O Colecionador
Um colecionador antigo como eu vai trilhando caminhos impensáveis. Um autor, uma história antiga, a representação de um movimento tipográfico ou editorial, tudo e qualquer coisa servem como referência para a aquisição
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Sou um colecionador, mas não sou conservador. Tenho colecionado discos, quadrinhos minha vida inteira. Já uma longa jornada, que me permitiu ter uma perspectiva epocal sobre esse ato que de certa forma conta histórias de mim.
Observando minha coleção de quadrinhos é possível de pronto perceber que não os resguardo em sacos plásticos.
Sempre achei que o papel deveria ser exposto às intempéries de uma biblioteca. Fungos, umidade, ácaros, poeira, são partes da história que a biblioteca carrega em sua genealogia cumular.
Um quadrinho danificado pelo tempo é fruto de cuidado ao mover suas páginas potencialmente arruinadas. E sua leitura, seu odor antigo, o apagamento do tempo vêm junto com o reencontro.
Um colecionador antigo como eu vai trilhando caminhos impensáveis. Um autor, uma história antiga, a representação de um movimento tipográfico ou editorial, tudo e qualquer coisa servem como referência para a aquisição.
A questão é que não se cria um critério claro para essa jornada. E quando precisamos entender o critério, tudo fica difícil e embaçado como as páginas das antigas histórias dos livros ali adormecidos.
Estou agora procurando esse critério. Hoje, o colecionismo de quadrinhos se tornou momentaneamente uma moda.
Para alimentar esse modismo, editoras, lançamentos, programas de divulgação invadem as telas dos computadores como enxames de abelhas zombeteiras.
Desde criança fui escolhendo o que queria na banca. Minha mãe me dava algum dinheiro e lá ia eu até o jornaleiro. Primeiro comprei Recreio, uma revistinha que sempre vinha com temas para recortar e montar. Castelos medievais, chácaras bucólicas, pequenos zoológicos, e assim por diante.
Depois, ainda seguindo esse curso utilitarista, catecismos. Comprei clandestinamente muitos que me ensinaram a arte do onanismo. A lembrança seguinte foi o Pasquim, um jornal irreverente e contestador que seguia número a número. Não foi difícil para mim, logo que me mudei para São Paulo, frequentar livrarias e bancas e a lembrança próxima foi Corto Maltese, seguido de o Incal, assim como me lembro. Mas a leitura dessas obras por vezes demoravam anos, décadas para se completar, o que indicava para mim um ritual muito especial.
Os anos de espera para completar uma obra tornavam o ritual um gesto de reverência. Comprava um bom charuto, um conhaque e tirava a noite para ler o bom quadrinho e saborear um enorme inventário de recordatórios, de presentices, de futurices. Ia construindo linhagens de sentimentos que evaporavam logo, para serem revividas na coleção seguinte. Esse ritual privado marcaria meus gostos literários.
Ao longo desses anos muitos foram os eventos editoriais que ampliaram minha coleção e passaram todos com uma busca por coleções, mesmo aquelas que no tempo próprio do lançamento havia perdido.
Ken parker, por exemplo, em meados dos anos oitenta descobri a coleção da Vecchi e saí à procura dos números nos sebos, dos mais próximos aos mais distantes. A procura dos sebos e a procura dos números era o cerne da aventura colecionista minha. Levei muitos anos antes de completar os 47 números e mais trinta para que a benevolência editorial nacional ofertasse toda ela. Até o último número, li com avidez e calma, como se tocasse uma raridade. Saboreava o roteiro, mas ainda mais os desenhos. Havia algo em comum com os outros quadrinhos de minha preferência: uma sofisticação, um apelo ao insólito, uma forma narrativa não linear.
Hoje, colecionar virou uma epidemia desconfortável. Há uma enxurrada de lançamentos sem intervalos. Para todo lado que olho alguém me estende um produto e os apelos são incessantes. Tenho tentado estabelecer algum critério para preservar minha dignidade de colecionador, mas confesso que não tenho sido bem sucedido.
Uma das minhas dificuldades mais consagradas consiste em escolher qualquer coisa numa prateleira infestada de ofertas. Aliás, todos os coletivos me confundem: os coletivos de porcos, varas, coletivos de quadros, pinacoteca, coletivos de quadrinhos…não sei escolher no atacado, acho que essa é a questão. Aí me perco. Ocorre o mesmo num restaurante self serv. Nunca escolho a contento e sempre me parece ter feito a escolha errada.
Estou em busca de um critério nessa avalanche de publicações.
Em meio ao cipoal de oferendas tentadoras aos novos cultuadores da nona arte, acabei deixando passar o lançamento de uma obra cujo significado pra mim viria a cobrar seu tributo.
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Em 2014, THTRU foi lançado na livraria cultura num evento que não percebi a importância e nem fiquei sabendo.
THTRU, para mim, tem duas histórias, além daquelas que ele revela em suas páginas. Uma delas é o próprio movimento que viu e fez nascer o quadrinho. Uma conjunção de pessoas e de pulsões criativas que tornaram o livro um grimório em quadrinhos. A outra de como ele chegou a mim.
O projeto que envolveu um filme, a ligação improvável de um indo-americano, de um sino-americano morando na China e de um cineasta brasileiro que convidou Rodolfo Zalla, mestre na arte dos quadrinhos, argentino de nascimento e brasileiro de vocação, já no final de sua vida produtiva, gerou uma obra muito singular e única, feita e editada para poucos, inclusive pelo preço e pela edição limitadíssima. Editada na Alemanha, em inglês, THTRU é um grande mistério.
Eu travei conhecimento sobre a obra há pouco tempo. Decidi conhecer melhor o Tarot e comecei a vasculhar livros e informações que pudessem me apresentar o Tarot como uma intuição e não como fonte de estudo.
Cheguei ao livro de Jodorowsky sobre o tempo e ali o caminho intuitivo pelas sendas do tarot começou a se abrir para mim. Nesse mesmo movimento soube do livro, pois sem o saber, Rodolfo Zalla imprimiu em suas pinturas inúmeras referências ao tarot. E é incrível como cada arcano aparece ali, coloridíssimo, estampado onde não fora programado para aparecer.
Começava em mim uma busca pelo livro, pois entendi que o sinal era de reconhecimento e sincronicidade. Mas o livro não mais existia no mercado mundial. Comentei com minha namorada sobre isso e ela resolveu procurar. Estados Unidos, Alemanha, outros países e nada da obra, o que aumentava sua importância na mesma medida que desaparecia do horizonte da procura.
Ela entrou em contato com especialistas em quadrinhos no Brasil, até encontrar o Claudio Ellovicht, um dos criadores de todo o projeto.
Ele tinha o seu exemplar, mas por uma razão misteriosa, com a insistência dela, enviou para mim o volume. Não mais que alguns meses entre a descoberta que fiz do THTRU até o dia em que o vislumbrei, ainda estarrecido com o gesto do Ellovicht. Sabendo da importância dessa obra, um dos criadores me presenteou seu único volume.
Eis para mim os vários elementos de minha percepção sobre esse colecionismo: acaso, busca, encontro, ampliação das conexões, ampliação da percepção, encantamento.
Mesmo agora em que busco um critério para não ser enganado pelo critério dos vendedores de enciclopédia que infestam as redes sociais, anunciando as maravilhas desta ou daquela obra, é mais que o acaso que promove o meu interesse: é a possibilidade de gestos que a rigor na seara egoísta do mundo recente, faça emergir a humanização, a fraternidade, o desprendimento numa estrada que afinal, nunca tem fim.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), escritor, compositor e colecionador de quadrinhos