A humanidade não teve tempo e nem distanciamento para refletir sobre o que são “operações psicológicas” (OPsi), “lawfare”, “guerras de informação” e “ciberguerras”, especificamente em nossa atual etapa da era digital.
Lucio Massafferri Salles*
No dia 11 de fevereiro de 2022, treze dias antes das ações militares russas na Ucrânia (24/02/2022), recebi uma mensagem de um amigo, chileno, bastante atuante na área da ciência da computação. Ele me enviou um vídeo da jornalista Inna Afinogenova, da RT russa (em espanhol). Inna é a responsável pelo canal “Ahí les Va” (YouTube). O amigo do Chile me pediu o seguinte: “assista o vídeo, me diga o que você pensa sobre o que a Inna Afinogenova aponta no vídeo. Ah … e traduza esse vídeo, Lucio. Por gentileza, coloque nele legendas em português, para facilitar a quem quiser assistir aí no Brasil”.
Meu amigo sabe que venho estudando há tempos o problema das operações psicológicas e de influência, assim como as guerras de informação, no contexto geopolítico das ações de tomada de poder denominadas “ações por abordagem indireta”. Desde que fomos alertados, na primavera de 2012, que um golpe de estado se avizinhava do Brasil, nos moldes do ocorrido no mesmo ano no Paraguai, e tendo passado pela experiência da revolução colorida brasileira (de junho de 2013), se apossou de mim uma inquietação para tentar entender o significado da expressão “guerra híbrida”, com a qual eu havia me deparado na timeline de uma pessoa no Facebook, no fim desse mesmo ano de 2013 (talvez, no início de 2014).
Em relação ao vídeo da jornalista Inna, que o amigo enviou, assumo que tive que assistir pelo menos umas três vezes, de início, dando de cara com pelo menos dois problemas. O título do vídeo? Ele se chama “Guerra Cognitiva: ‘hackear’ mentes para convertê-las em armas de propaganda (diz a OTAN)”. A princípio, no vídeo Inna aborda o conceito de “Guerra Cognitiva” (Cognitive Warfare), que seria (supostamente) uma novidade estratégica típica da nossa avançada época digital. E o primeiro problema que enfrentei ao assisti-lo é que essa “novidade” estaria sendo, digamos, apresentada em um momento de alta tensão geopolítica, considerando que no dia em que Inna disseminou o seu vídeo no canal “Ahí les Va” (11/02/2022) corria solta pelo mundo uma apreensão em relação a então iminente ofensiva da Rússia sobre a Ucrânia.
Como se isso não bastasse, apareceu um segundo problema: Inna marcou com forte ironia o seu vídeo. E a ironia é muitas vezes um agente dificultador para as pretensões de entendimento rápido, uma vez que ela é um tipo de recurso inteligente de linguagem, difícil de ser manuseado, para se configurar como ironia de fato. É raro, que uma ironia bem aplicada provoque o riso…seus efeitos costumam ser outros.
Em seu vídeo sobre guerra cognitiva, Inna conta que teria sido a OTAN quem encomendou a um alto oficial da Marinha da França (o contra-almirante François du Cluzel) a confecção de um estudo sobre essa “arma” que consistiria em nada mais nada menos do que instrumentos de linguagem, como notícias, mensagens, vídeos, imagens e palavras de ordem, visando atingir mentes, individualmente e em grupo, de modo a conseguir fazer com que as pessoas modificassem os seus padrões habituais de pensamento.
Seria esse, segundo o tal estudo do militar francês, o sentido de “conseguir hackear as mentes” para transformá-las em armas de propaganda. O exemplo usado no vídeo? Uma série de disparos de mídias gravadas (imagens, falas, escritos, montagens e vídeos) da plataforma TikTok, que estariam infestando as psiques da garotada na Suécia e na Finlândia, com diversas ameaças de que a Rússia invadiria e dominaria tudo.
Um estudo que não foi descoberto ao acaso
Recomendo fortemente a todos que dispõem de uns 10 minutos, que assistam o vídeo para que cada um levante as suas próprias dúvidas ou então tire as suas próprias conclusões. Em mim, as consequências de ver e rever este vídeo foram a surpresa e a suspeita. A ironia não é algo que se explica ou se traduz. Ela é simplesmente feita e ponto final. E, de fato, no vídeo “Guerra Cognitiva” a jornalista Inna em nenhum momento nega que as ações militares russas pudessem ocorrer. Hoje (03/03/2022) a Rússia está com o seu exército na Ucrânia, provavelmente prestes a tomá-la, sendo alvo de duras sanções econômicas por parte dos países membros da OTAN. E, tal como a enxurrada de artefatos semióticos apresentados por Inna, em seu vídeo, vê-se na grande rede, nos seus dutos e nas mídias em geral, uma intensa guerra de informações que visa prioritariamente angariar rápidas adesões à ideia equivocada de que o acontecimento envolvendo Rússia e Ucrânia se resume a uma simples invasão militar expansionista, sem nenhuma explicação sobre interesses e a necessária contextualização do papel fundamental dos EUA e da OTAN na eclosão desse conflito.
Guerra cognitiva: “hackear” psiques para que ajam como armas de propaganda?
Destaco que, nesse caso, a esmagadora maioria desses mesmos países que assumiram sanções à Rússia, assistiu diversas vezes outras ações ofensivas militares sem dar o mesmo peso dado às atuais ações das forças russas, na Ucrânia. A título de exemplo, lembro os casos das verdadeiras operações de “choque e pavor” (Shock and awe) que foram as ofensivas no Afeganistão (2001) e no Iraque (2003). Ocorridas há cerca de duas décadas atrás, essas duas ofensivas militares estadunidenses tiveram grande cobertura midiática, com diversos ataques chamados de “cirúrgicos” sendo transmitidos e acompanhados pelo mundo, com milhões de pessoas conectadas constantemente àquelas imagens. Sinceramente, penso que estes fatos merecem uma demorada reflexão.
A humanidade mal tem tempo e distanciamento para refletir sobre o que são “operações psicológicas” (OPsi), “lawfare”, “guerras de informação” e “ciberguerras”, especificamente em nossa atual etapa da era digital. E a OTAN “nos brinda” com um artigo/estudo encomendado a uma oficial francês que, além de não apresentar grandes novidades em relação às atuais modalidades de manipulação e influenciação psíquica, ainda produz certa confusão no que diz respeito à profundidade e o rigor que deveriam estar presentes nos seu panfleto “Guerra Cognitiva” (Cognitive Warfare), não evidenciando com clareza o seu diferencial.
Guerras de Informação – Arquitetura do Caos 2
Seria este “estudo” encomendado pela OTAN uma tentativa de disseminar no senso comum a validação e a normalização do uso das guerras de informação e das operações psicológicas (OPsi) como estratégias/práticas abertas de defesa? Afinal, ao estudarmos na linha do tempo a evolução das multifacetadas guerras híbridas, sabemos que, até hoje, operações psicológicas, práticas de desinformação, propagandas subliminares, detonação de artefatos semióticos e aplicação de caos administrado, visando conduzir percepções para implementação de revoluções coloridas alimentadas por incitação de massas através das redes, costumam todas ser realizadas com as devidas autorias ocultadas.
Ao que tudo indica, a partir desse artigo/estudo demandado pela OTAN nasce oficialmente uma “nova arma de defesa” que lança mão do hackeamento de psiques para ajudar a realizar o que, há tempos, certos golpes brandos/suaves já fazem: usar indivíduos e grupos, em diversas demografias, como disseminadores de propaganda veloz tendo como finalidade a viralização e a desestabilização psicossocial para derrubar governos. Foi assim, com a própria Ucrânia, em 2014 (e antes, em 2004), com o Brasil, em 2013, com Tunísia, Egito, Irã (fracassou) e Síria, em 2010/11 (a chamada “Primavera Árabe”) e antes disso, na antiga Iugoslávia, em 2000 (ver sobre a Revolução Bulldozer).
Golpes Brandos e Revoluções Coloridas (a “não violência” por Gene Sharp)
Para concluir, nesse artigo/estudo demandado pela OTAN chamam a atenção determinadas notas de referência bibliográfica apontando a Wikipédia como fonte, como é o caso das notas iv; xii e xxi (4, 12, 21), abordando as noções de “viés cognitivo” [cognitive bias], “identidades falsas na internet” [sock puppet account] e “comportamentos econômicos” [behavioral economics]. Ao passo que, no corpo do texto, por exemplo, há uma tímida menção ao trabalho de autores de peso, como John Arquila e David Ronfeldt, especialistas em “guerras de internet/ciberguerra” cujas ideias são trabalhadas com muito mais profundidade no livro de Andrew Korybko: “Guerras Híbridas – a abordagem adaptativa indireta com vistas à troca de regime”. Dá a impressão de que a menção tímida feita às ideias de Arquila e Ronfeldt, nesse estudo encomendado pela OTAN, é uma colocação meramente figurativa. O texto “O Advento da Netwar” (The Advent of Netwar), que Arquila e Ronfeldt escreveram, nem ao menos consta como referência bilbiogŕafica, como fonte do artigo.
Leia também:
Artefatos semióticos e catarse do riso nas guerras híbridas
Do controle sistêmico à vigilância permanente
Ilusão de liberdade e manipulação na grande rede
Comunicação e psicologia das massas na geopolítica da internet
*Lucio Massafferri Salles é filósofo, psicólogo e jornalista. Doutor e mestre em filosofia pela UFRJ, concluiu o seu pós-doutorado em filosofia pela UERJ com uma pesquisa sobre linguagem e agonística. É especialista em psicanálise pela USU e criador do Portal Fio do Tempo (You Tube).
Siga-nos no Instagram | Twitter | Facebook