Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Há personagens que nascem fortes, seja nos rastros da história, como Corto Maltese, seja nas sendas dos mitos, como Silas Verdugo. E a força dessas criaturas não reside nas fáceis idiossincrasias da globalização, nem tampouco numa tentativa vã de ser aceito. São fortes porque recusam os caminhos do agrado e da bajulação em busca de reconhecimento.
Há uma elegância clássica nos dois personagens, independente do ambiente em que circulem suas histórias. Ambos caminham como num sonho que por tantas vezes se transforma em pesadelo.
Mas se Corto Maltese não precisa de apresentações, Silas Verdugo é razoavelmente desconhecido. Embora ambos tenham vivido praticamente no mesmo tempo histórico, habitaram mundos diferentes.
A elegância de Silas não é uma exigência desse mundo. Ele vive sob rigores de tempestades. E caminha entre divindades menores para os sabores culturais. Mas será essa elegância que vai aos poucos alinhavando o pó dos caminhos nos sertões. Sua indefectível capa, seu rifle cano duplo e seu patuá ostensivamente pendurado no pescoço tornam sua figura algo etérea quando as entidades místicas entravam seu caminho.
Silas Verdugo é fruto de uma confluência temporal muito incomum. Hoje, que o pastiche cultural globalizado reduz tudo a uma mesma massa informe e de difícil deglutição para quem não viveu outros tempos e outros mundos, é difícil entender sua história.
Há um tempo do mercado de quadrinhos, há um tempo de criadores na multiversidade, há, claro, um tempo nos universos ainda não sabotados pelo neoliberalismo, em que a criação era parte de uma artesania.
O mercado era tão diferente do atual, ou da ausência de um mercado como hoje saboreamos que fica estranho lembrar das editoras que ostentavam vendagens de mais de cem mil revistas por mês. Hoje isso parece conta de mentiroso.
Das muitas editoras desse período fértil vou aqui destacar apenas a Vecchi, fundada por descendentes de italianos, a diversidade de suas publicações faziam a estrutura de um império editorial.
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Desde a década de 1920 especializou-se em romances para mulheres e em histórias em quadrinhos. Na década de 1940 publicou Grand Hotel, publicação de romances em quadrinhos e que foram precursores das fotonovelas. Logo em seguida publicou a revista MAD e uma gama de revistas em quadrinhos, de faroeste a terror. Em 1975 tem início sua mais importante decisão para o que viria a ser o vasto território dos quadrinistas brasileiros.
A Mad com artistas brasileiros abriria espaço para o lançamento em 1977 da revista de terror Spektro que em seu primeiro número publicaria “o retrato do mal”, uma das obras primas de Jayme Cortez. Então, uma série generosa de revistas empregaria o talento de artistas brasileiros, Flavio Colin, Júlio Shimamoto, Cesar Lobo, Manoel Ferreira, Itamar, Eugênio Colonnese, Ataíde Braz, Roberto Kussumoto, Watson Portela, Ofeliano de Almeida, Ivan Jaf, Júlio Emílio Braz, Carlos Patati e Elmano Silva. Teve suas atividades encerradas em 1983, mas antes disso faria uma revolução nas histórias em quadrinhos brasileiras.
Elmano Silva é um pernambucano nascido em 1942 e também o criador de Silas Verdugo. Mais conhecido como Mano, vem exercitando sua criatividade com personagens cuja força existe para além dos mitos. Sinhá Preta, a Besta Fera e o menino Aparício formam o temível trio diabólico contra os quais há de confrontar o homem do Patuá.
Foram poucas aventuras desse personagem intrigante. Teve sua primeira aparição na revista Spektro 21 (Abril de 1981) com a história O homem do Patuá, primeira parte. Em Spektro 22 (Junho de 1981), a sequencia, A liça dos demônios. Em Spektro 24 (Setembro de 1981), O ataque dos Cafuçus. Em Coleção Assombração 6, O homem do Patuá, de julho de 1995. Em 2010, publica pela editora Marca de Fantasia, Silas Verdugo, o homem do Patuá, A Origem. E essas são todas as suas aventuras. Exceto a última, são histórias curtas e impactantes. O mundo de Silas Verdugo é impiedoso, mas existe espaço para muita generosidade.
E sua sagacidade é uma marca que emana do patuá.
Patuá é um amuleto, uma ferramenta em que se trabalha uma determinada energia ou aspecto desejado como proteção e harmonia.
Diversas religiões e tradições costumam utilizar um patuá para emanar uma determinada energia. É comum em religiões de matriz africana pessoas utilizarem esses amuletos com a força daquela energia em que a pessoa é iniciada.
O patuá de Silas Verdugo será apropriadamente apresentado na história sobre sua Origem. É por ele que a força desse andarilho se manifesta. E ele confronta os demônios sociais, sem exceção. Não há pretexto no encontro com ele e o embate é duro.
Mano cuidou bem do seu grafismo. Lembra os exercícios xilográficos de Rubem Campos Grilo, cuja tradição bebia também na obra de Oswaldo Goeldi. A textura, a iconografia, a inovação, cada traço parece inspirado nessa fonte hoje tão estranha aos nossos olhos.
Numa entrevista de 1985, Rubem Grilo acusou essa dificuldade: “ao tratar um tema, a ideia mais imediata surge um tanto literal. Como trabalhar esse tema de tal maneira que ele não fique óbvio, que ele seja reinventado? Isso é um processo difícil, manter um nível máximo de invenção sem fazer com que o trabalho fique fechado, hermético, incompreensível. Como manter um nível de compreensão sem abrir mão da invenção, da reconstrução da própria linguagem do trabalho? Porque, caso haja concessões, a atividade profissional acabará frustrada e, caso haja incomunicabilidade com as pessoas, a opção se coloca falsa e inócua”.
Assim é o trabalho de Elmano Silva. Nessas poucas histórias hoje perdidas em revistas velhas escondidas em sebos que ainda não utilizam a internet, há uma ourivesaria visual que não descola de uma arquitetura narrativa muito sofisticada.
Hoje poucos são os apreciadores desse talento, desse personagem e dos rasgos visuais que fazem dos sertões nordestinos um lugar que Guimarães Rosa encontrava veredas, vida sobre as estiagens angustiantes do mistério que é viver em outro mundo.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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