Mídia desonesta

O enquadramento da mídia liberal no conflito Rússia x Ucrânia e a indignação seletiva

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Uma cultura política capaz de alargar esta moldura, ou melhor, de destruir estes enquadramentos nos quais todos nós estamos presos. Acabando com a hipocrisia da grande mídia e sua indignação seletiva

A ajuda humanitária da Federação Russa é a única esperança para os moradores dos subúrbios de Mariupol
(Imagem: Eduard Kornienko | URA.RU)

Ádamo Antonioni*

Desde que o conflito entre Rússia e Ucrânia começou somos bombardeados com imagens de guerra nos noticiários. Tanques, coquetéis molotov, explosões, aviões, prédios desabando, corpos pelo chão… Há mais de uma semana a mídia ocidental aborda essa pauta exaustivamente, com riqueza de detalhes, especialistas, fontes oficiais e testemunhas do local.

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O número de refugiados ultrapassa um milhão, segundo a ONU. E a opinião pública, influenciada pela cobertura midiática, se compadece com esta tragédia humanitária. Afinal, como declarou o vice-procurador-chefe da Ucrânia, David Sakvarelidze, à BBC: “É muito emocionante para mim porque vejo europeus com olhos azuis e cabelos loiros sendo mortos”.

No mundo todo, 82,4 milhões de pessoas deixaram seu país de origem por causa de perseguições, conflitos, violência ou violações dos direitos humanos em 2020. Os dados são do relatório do Acnur (Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados). Mas nem todos são brancos, nem loiros, muito menos europeus. Os conflitos que seus países enfrentam_ que começou com a colonização europeia e se estende nas atuais disputas do imperialismo norte-americano _ não recebem a mesma cobertura midiática.

O apagamento e a invisibilidade dessas pessoas que padecem nas fronteiras da Europa, cujos nomes e rostos jamais saberemos, porque suas histórias nunca serão retratadas nos noticiários, não é por acaso. O enquadramento que a mídia liberal dá para determinados fatos e a exclusão para outros, não é por acaso. É uma escolha política.

O efeito de Enquadramento

O efeito de enquadramento (Framming Theory), é uma teoria que surgiu em meados dos anos 1970 dentro dos Estudos de Comunicação, e diz respeito à maneira pela qual a mídia procede na seleção, exclusão e ênfase a determinados aspectos de um acontecimento, levando-se em consideração uma espécie moldura de referências, isto é, o contexto. É esse contexto que dará sentido para a notícia a ser consumida pelos cidadãos. Ou seja, a mídia determina a interpretação das pessoas, oferecendo um único ponto de vista.

Se o papel da mídia é o de tentar conter, transmitir e determinar o que é visto através de um certo enquadramento, é preciso, portanto, questionar criticamente essas molduras, como sugere a filósofa Judith Butler: “A moldura nunca determina realmente, de forma precisa o que vemos, pensamos, reconhecemos e apreendemos”, afirma a filósofa no livro “Quadros de Guerra”.

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Dessa forma, a maneira como procede a grande mídia, selecionando apenas o conflito Rússia x Ucrânia e excluindo outros conflitos geopolíticos, enfatizando imagens de guerra que corroboram com a narrativa ocidental, e ocultando outras imagens que revelam a hipocrisia destas mesmas potências atacando pessoas inocentes em países pobres, diz mais sobre essa moldura eurocêntrica, de ideologia branca, liberal e imperialista, do que sobre as práticas jornalísticas baseadas nos ideais positivistas da objetividade, imparcialidade e neutralidade.

É claro que não existe essa imparcialidade e neutralidade no jornalismo. E a cobertura midiática deste conflito no leste europeu revela isso. O que não significa que a esquerda deva compactuar com as agressões russas, desproporcionais e desumanas. O que a esquerda, e a mídia alternativa progressista, não pode é perder sua capacidade crítica de compreender as razões desse conflito e seguir na denúncia das diferentes formas que o colonialismo tem se revestido nesta segunda década do século XXI.

Na primavera de 2001, diante dos atentados do 11 de setembro, Judith Butler comentou como os editorais do The New York Times passaram a desqualificar os pensadores de esquerda que tentavam compreender os fatos históricos sem ufanismos. Naquela ocasião, Butler escreveu que é possível se indignar com os atentados às Torres Gêmeas e, ao mesmo tempo, condenar as invasões americanas que matam ser humanos em países já assolados pela fome e pela miséria. Assim como hoje, podemos nos revoltar com os ataques russos a alvos civis ucranianos e, concomitantemente, criticar a tentativa dos países do ocidente em utilizar-se da OTAN para intimidar, estender sua influência imperialista e ameaçar a segurança de outros países no leste europeu.

As palavras de Butler no livro “Vidas precárias”, publicado há duas décadas, parecem ter sido escritas nos dias de hoje: “Poderíamos, inclusive, sentir indignação, dor, angústia e medo [referindo-se aos atentados do 11 de setembro] e orientar todas essa disposições emocionais para uma reflexão sobre como os outros têm sido vítimas de forma arbitrária da violência por parte dos Estados Unidos. Também poderíamos nos esforçar para criar uma outra cultura política donde o sofrimento pela violência repentina e pela perda, tanto como a represália, deixem de ser norma da vida política”.

Uma outra cultura política precisa ser pensada e posta em prática. Senão, a humanidade não sobreviverá ao século XXI. Uma cultura política capaz de alargar esta moldura, ou melhor, de destruir estes enquadramentos nos quais todos nós estamos presos. Acabando com a hipocrisia da grande mídia e sua indignação seletiva.

*Ádamo Antonioni é jornalista, professor de Filosofia. Doutorando em Educação (UFPR). Autor do livro: “Odeio, logo, compartilho: o discurso de ódio nas redes sociais e na política”.

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