A invasão à Ucrânia projeta uma nova ordem mundial, com diversas consequências. Aos países periféricos e semiperiféricos que não decifrarem a nova ordem, restará o risco de serem por ela devorados num rastro de destruição política, econômica e militar
Antonio Marcos Roseira, CartaCapital
Um dos legados que Vladimir Putin deixara à Rússia é o resgate de uma tradição de realpolitik. Sua geopolítica tem bases profundas no expansionismo territorial fundada por Pedro, o Grande (1672-1725) e consolidado por Catarina, a Grande (1729-1796) – ainda que seja, de certa forma, fruto direto da modernização tecnoindustrial conduzida pela URSS.
Amparado pela longa história de expansionismo imperial sob o czarismo e o comunismo, ele considera a Europa Oriental, o Cáucaso e os Balcãs áreas de influência natural da Rússia no seu front ocidental. O Kremlin ambiciona recuperar ao menos parte dos territórios perdidos pela Rússia com o fim da União Soviética.
Seus alvos são a Ucrânia e a Moldávia no Leste Europeu, a Lituânia, a Letônia e a Estônia no Báltico, e a Geórgia e a Armênia no Cáucaso. A invasão da Geórgia e a incorporação das províncias da Ossétia do Sul e Abecásia em 2008, a anexação da Criméia em 2014, a intervenção militar na Síria a partir de 2015, e a atual invasão da Ucrânia são partes dessa meticulosa política de segurança nacional.
A inserção dos Estados Unidos no jogo das grandes potências levou à primeira crise de legitimidade da raison d’état desde a Paz de Westfália. A hegemonia da corrente democrática liberal americana, que resultou na criação da Liga das Nações e da ONU, tornou primitiva e obsoleta a velha racionalidade de Estado europeia.
Mas, ironicamente, o que o mundo tem visto em mais de cem anos de internacionalismo legalista é que a defesa de um sistema internacional baseado na concepção de paz perpétua tem sido usada de legitimar a guerra e o terror de Estado. E que o poder irrestrito dos Estados Unidos tornou inevitável o escancaramento da conduta hipócrita do mundo ocidental.
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O uso cínico da Guerra ao Terror, a partir de 2001, para avançar e consolidar os interesses geoestratégicos de Washington foi fundamental para a eclosão de tensões e conflitos entre novas e velhas potências. É dos escombros de toda essa tragédia moral que renasce na Europa do Leste a velha razão de Estado.
Como ensinava nos anos 1950 George Kennan, o maior dos diplomatas americanos, tão importante quanto o poder, é a imagem do poder. A invasão da Ucrânia, além de um claro estabelecimento de limites ao avanço da OTAN, busca demonstrar uma nítida demonstração de força tecnológica e operacional do exército russo, um dos mais especializados em invadir, dominar e aniquilar em toda história interestatal moderna.
É a primeira vez que a hiperpotência militar e seus principais aliados são diretamente ameaçados por uma potência desde o fim da era bipolar. Não é pouca coisa.
O declínio da hegemonia americana e a ascensão chinesa
O declínio da hegemonia americana e a ascensão chinesa tem proporcionado o cenário ideal para a tentativa de reerguimento russo. Essa busca traz um enorme desafio ao sistema de governança internacional comandado pelos EUA e seus aliados desde 1991.
A expansão regional dos poderes russo e chinês abre caminho para o novo sistema de equilíbrio de poder.
Primeiro, o crescimento econômico da China tende a aglutinar novos aliados regionais no continente eurasiático e fortalecer a posição de potências regionais como os países do Oriente Médio, do Sudeste Asiático e da Ásia Central. Evidentemente, a Rússia também passa a ter com a China possibilidades cada vez maiores de intercâmbio comercial, financeiro e tecnológico.
Segundo, as enormes riquezas naturais russas em gás e petróleo são um ativo capital para o novo eixo de crescimento e desenvolvimento que transborda da China para todo o seu entorno continental.
Por fim, a recuperação e modernização das forças armadas russas funcionam como poderoso guarda-chuva para os atuais e futuros aliados. Ao mesmo tempo em que os chineses privilegiam o acesso ao dinheiro e as oportunidades econômicas para todo o mundo em desenvolvimento, a Rússia prioriza o poder duro da esfera militar.
A raiz do choque entre a Rússia e a OTAN
Para entendermos a raiz do choque entre a Rússia e a OTAN, é preciso retomar Halford J. Mackinder, o mais influente teórico da geopolítica de todos os tempos. Em seus dois mais importantes trabalhos, The Geographical Pivot of History, de 1904, e Democratic Ideal and Reality, de 1919, o geógrafo britânico estabelece, grosso modo, que o domínio de poder terrestre representado pelo continente eurasiático desaguará em poder sobre todo o mundo.
O que parece uma simples fórmula se mostra a síntese de um eloquente raciocínio. Já no início do século XX, Mackinder percebeu as potencialidades em termos de recursos naturais, população, economia e poder da Eurásia. Graças ao avanço das tecnologias de transporte e comunicação, a região poderia se transformar num sistema regional coeso e integrado sob um único Estado, o que levaria ao estrangulamento político e econômico de potências marítimas como a Inglaterra e os Estados Unidos.
Como todo bom realista, Mackinder criou uma espécie de teoria autorrealizável, à medida que a crença na sua eficácia orientava as políticas de Estado em sua direção.
Não é por outro motivo que, desde 1945, toda lógica geopolítica da grande estratégia americana é organizada sob a ideia de contenção. A contínua expansão da OTAN no entorno regional russo obedece a lógica do containment implementado inicialmente pelo Plano Marshall na Europa, sob influência de George Kennan. E é o principal mecanismo para anular as pretensões geopolíticas do Kremlin e impedir a reemergência da Rússia.
Os efeitos e riscos na nova ordem tripolar
A intensificação desse conflito nos últimos anos culminou no fim da unimultipolaridade, uma ordem internacional em que uma única hiperpotência coexiste com várias outras potências. A invasão da Ucrânia expõe um mundo tripolar, cujas consequências já são sentidas há mais de uma década. E é bastante provável que as dores do parto desta nova ordem ecoem pelos próximos anos por meio da intensificação de uma variedade de conflitos e tensões, cujo alcance certamente não deixará escapar nenhum metro quadrado de terra desse tão sofrido e espezinhado planeta.
Um dos efeitos colaterais será a perda sem precedentes da legitimidade do idealismo americano. Ainda que tenha servido como legitimação cínica ao avanço imperial dos Estados Unidos, sua incorporação pelas sociedades civis mundo afora representou importante conquista para a defesa dos direitos humanos. O retorno da realpolitik impactará diretamente situação de minorias como migrantes e refugiados, homossexuais, negros, mulheres etc.
Outro importante efeito será a intensificação da guerra híbrida – o apoio americano a movimentos insurgentes e desestabilizadores em ditaduras e democracias que começavam a escapar de sua esfera de influência. Os americanos devem impulsionar golpes de Estado, movimentos separatistas, conflitos étnicos e revoluções coloridas em todos os países e regiões que ousarem aderir a algum modelo de aliança política com a Rússia ou a China. Como na Guerra Fria, prevalece a estratégia de fraturação de qualquer bloco que significar ameaça ao seu poder.
O maior risco, embora menos provável, é a conflagração de um conflito em escala global que coloque em risco toda existência humana. Apesar de muitos estudiosos sustentarem que o equilíbrio de poder e a “paz armada” são mais eficientes para a estabilidade pacífica do sistema internacional, não há como negar que a retomada de uma rivalidade aberta entre grandes potências nucleares revive o pesadelo da aniquilação mútua, algo aparentemente distante desde o fim da bipolaridade.
A psicologia de Putin e a solução para o impasse
A postura hostil de Putin nos últimos anos revela uma psicologia profunda na conduta russa frente ao Ocidente. Para entendermos esse expansionismo agressivo, é preciso olhar na direção oposta. Isto é, no sentimento de insegurança que atormenta a moderna Rússia desde a invasão napoleônica.
George Kennan foi o primeiro americano a apontar que o entendimento da hostilidade da União Soviética não passava apenas pelo sentimento de superioridade moral trazida pela doutrina marxista, mas pela insegurança imposta por uma desconfiança de eterno cerco. O expansionismo europeu em direção a leste (a Ucrânia poderá ser o 15⁰ membro da antiga URSS a ser incorporado) impôs à Rússia uma profunda sensação de cercamento.
Em um país marcado por dramáticos declínios e épicos reerguimentos, Putin não escapa a esse sentimento fixo de contenção ao encirclement europeu.
Grandes analistas da política russa e europeia defendem que a solução a esse impasse está na ideia de coexistência. No caso em questão, Henry Kissinger defendeu, em artigo de 2014 para o Washington Post, que os EUA devem tratar a Ucrânia como uma zona neutra, sem nenhuma possibilidade de adesão a OTAN. Em contrapartida, a Rússia deveria permitir à Ucrânia o ingresso na União Europeia.
Esse era o caminho mais previsível até os levantes de 2014. Não é demais lembrar que, como os russos, os americanos estão absortos em profundas paranóias. A mais grave delas está no declínio hegemônico, que há décadas os assombra. Esse choque de loucuras explica a terrível insensatez que nos lança à beira da extinção.
A única possibilidade para todo cidadão com um mínimo de ética humanista é exigir o fim de qualquer conflito que leva ao sofrimento e a morte de inocentes. Entretanto, não é demais alertar: desde a criação do sistema interestatal westfaliano, as grandes potências raramente são submetidas à lei quando as bases de sua estratégia geopolítica estão sob risco.
Foi assim que o Japão, a Alemanha e a Itália implodiram a Liga das Nações na década de 1930. Ou que os Estados Unidos lançaram a ONU em grave crise com a invasão unilateral do Iraque em 2003.
A incapacidade do sistema de governança internacional em barrar os impulsos unilaterais de grandes potências revelam, como já havia previsto Mackinder de modo preciso há mais de cem anos, as limitações do idealismo democrático frente ao pragmatismo da raison d´état moderna.
Aos países periféricos e semiperiféricos que não decifrarem a nova ordem, restará o risco de serem por ela devorados num rastro de destruição política, econômica e militar. Bem-vindos ao mundo tripolar.
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