Preso por arrendar áreas indígenas para fazendeiros, coordenador da Funai era considerado "modelo" pelo governo. Três PMs também foram presos na mesma operação, acusados de arrendamento de áreas protegidas para pecuária
(Imagem: Instagram)
Murilo Pajolla, Brasil de Fato
O coordenador da Fundação Nacional do Índio (Funai) de Ribeirão Cascalheira, Jussielson Gonçalves Silva, o sargento da Polícia Militar Gerrard Maxmiliano Rodrigues de Souza e o ex-policial militar do Amazonas, Enoque Bento de Souza, foram presos na Operação Res Capta, deflagrada pela Polícia Federal, no último dia 17, por suspeita de envolvimento em um esquema milionário de arrendamento ilegal de uma terra indígena para pecuaristas no interior do Mato Grosso.
Jussielson Gonçalves Silva, militar inativo da Marinha, foi nomeado para chefiar Coordenação Regional (CR) Ribeirão Cascalheira (MT) em março de 2020.
A substituição de servidores de carreira por militares foi uma estratégia do governo de Jari Bolsonaro (PL) para paralisar a política indigenista prevista na Constituição, segundo já denunciaram indígenas e indigenistas.
Uma liderança indígena também é suspeita de se beneficiar financeiramente. Os quatro fazendeiros que invadiram a área protegida foram identificados por uma investigação do Ministério Público Federal do Mato Grosso (MPF-MT), mas não foram presos.
Conforme a PF, o esquema envolvia servidores da Funai, que cobravam quantias milionárias de fazendeiros da região. Em troca, o grupo ganhou acesso à Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante, onde criava gado.
Em nota, a Funai afirmou que “não coaduna com nenhum tipo de conduta ilícita” e disse que vai afastar o coordenador. “Pode servir de modelo”, disse o presidente da Funai sobre atuação de Jussielson.
A Coordenação Regional (CR) da Funai chefiada por Jussielson era considerado modelo pela gestão do presidente da Funai, Marcelo Xavier. Na região, o órgão indigenista incentiva diretamente “parcerias” entre povos originários e grandes fazendeiros.
Em junho de 2021, matéria publicada no site oficial da Funai destacava um projeto de “promoção da segurança alimentar e etnodesenvolvimento dos Xavante”, que promovia a mecanização da lavoura dentro de uma terra indígena no município de Canarana, na área coordenada por Jussielson.
A comunicação da Funai publicou uma fala do presidente Marcelo Xavier: “Esse é o caminho. O coordenador regional Jussielson Gonçalves e a prefeitura de Canarana estão de parabéns. Isso pode ser reproduzido em outras aldeias. Pode servir de modelo”.
Autoelogio
“A Funai vem apoiando diversas atividades produtivas desenvolvidas por comunidades indígenas da etnia Xavante ao longo dos anos. Em 2021, a fundação deu suporte à coleta de sementes, frutos e batatas tradicionais na aldeia Santa Cruz da Terra Indígena (TI) Pimentel Barbosa. Ainda na TI Pimentel Barbosa, a Funai apoiou a lavoura de milho”, prossegue a matéria da Funai.
Em tom de autoelogio, essas e outras dezenas de matérias disponíveis no site da Funai relatam experiências semelhantes de introdução da lógica do agronegócio em terras indígenas do Mato Grosso. No lugar do modo de vida tradicional em harmonia com a floresta, extensas lavouras mecanizadas com produção de commodities agrícolas.
Conversas interceptadas
Em transcrição de áudio divulgada pelo Ministério Público Federal (MPF) de Mato Grosso, Jussielsson aparece estimulando a liderança indígena Xavante a cobrar mais pelo arrendamento das terras:
Jussielson: Não, cacique. Não é escondido não. A gente não falou com o senhor que vai começar a medição do pasto, para aumentar o valor do arrendamento?
Cacique Damião: E porque não aparece lugar onde que pra medir? Agora fazer reunião lá na sala, da Funai. O que é isso!
Jussielson: Está vindo um por um, cacique. Não é reunião não, pelo amor de deus. tá vindo um por um. Não pode fazer reunião. Está vindo um por um. Hoje veio outro fazendeiro. A partir de amanhã o pessoal está descendo para começar a medir o pasto lá. Não, não é reunião não, cacique. Pelo amor de deus.
Cacique Damião: Bom, eles estão reunindo com você é lá na sala? Eu não entendi isso.
Jussielson: Olha só, a gente tá chamando um por um pra explicar o que a gente vai fazer com relação à medida do pasto. A gente falou pro senhor que ia fazer isso. O senhor deu a autorização. O senhor lembra que a gente falou: “Cacique, tem gente que tá com muito pasto que tá pagando pouco, a gente vai medir para poder atualizar esse valor”. Aí o senhor falou: “tudo bem”. Agora a gente tem que explicar como… porque eu só posso ir lá quando o cara tiver lá na área dele. A gente num pode entrar lá na área e não ter o dono lá do gado porque a gente está levando drone e estamos pagando pelo drone. Então esse cara tem que tá lá esperando a gente senão a gente vai entrar lá e não vai ter ninguém esperando, e a gente vai ficar como? Como eu vou entrar na fazenda dos outros se o dono não tá lá esperando?
Cacique Damião: hum.
Jussielson: Então o que acontece: o cara vem aqui, a gente fala o dia que vai lá e ele nesse dia vai tá lá esperando a gente. O senhor tá entendendo? não é reunião não, é porque tem que vir, é obrigatório eles virem aqui na Funai.
Cacique Damião: Bom, é só que eu não achei ruim… achei bom não porque se for a que tá no retiro ou zona de gado, eu gostaria ir duas pessoas, três pessoas. Você já pediu autorização e eu autorizei. Só que me deu susto, tem quatro, seis pessoas lá na sua sala.
Boiada em terra indígena
Em nota, a PF afirmou ter identificado “extenso dano ambiental provocado por queimadas para formação de pastagem, desmatamento e implantação de estruturas voltadas à atividade agropecuária”.
A reparação do dano ambiental causada por apenas quatro dos 15 arrendamentos ilegais foi calculada em R$ 58 milhões. A Justiça Federal determinou que as 70 mil cabeças de gado levadas à terra indígena sejam retiradas no prazo de 45 dias, sob pena de prisão.
Outro lado
A Funai emitiu uma nota, que está disponível na íntegra a seguir:
“A Fundação Nacional do Índio (Funai) esclarece que não coaduna com nenhum tipo de conduta ilícita e está à disposição das autoridades policiais para colaborar com as investigações. A Funai informa, ainda, que o arrendamento de Terras indígenas é vedado e que o coordenador será afastado da função”.
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