Redação Pragmatismo
Mundo 04/Mar/2022 às 14:41 COMENTÁRIOS
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Ao fustigar a Rússia, EUA mexeram em vespeiro

Publicado em 04 Mar, 2022 às 14h41

Em texto publicado há exatamente 1 ano, Pepe Escobar previu o que poderia acontecer. "Da ocupação mongol, no século XIII, à luta contra o nazismo, Rússia se forjou em longa tradição militar e de resistência a invasores. Putin a evoca, quando responde a Biden – e pode não ser boa ideia à “civilizada” Otan provocá-lo"

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Operação especial liderada por Vladimir Putin, Sergei Shoigu e o Estado Maior (Imagem: Vladimir Zhabrikov | URA)

Por Pepe Escobar, em publicado em Others News | Tradução: Rôney Rodrigues
Publicado originalmente em 22/03/2021

Moscou está dolorosamente consciente de que a “estratégia” dos EUA/OTAN de contenção da Rússia já está alcançando seu paroxismo. Outra vez.

Em fevereiro, numa importantíssima reunião com o conselho do Serviço Federal de Segurança, o presidente Putin expôs a situação em termos inequívocos:

“Nós enfrentamos a chamada política de contenção da Rússia. Não se trata de competição, que é algo natural nas relações internacionais. Trata-se de uma política consistente e muito agressiva destinada a interromper nosso desenvolvimento, desacelerá-lo, para criar problemas no perímetro exterior, desencadear instabilidade interna, minar os valores que unem a sociedade russa e, em última instância, debilitar a Rússia e colocá-la sob controle externo. É isso que estamos testemunhando em alguns países do espaço pós-soviético”.

Não sem uma ponta de maldade, Putin acrescentou que não era um exagero:

“De fato, não é necessário que estejam convencidos disso, já que vocês mesmo o sabem perfeitamente, talvez melhor que ninguém”.

O Kremlin é muito consciente de que a “contenção” da Rússia está centrada em seu perímetro: Ucrânia, Geórgia e Ásia Central. E o objetivo final continua sendo a mudança de regime.

As declarações de Putin também podem ser interpretadas como uma resposta indireta a uma parte do discurso do presidente Biden na Conferência de Segurança de Munique.

Segundo os roteiristas de Biden, Putin busca debilitar o projeto europeu e a aliança da OTAN porque é muito mais fácil para o Kremlin intimidar países individualmente do que negociar com a comunidade transatlântica unida… As autoridades russas querem que os outros pensem que nosso sistema é também corrupto ou até mais.

Um ataque pessoal, direto e torpe contra o chefe de Estado de uma grande potência nuclear não pode ser qualificado exatamente como uma diplomacia sofisticada. Ao menos mostra claramente como a confiança entre Washington e Moscou se reduz, agora, a menos que nada. Por mais que os patrões do Estado Profundo (Deep State) de Biden neguem-se a encarar Putin como um negociador digno, o Kremlin e o Ministério das Relações Exteriores já descartaram Washington pela “incapacidade de chegar a um acordo”.

Mais uma vez, trata-se de soberania. A “atitude hostil à Rússia”, como definiu Putin, se estende a “outros centros independentes e soberanos de desenvolvimento mundial”. Leia-se: principalmente, à China e ao Irã. Estes três Estados soberanos estão classificados pela Estratégia de Segurança Nacional dos EUA como as principais “ameaças”.

No entanto, a Rússia é o verdadeiro pesadelo dos excepcionalistas, pois são cristãos ortodoxos, fazendo referência, assim, às franjas do Ocidente; está consolidada como a maior potência euro-asiática; é uma superpotência militar hipersônica; e tem habilidades diplomáticas inigualáveis, apreciadas em todo o Sul global.

Por isso, não restam muitos argumentos ao Estado Profundo a não ser demonizar sem cessar, tanto a Rússia como a China, para justificar uma acumulação militar ocidental. “Lógica” incorporada a um novo conceito estratégico chamado “OTAN 2030: Unidos por uma nova era”.

Os especialistas que estão por trás do conceito o aclamaram como uma resposta “implícita” à declaração do presidente francês, Emmanuel Macron, que qualificou a OTAN como uma instituição com “morte cerebral”.

Bom, ao menos o conceito prova que Macron tinha razão.

Esses bárbaros do Oriente

Nas últimas semanas, questões cruciais sobre a soberania e a identidade russa têm sido um assunto recorrente em Moscou. Isso nos leva a 17 de fevereiro, quando Putin se reuniu com os líderes políticos da Duma, de Vladimir Zhirinovsky do Partido Comunista, que desfrutava de um novo crescimento em sua popularidade, até Sergei Mironov da Rússia Unida, assim como o presidente da Duma Estatal, Vyacheslav Volodin.

Putin ressaltou o caráter “multiétnico e multirreligioso” da Rússia, agora frente a um “ambiente diferente, sem ideologia”.

Saiba mais: Porque o Oriente Médio não se unirá aos Estados Unidos no isolamento da Rússia

“É importante que todos os grupos étnicos, inclusive os menores, saibam que esta é a única Pátria, que aqui estão protegidos e dispostos a dar a vida para proteger esse país. Isso nos interessa a todos, independentemente da etnia, incluindo o povo russo”.

No entanto, o comentário mais extraordinário de Putin foi em relação à história da antiga Rússia:

“Os bárbaros vieram do Oriente e destruíram o império cristão ortodoxo. Mas antes dos bárbaros do Oriente, como sabemos bem, vieram os cruzados do Ocidente e enfraqueceram este império cristão ortodoxo, e só então foram dados os últimos golpes, e se venceu… Isso foi o que aconteceu… Devemos recordar esses fatos históricos e nunca mais esquecê-los”.

Bom, isso poderia render material suficiente para gerar um tratado de mil páginas. Em vez disso, tentemos, ao menos de maneira concisa, desvendar a questão.

A Grande Estepe Euroasiática, uma das maiores formações geográficas do planeta, se estende do baixo Danúbio até o rio Amarelo. Durante a maior parte da história essa região foi o Centro Nômade: tribos após tribos atacando as margens, algumas vezes o coração, da China, do Irã e do Mediterrâneo.

Os citas (veja, por exemplo, o magistral The Scythians: Nomad Warriors of the Steppe, publicado pela Oxford University Press, em 2019, de Barry Cunliffe) chegaram à estepe pôntica (do Mar Negro) a partir do Volga. (A piada corrente na Eurásia é que o “Keep Walking”, ou “Continue Caminhando”, pode ser realizado sem interrupção.) Depois dos citas, foi a vez dos sármatas aparecerem no sul da Rússia.

Do século IV em diante, a Eurásia nômade foi um vórtice de tribos saqueadoras que agiam junto com, entre outros, os hunos no século IV e V, os cazares no século VII, os cumamos no século XI, até a avalanche dos mongóis, no século XIII.

A trama sempre opôs os nômades aos camponeses. Os nômades governavam e exigiam tributos. Em sua inestimável Rússia Antiga, Georges Vernadsky mostra como “o Império Cita pode ser descrito sociologicamente como o domínio da horda nômade sobre as tribos vizinhas de agricultores”.

No escopo de minhas múltiplas pesquisas sobre impérios nômades para um futuro livro, eu os chamo de “Rudes Bárbaros à cavalo”. As estrelas do show inclui, na Europa, em ordem cronológica, cimérios, citas, sármatas, hunos, cazares, magiares, pechenego, seljuks, mongóis e seus descendentes tártaros; e, na Ásia, Hu, Xiongnu, Heftalitas, [povos] turcos, uigures, tibetanos, quirguizes, Kitán, mongóis, turcos (novamente), uzbeques e manchus.

Poderia dizer-se que desde a era hegemônica dos citas (os primeiros protagonistas da Rota da Seda), a maioria dos camponeses do sul e do centro da Rússia era formada por povos eslavos. Mas houve grandes diferenças entre eles. Os eslavos ao oeste de Kiev estavam sob a influência da Germânia e de Roma. Ao leste de Kiev, foram influenciados pela civilização persa.

Sempre é importante recordar que os vikings ainda eram nômades quando se converteram em governantes de terras eslavas. De fato, sua civilização prevaleceu sobre os camponeses sedentários, inclusive quando estes absorveram muitos de seus costumes.

Curiosamente, a brecha entre os nômades estepários e a agricultura na proto-Rússia não era tão desenvolvida como a agricultura intensiva na China e a economia interligada da estepe na Mongólia.

Para uma atrativa interpretação marxista do nomadismo, leia Nomads and the Outside World, de Anatoly M. Khazanov.

O céu protetor

E o poder? Para os nômades turcos e mongóis, que chegaram séculos depois dos citas, o poder emanava do Céu. O Khan governou pela autoridade do “Céu Eterno”, como vemos ao adentrar as aventuras de Genghis e de Kublai. Por implicação, como só há um céu, o Khan teria que exercer um poder universal. Boas vindas à ideia de império universal.

Na Pérsia, as coisas eram um pouco mais complexas. O Império Persa tinha a ver com a adoração ao Sol: isso se converteu na base conceitual do direito divino do Rei dos Reis. As implicações foram imensas, já que o Rei agora se transformou em sagrado. Esse modelo influenciou a Bizâncio que, depois de tudo, sempre interagiu com a Pérsia.

O cristianismo fez com que o Reino dos Céus fosse mais importante que o governo numa perspectiva secular. Ainda assim, persistiu a ideia de Império Universal, encarnada no conceito de Pantocrator: era Cristo quem governava em última instância, e seu ajudante na terra era o Imperador. Mas Bizâncio seguiu sendo um caso muito especial: o Imperador nunca poderia ser igual a Deus. Antes de tudo, era humano.

Sem dúvida, Putin é muito mais consciente de que o caso russo é extremamente complexo. A Rússia está essencialmente à margem de três civilizações. É parte da Europa, razão que incluem fatores que vão da origem étnica dos Eslavos às conquistas históricas, a música e a literatura.

A Rússia também é parte de Bizâncio numa perspectiva religiosa e artística (mas não forma parte do posterior Império Otomano, com o qual estava em competição militar). E a Rússia foi influenciada pelo Islã, proveniente da Pérsia.

Estão aí, portanto, as influências cruciais dos nômades. Pode-se argumentar seriamente que os estudiosos as negligenciaram. O domínio mongol durante um século e meio, é claro, é parte da historiografia oficial, mas talvez não em sua justa medida. E os nômades do sul e do centro da Rússia, que existiram há dois milênios, nunca foram devidamente reconhecidos.

Assim, Putin pode ter atingido um nervo. O que disse aponta a idealização de um período posterior da história russa, que vai do final do século IX até o começo do XIII: a Rússia de Kiev. Na Rússia, o romantismo do século XIX e o nacionalismo do século XX construíram ativamente uma identidade nacional idealizada.

A interpretação da Rússia de Kiev levanta tremendos problemas, é um assunto que discuti com entusiasmo em São Petersburgo, há alguns anos. Há algumas raras fontes literárias, concentradas principalmente no século XII. As fontes anteriores são estrangeiras, em sua maioria persas e árabes.

A conversão da Rússia ao cristianismo e a magnífica arquitetura que a acompanha foram interpretadas como a prova de um alto nível cultural. Em poucas palavras, os estudiosos acabaram utilizando a Europa Ocidental como modelo para a reconstrução da civilização da Rússia de Kiev.

Nunca foi assim tão simples. Um bom exemplo é a diferença entre Novgorod e Kiev. Novgorod estava mais perto do Báltico que do Mar Negro e tinha uma interação mais estreita com a Escandinávia e as cidades hanseáticas (Hamburgo, Lübeck etc). Já Kiev estava mais perto dos nômades estepários e de Bizâncio, e também do Islã.

A Rússia de Kiev foi um cruzamento fascinante. As tradições tribais nômades (na administração, nos impostos, no sistema judicial) prevaleciam. Mas quanto à religião, imitaram a Bizâncio. Também é relevante notar que, até o final do século XII, os diversos nômades estepários constituíam uma “ameaça” constante para o sudeste da Rússia de Kiev.

Ainda que Bizâncio e, mais tarde, inclusive o Império Otomano proporcionaram modelos para as instituições russas, o fato é que os nômades, começando pelos citas, influenciaram a economia, o sistema social e, sobretudo, a organização militar.

Olhar a Khan

Sima Qian, o renomado historiador chinês, mostrou como Khan tinha dois “reis”, que, por sua vez, tinham cada um dois generais, e assim sucessivamente, até comandantes de cem, mil e dez mil homens. Este é essencialmente o mesmo sistema utilizado durante mais de um milênio e meio pelos nômades, desde os citas aos mongóis, até o exército de Tamerlão, nos fins do século XIV.

As invasões dos mongóis, em 1221, seguida depois pela de 1239-1243, foram de fato o principal fator de mudança. Como me disse o renomado analista Sergei Karaganov em seu escritório, em fins de 2018, elas influenciaram a sociedade russa durante séculos.

Durante mais de 200 anos, os príncipes russos tiveram que ir à capital dos mongóis no Volga para pagar-lhes tributos. Uma vertente acadêmica qualificou esta fase como de “barbarização”; esse parece ser o ponto de vista de Putin. Segundo essa visão, a incorporação de valores mongóis talvez tenha “revirado” a sociedade russa, trazendo-a de volta ao que era antes da primeira campanha para adotar o cristianismo.

A conclusão inevitável é que quando Moscovia [antecessora do Império Russo] apareceu, no fim do século XV, como potência dominante na Rússia, ela era essencialmente a sucessora dos mongóis.

É por essa razão que os camponeses – a população sedentária – não foram tocados pela “civilização” (é hora de reler Tolstoi?). A potência e os valores nômades, fortes como eram, sobreviveram ao domínio mongol durante séculos.

Se uma moral da história pode ser extraída de nossa breve parábola é que não é verdadeiramente uma boa ideia para a OTAN “civilizada” iniciar uma briga com os herdeiros – laterais – do Grande Khan.

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