação global. Como mostra Umberto Eco , livros como Le juif errant (1844-45) e Des mystères du peuple (1849-57), ambos de Eugène Sue, já tratavam de temática semelhante, assim como o romance Biarritz, de Hermann Gödsche, escrito em 1868. De alguma forma, essa meme estava “no ar” por aqueles tempos.
Na Alemanha, um pouco antes, Herder forjava a cultura alemã em origens góticas, inaugurando um estilo arquitetônico fundado nessa memória construída.
Na Inglaterra, em 1840, a construção do Parlamento baseava-se igualmente numa forjada memória gótica, de tal sorte que quem testemunha a arquitetura da casa parlamentar pense ter sido construída em 1340 pelos próprios godos.
Na Escócia, as elites cultas “inventavam” os poemas gaélicos de Ossian que justificavam sua distinção em relação aos ingleses. Era um fenômeno cujo fundamento surpreendia a emergência do Estado-nação e a história que se preparava era, toda ela, uma invenção que ambicionava uma narrativa coerente, cuja fonte matricial eram os gregos.
Todavia, a contundência reveladora do texto de Joly deve ser retomada.
“Não vejo salvação para essas sociedades, verdadeiros colossos com pés de barro, fora da instituição de uma centralização extrema, que ponha toda a força pública à disposição dos que governam; numa administração hierarquizada, semelhante à do Império Romano, que regule mecanicamente todos os movimentos dos indivíduos; num vasto sistema legislativo que tome de volta, uma a uma, todas as liberdades que haviam sido imprudentemente concedidas; num gigantesco despotismo, enfim, que possa golpear imediatamente e a todo momento tudo o que resistir, tudo o que se queixar. O cesarismo do Baixo Império me parece realizar bastante bem o que eu desejo para o bem-estar das sociedades modernas. Graças a esses vastos aparatos que, segundo me disseram, já funcionam em mais de um país da Europa, elas poderão viver em paz, como acontece na China, no Japão, na Índia. Não é possível que um vulgar preconceito nos faça desprezar essas civilizações orientais cujas instituições aprendemos cada dia a apreciar mais. O povo chinês, por exemplo, é muito trabalhador e bem administrado.”
No primeiro diálogo, ele enuncia, pela boca de Maquiavel:
“O instinto para o mal no homem é mais forte que o instinto para o bem. O homem está mais inclinado ao mal do que ao bem; medo e poder têm mais controle sobre ele do que a razão…Todo homem busca o poder, e não há nem mesmo um que não seria opressor caso pudesse; todos, ou quase todos, estão prontos a sacrificar os direitos de outros em benefício próprio.
O que restringe esses animais ferozes que chamamos de homens? Nos primórdios da sociedade, era a força bruta, sem controle; mais tarde, foi a lei, ou seja, a força outra vez, regida por certas normas. Você consultou todas as fontes da história; em toda parte, a força antecede a justiça.
A liberdade política é uma ideia relativa… (Eisner, 2006, 73).
Vaticínio que se tornava apropriado para meados do século XIX, auge do liberalismo que consagrara a teoria darwinista como base para o entendimento da realidade, em que o mais forte (ou o mais apto) deve impor-se sobre os mais fracos, além de consolidar tanto a ideia de evolução quanto sua complementaridade, o progresso. Mas aqui, os desígnios da força bruta já podem ser avaliados sob outra perspectiva. A ideologia, e seus recursos, ganham paulatinamente eficácia sobre a força enquanto as estratégias sofisticam os procedimentos. É ainda Maquiavel quem nos fala, vejamos:
Os Estados, uma vez constituídos, têm dois tipos de inimigos: os de dentro e os de fora. Quais armas eles devem usar na guerra contra os estrangeiros? Os dois generais inimigos comunicarão seus planos de campanha, para que cada um possa se defender? Proibirão seus ataques noturnos, armadilhas, emboscadas e as batalhas em que o número de tropas é desigual? Não há dúvida que não. E tais guerreiros nos fariam rir. E essas armadilhas, esses artifícios, toda essa estratégia indispensável de guerra você não quer que seja usada contra os inimigos domésticos, contra os que perturbam a paz?…É possível conduzir pela razão pura as massas violentas, que são movidas pelos sentimentos, paixões e preconceitos? (Eisner, 2006, 74).
Notemos que o sistema de dominação está longe de ser completado. Inimigos internos e externos passam a compor um problema, uma equação a que devem estar atentos todos aqueles que comandam os Estados e a guerra deve ser um caminho para consolidar essa equação satisfatoriamente. Mas por vezes a guerra, que permite envolver os dois lados da equação de modo sutil deve ser preferida a soluções historicamente desgastadas. Ainda Maquiavel:
A política tem algo a ver com a moral?…
Esta palavra “justiça”, por sinal, você não vê que é infinitamente vaga?
Onde começa, onde termina? Quando a justiça vai existir e quando não vai existir? Dou exemplos. Aqui temos um Estado: a má organização dos poderes públicos, a turbulência na democracia, a impotência das leis para controlar a desordem, que reina por toda parte, vão precipitá-lo em ruínas. Um homem forte ergue-se dos quadros aristocráticos ou do coração do povo; demoli o poder constituído; apossa-se das leis, altera todas as instituições e dá ao seu país vinte anos de paz. Ele teve o direito de fazer o que fez? (Eisner, 2006, 75).
Embora remeta ao reinado de Napoleão III, o texto de Joly indica o desprezo por juízos morais, apontando justamente que os meios justificam os fins e que o fim, sob qualquer aspecto que se observe, é a dominação, como se verá.
Maquiavel:
Estou menos preocupado com o que é bom e moral do que com o que é útil e necessário.
…vou lhe dizer que, como testemunha em minha terra natal da indecisão e covardia do populacho, do seu gosto inato pela escravidão, da sua incapacidade de conceber e respeitar as condições da vida livre; é a meu ver uma força cega que se dissolve cedo ou tarde, se não está nas mãos de um só homem; a qual não seria jamais capaz de administrar, nem de julgar, nem de guerrear…(Eisner, 2006, 76).
E continua, consolidando seu argumento:
Há populações enormes que são impulsionadas ao trabalho pela pobreza, assim como o eram, em outros tempos, pela escravidão. Que diferença fazem, pergunto, para a felicidade das populações, as ficções parlamentares? Seu grande movimento político, afinal, terminou apenas com o triunfo de uma minoria privilegiada por acaso, assim como a antiga nobreza foi privilegiada pelo nascimento. Que diferença faz para o proletariado, dobrado por seu trabalho, arrastado pelo peso do seu destino, que alguns oradores tenham o direito de falar, que alguns jornalistas tenham o direito de escrever? Você criou direitos que serão puramente acadêmicos para a massa, já que ela não pode usufruir deles. Esses direitos, dos quais a lei lhe permite um usufruto ideal mas a necessidade lhe proíbe o exercício prático, são para o povo apenas a amarga ironia da derrota (Eisner, 2006, 77).
Portanto, todo aparato de concessões apenas reforçam a brutalidade da dominação que se dá, enfim, por um tipo específico de trabalho, justamente aquele em que a semântica origina-se do tripalium, essa ferramenta de tortura inquisitorial utilizada para a evisceração, já que deixar de ser propriedade de um ao Estado absolutista e recolocar em seu lugar os poucos da aristocracia que a chamada revolução burguesa efetivou apenas reforça a derrota do povo, conceito inovador e de recente invenção.
Maquiavel: Você desconhece a imensurável covardia da humanidade, servil diante da força, impiedosa diante da fraqueza, implacável diante dos erros crassos, indulgente com os crimes, incapaz de suportar as contrariedades de um regime liberal, e paciente até o martírio em face das violências de um despotismo ousado, incomodando tronos em seus momentos de raiva e entregando-se a governantes, para depois perdoá-los por ações das quais a mais fraca teria causado a decapitação de vinte reis constitucionais (Eisner, 2006, 78).
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Mas tal constatação tem um objetivo muito claro:
Maquiavel: E onde você já viu uma Constituição realmente digna do nome, realmente duradoura, que tenha sido resultado de deliberações populares? Uma Constituição deve surgir totalmente elaborada da cabeça de um homem só, ou não é nada senão um trabalho fadado ao esquecimento. Sem homogeneidade, sem ligação entre os partidos, sem força prática, ela necessariamente carregará a marca de toda a fraqueza de visão que presidiu sua composição…
Montesquieu: …Pode-se dizer, ao ouvi-lo, que você tirará um povo do caos ou da profunda noite de suas origens…
Maquiavel: Não nego; portanto, você verá que não preciso destruir suas instituições de cima para baixo para atingir meus objetivos. Já me deixará satisfeito modificar os arranjos e mudar os métodos (Eisner, 2006, 79).
Uma vez mais é ao governo de Napoleão III que se dirige Joly. Trata-se de mudar de tal sorte que as coisas permaneçam as mesmas. No décimo diálogo, complementa:
Maquiavel:…Agora, mais uma vez, o que é o Conselho de Estado?…Nada mais que um Comitê de Reforço. Quando o Conselho de Estado faz uma lei, é na verdade o soberano que a faz; quando profere um veredicto, é o soberano que o profere…
Montesquieu: É verdade que, se avaliarmos a soma dos poderes que estão em suas mãos, você deveria começar a ficar satisfeito.
Resumindo: Você faz as leis: 1. na forma de propostas para o corpo legislativo; 2. na forma de decretos; 3. na forma de decretos senatoriais; 4. na forma de regulamentações gerais; 5. na forma de resoluções do Conselho de Estado; 6. na forma de regulamentações ministeriais; 7. e, finalmente, na forma de golpes de Estado (Eisner, 2006, 80).
E esta verdadeira panacéia tem apenas uma única função, que se revelará no décimo terceiro diálogo:
Maquiavel: Isso é porque você não entende, Montesquieu! Quanta impotência, e até simplicidade, pode ser encontrada na maioria dos homens da demagogia européia? Esses tigres têm alma de ovelha, cabeça cheia de vento. Seu sonho é a absorção do indivíduo numa unidade simbólica. Eles exigem uma completa realização da igualdade (Eisner, 2006, 81).
E essa unidade simbólica tem um claro objetivo, que é “neutralizar a luta de classes e transformar a solidariedade entre as classes sociais em solidariedade nacional e racial” (Shohat & Stan, 2006, 142). Como exemplo, vaticina que deve-se substituir as palavras Liberdade, Igualdade e Fraternidade pelas idéias direito à Liberdade, dever de Igualdade e ideal de Fraternidade. Agora, tais idéias usurpam a interpretação e consideram que procedimentos adequados antecedem a realização do indivíduo. Mas essa só existe na abstração jurídica e política, como apresentada no trecho anterior. E agora o projeto consagra a forma, delineando sua poderosa geometria:
Montesquieu: …Agora entendo a alegoria ao deus Vishnu; você tem cem braços como o ídolo hindu, e cada um de seus dedos toca uma mola. Da mesma maneira que você pode tocar tudo, você também pode ver tudo?
Maquiavel: Sim, pois farei da polícia uma instituição tão vasta que, no coração do meu reino, metade das pessoas verá a outra metade…Se, como restam poucas dúvidas, minha empreitada tiver sucesso, aqui estão algumas formas como minha polícia se manifestará no exterior: homens de prazer e boa companhia em cortes estrangeiras, para ficar de olho nas intrigas dos príncipes e dos pretendentes exilados…o estabelecimento de jornais políticos nas grandes capitais, gráficas e livrarias colocadas na mesma situação e secretamente subsidiadas… (Eisner, 2006, 82).
Essa onipresença já estava antevista naquilo que viria a ser o Estado Burocrático, tentacular por sua natureza distribuidora de poder. No vigésimo diálogo, os aspectos econômicos são assim apresentados:
Montesquieu: Até porque os gastos devem ser proporcionais à renda…
Maquiavel: Veja, é assim que as coisas funcionam: o orçamento geral, que é votado no começo do ano, chega a um total de, digamos, 800 milhões. Quando metade do ano se foi, os fatos financeiros já não correspondem às primeiras expectativas; então algo que é chamado de retificação do orçamento é apresentado à Câmara, e esse orçamento adiciona 100 milhões, 150 milhões ao valor original. Aí vem o orçamento suplementar: ele adiciona 50 ou 60 milhões; e finalmente a liquidação, que adiciona 15, 20 ou 30 milhões. Em suma, no cômputo geral, o total de despesas imprevistas forma um terço dos gastos estimados. É neste último número que o voto legislativo da Câmara cai como forma de confirmação. Dessa maneira, no fim de dez anos o orçamento pode ser dobrado e até triplicado…
Montesquieu:…É certo que há poucos governos que não são obrigados a dispor do recurso do empréstimo; mas também é certo que eles são obrigados a usá-lo com moderação; não poderiam, sem imoralidade e perigo, incumbir futuras gerações de fardos exorbitantes, desproporcionais aos recursos prováveis. Como são feitos empréstimo? Pela emissão de títulos contendo uma obrigação por parte do governo de pagar juros anuais em proporção ao capital que foi depositado. Se o empréstimo está a 5%, por exemplo, o Estado, passados vinte anos, pagou uma soma igual ao capital emprestados; depois de quarenta anos, o dobro do capital; depois de sessenta anos, o triplo, e, no entanto, sempre permanece devedor do total do mesmo capital. Os Estados modernos desejaram implantar um necessária limitação ao aumento de taxas. Então conceberam um esquema admirável por sua simplicidade…criou-se um fundo especial, cujos recursos capitalizados são destinados à permanente amortização da dívida pública em sucessivas frações; então, cada vez que o Estado faz um empréstimo, ele deve contemplar o fundo de resgate com um certo capital, com o propósito de liquidar a nova dívida num momento determinado…
Nosso sistema de contabilidade, fruto da longa experiência, distingue-se pela claridade e segurança de seus procedimentos. Ele obstrui abusos e não fornece a ninguém, do oficial mais raso ao próprio chefe de Estado, os meios de desviar a menor soma de sua função original, ou de fazer uso irregular dela (Eisner, 2006, 83-86).
E, no vigésimo primeiro diálogo:
Maquiavel: temo que você seja um tanto preconceituoso em relação aos empréstimos;…economistas contemporâneos reconhecem que, longe de empobrecer o Estado, dívidas públicas o enriquecem. Você me permite explicar como?
Montesquieu: …Primeiro eu gostaria de saber a quem você vai pedir tanto capital e com que justificativa vai pedi-lo.
Maquiavel: Para esse fim, guerras no estrangeiro são de grande ajuda. Nos grandes Estados, elas permitem o empréstimo de 500 ou 600 milhões; se você conseguir gastar apenas metade ou dois terços, o resto encontra seu lugar no tesouro para gastos domésticos (Eisner, 2006, 87).
E nos diálogos vinte e três a vinte e cinco, conclui:
Maquiavel: …O culto ao príncipe é uma espécie de religião, e, como todas as religiões possíveis, esse culto prescreve contradições e mistérios que vão além da razão… Espero que meus objetivos sejam insondáveis, até para os mais próximos. Eu só comunicaria meus projetos quando desse a ordem de execução…Os conselheiros dele se perguntam secretamente qual será sua próxima idéia. Ele personifica a seus olhos a Providência, cujos meios são inescrutáveis…Eles nunca sabem se alguma empreitada já pronta não vai descer sobre suas cabeças de um dia para o outro.
Um príncipe cujo poder está erguido sobre uma base democrática deve falar cuidadosamente, não obstante popularmente. Se necessário, não deve ter medo de falar como um demagogo, pois, afinal de contas, ele é o povo, e deve sustentar as paixões do povo…
Você me perguntou há pouco se eu conhecia autonegação, se me sacrificaria pelo meu povo, abandonando o trono se necessário; agora você tem minha resposta, posso abandoná-lo como um mártir (Eisner, 2006, 88-89).
A título de comparação reproduzo aqui esse trecho de um artigo de Eric Hobsbawn sobre a falência da democracia:
Sabemos, desde Tocqueville e John Stuart Mill, que a democracia mais frequentemente ameaça do que protege a liberdade das minorias e a tolerância para com elas. Também sabemos, desde Napoleão 3º, que regimes que chegam ao poder por meio de golpes de Estado podem seguir adiante, conquistando maiorias genuínas, por meio de sucessivos apelos ao sufrágio universal (masculino). Nem a Coréia do Sul nem o Chile nos anos 70 e 80 apontam para qualquer ligação orgânica entre capitalismo e democracia .
Notemos que os procedimentos servem a todo Estado que almeja, um dia, tornar-se democrático, daí a pertinência de uma guerra. De um lado consolida e eliminação do inimigo interno, cuja função não é outra senão tornar “a outra metade” cúmplice não mais do poder soberano, mas do poder que só a experiência da morte consolida, enquanto de outro possibilita recursos adicionais num esforço que interliga os agentes como num organismo (seria aquele que, na feliz concepção de Mary Louise Pratt, é o “monarca de tudo aquilo que vejo” ),. Só assim é possível admitir a imolação do príncipe, já que a arquitetura construída garante não somente a prosperidade, mas também, e principalmente, a desigualdade que, dissolvida no compartilhamento do poder, aspira à perpetuidade.
Entre o Estado Absolutista e sua reconfiguração, o Estado Classista, e o Estado Democrático, faz-se necessário, portanto, a experiência mais abrangente do Estado Burocrático. A concentração de poder torna-se cada vez menor na mesma medida que o acumpliciamento coopta uma grande parte da população. Só então a frase de Lampedusa faz sentido completamente: “é preciso mudar alguma coisa para que tudo continue igual”. A dominação atinge todos a quem beneficia.
A dominação agora se apresenta como apaziguamento para o julgamento do futuro, já que aquilo que é escrito também é uma memória prospectiva, uma memória arremessada ao futuro, ao olhar de futuras eras.
Mas a dominação tem um rigor cujas diretrizes podem ser melhor entendidas se enunciarmos sua configuração com exatidão: é dominação eurocêntrica. E, embora afirmar tal coisa possa erradicar seu processo interno, qual seja, transita pela modernidade em constante aprimoramento com seus próprios súditos, europeus para, só depois, incidir sobre o restante do globo, vapor que umidifica todo o planeta.
Assim, aquilo que Joly apresentava como um projeto claramente definido, já vinha tomando sua forma final há, pelo menos, cento e sessenta anos.
Dois momentos, ambos restritos à Rússia, conferem sentido ao dito. O primeiro se dá à época de Pedro, o Grande, sequioso em superar sua condição eslavo-varega e substituí-la pelo modo de vida europeu.
Sua trajetória política sempre esteve às voltas tanto com as milícias streltsy quanto com a aristocracia dos boiardos, nada afeitos aos modismos da modernidade européia. De outro lado, o mar Báltico estava sob o domínio sueco (Finlândia, Estônia, Ingria e Livônia), impedindo uma saída pelo mar para a Europa. Pedro faz uma viagem clandestina em 1697 pela Europa em que a Inglaterra aparece como referência e solução capaz de sanar seus problemas internos.
Na época, a Grã-Bretanha impunha, pela emergência do império, o cetro que caracterizava o modo de vida e de poder europeu. Potência marítima, a Inglaterra impôs à Rússia simplesmente a alteração total de sua tradição. Povo terrestre de tradição asiática, a própria capital Russa, Moscou, cedeu em importância a São Petersburgo, cidade às margens do mar Báltico. A Rússia passava a ser uma potência marítima capaz de servir aos interesses estratégicos da Inglaterra em troca de sua ocidentalização e europeização.
Marx lembra assim do fato:
O mero fato de que a conversão da Moscovia fosse conseqüência de sua transformação de país semiasiático, terrestre, em importante potência marítima do Báltico teria que nos fazer chegar obrigatoriamente à conclusão de que a Grã-Bretanha, a principal potencia marítima daquela época, necessitou contribuir de alguma maneira para essa transformação, que deve ter sido a principal ajuda ou o principal impedimento aos planos de Pedro, o Grande.
Curiosamente, tal movimento imporá uma resposta contrária das elites russas, já que as pessoas comuns habitavam as pequenas e longínquas comunidades dispersas por um território do tamanho do mundo.
O segundo momento se dará com participação indireta de Marx. A própria Revolução de 1917.
Nesse meio tempo, todavia, um autor fundamental já havia apontado nesses termos o conflito entre eslavófilos e ocidentalistas. È Fiódor Dostoievski, em seus textos O Crocodilo e Notas de inverno sobre impressões de verão . Na introdução aos textos Rubens Figueiredo apresenta assim as histórias:
“Como é possível viver dentro de um crocodilo? A pergunta, que ressoa nesta sátira, tem raiz na abrupta introdução de modos de vida europeus na Rússia do século XIX. Sem poder reconstituir as mudanças graduais ocorridas na Europa, os russos foram obrigados a assimilar já prontos os resultados desse longo processo. Se imaginarmos como a sociedade russa era orgulhosa de suas tradições, como eram visionárias suas ambições imperiais, podemos ter uma ideia do choque e do confronto que tinha de suceder. As forças violentas que se puseram em movimento estão na fonte da literatura de que Dostoievski faz parte. Sublinham também o impulso comum aos dois textos reunidos neste volume.
O crocodilo é uma novela inacabada, cujo enredo vai do insólito ao cômico, sem fugir de uma sombra de loucura.
Notas de inverno…são crônicas em que o autor registra, em tom de polêmica, suas reflexões acerca de uma viagem à Alemanha, França e Inglaterra. Ficção e vida convergem na expressão de um inconformismo que se sabe trágico, mas nem por isso admite capitular. O paradoxo de um país que precisava modernizar-se mas não podia pagar o preço do sacrifício cultural traduz-se, aqui, em idéias e emoções que às vezes tomam formas confusas e até monstruosas. Em vez de amortecer o conflito, de procurar o ponto de equilíbrio, Dostoievski atiça o atrito, arrisca-se ao jogo do tudo ou nada, na esperança de que assim ao menos se possa ver as coisas sem disfarces.
Ao mesmo tempo que apregoa as maravilhas da civilização, um dos personagens da novela descreve o réptil do seguinte modo: o crocodilo é vazio, só tem dentes, e seu interior é como um saco de borracha, incrivelmente elástico. Esse é o tipo de imagem que Dostoievski tem do progresso, pelo menos quando transposto para a Rússia. A questão que ressalta é que espécie de relação se pode ter com uma fera dessa natureza. A resposta oferecida pelos personagens encarna formas grotescas nem um pouco inofensivas.
Em Notas de inverno…Dostoiévski pensa e escreve deliberadamente fora de ordem, como se rejeitasse até mesmo a linha do trem em que viajou pela Europa. Recusa mostrar-se muito lógico, ponderado. Desconfia desses bons modos de expor o pensamento e prefere aceitar suas emoções de russo intratável. Ao observar os países que visita, Dostoievski não receia o exagero e o transforma em um instrumento revelador, uma lente de aumento que permite ver as crises e as aberrações potenciais nas rachaduras da sociedade.
Essa visão penetrante não é isenta de um tom profético. O leitor de hoje se vê induzido a evocar experiências bem contemporâneas ao ler as descrições que Dostoievski compõe das misérias de Londres ou de Paris. A tirânica psicologia do consumismo é analisada de um modo arrasador, assim como a natureza autoritária de uma fraternidade socialista. Dostoievski percebe a que ponto o triunfo da sociedade ocidental é completo. Até os famintos abraçam com entusiasmo as razões daqueles que os deixam à míngua. O bezerro de ouro reina, diz Dostoievski, “e nem exige docilidade, porque dela está certo. {…} Não será este, de fato, o ‘rebanho único’? Não será preciso considerá-lo como a verdade absoluta, e calar para sempre?”. Este livro é obra de um escritor que, mesmo ao preço de seus erros, preferiu não se calar. ”
Entenda toda a história que culmina em mais uma guerra promovida pela Rússia no livro publicado profeticamente em 2021:
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor