Quem critica a Lei Rouanet sem saber o teor do documento não está de fato preocupado com verbas públicas indiretas indo para a cultura e arte. Eles são contra a cultura e a arte. A não ser, claro, se o artista ser um sertanejo universitário que defenda o governo(?) Bolsonaro.
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Esclarecedora a reportagem do jornal Zero Hora do último domingo, 22, sobre a malfadada Lei Rouanet. Além de me trazer pormenores que eu ignorava (na verdade, nunca fui interessado em buscar maiores informações a respeito), confirmou regras essenciais que eu já imaginava como eram.
E reforcei a ideia que eu já tinha: pretensos liberais brasileiros não têm sustentação teórica para criticar o incentivo (no Brasil, o liberalismo só pode ser visto como pretensioso, pois não há teórico político ou econômico que confirme que essas ideias esdrúxulas são liberais ou mesmo neoliberais). Em regra, os que o criticam o fazem como os críticos do “método Paulo Freire”. Esses, nunca leram o consagrado educador; aqueles sequer sabem as regras básicas da legislação a que se referem pejorativamente.
Os pretensos liberais brasileiros reclamam do que seria a alta carga tributária do Brasil. Seus SUVs ou sedãs médios têm colado no para-brisas um adesivo da Câmara de Dirigentes Lojistas: “Chega de tanto imposto!”. Comparado a países de economia de tamanho semelhante, o Brasil paga pouco imposto e tem ainda menos servidores públicos, mas isso é outro assunto, pois o pretenso liberal brasileiro só se compara aos Estados Unidos quando lhe convém, amiúde, pra defender a liberação do porte de armas.
Os pretensos liberais brasileiros dão assunto. Já estou tergiversando…
O que quero dizer é da contradição do pretenso liberal brasileiro em criticar a Lei Rouanet, já que ela é, de certa forma, uma renúncia fiscal do estado. E, mais ainda, são empresários os financiadores dos artistas que fazem uso do benefício. Se o espetáculo trata de assuntos que ofendem a tradicional família cristã brasileira (seja lá o que isso for) ou a moral e os bons costumes (seja lá o que isso for), ele teve a anuência dum grande empresário que, por opção, quer que parte do dinheiro da sua empresa vá para essa apresentação.
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Claro, se poderia afirmar que o empresário gasta igual, não tem saída: ou apoia o artista ou paga ao estado. Óquei, é verdade. Mas será que precisa ser eu, um professor-esquerdista-sindicalista-petralha-comunista-lulista-anarquista-feminista-socialista, a explicar os benefícios publicitários e o retorno financeiro ao patrocinar um artista com relativo bom público?
Basta adaptar a planilha de custos da empresa. Numa boa parte relativa aos tributos, coloca-se publicidade. “Marketing”, que o pessoal dos “business” adora um estrangeirismo.
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Quem critica Paulo Freire não o conhece. Na realidade, nada tem contra o educador famoso mundialmente. O que eles não querem são os pobres estudando e apendendo. Conhecendo e se reconhecendo, como ele nos ensinou. Assim como quem critica a Lei Rouanet sem saber o teor do documento não está de fato preocupado com verbas públicas indiretas indo para a cultura e arte. Eles são contra a cultura e a arte. A não ser, claro, se o artista ser um sertanejo universitário que defenda o governo(?) Bolsonaro.
Essas pessoas são tecnicistas que defendem que o ideal humano é a produção. É um retorno de quinhentos anos de história do ocidente, aos tempos do mercantilismo, em que a riqueza era construída com a acumulação de coisas e pessoas (escravizadas).
Pois esses mesmos defensores do capitalismo (e eu não critico o capitalismo, embora as acusações em contrário) não percebem que ele mudou em alguns aspectos. Os mesmos que acusam os esquerdistas de ainda viverem na Guerra Fria estão presos a um pensamento pré-Revolução Informacional. São as pessoas que torcem o nariz a um feriado prolongado, à licença gestante de seis meses e até mesmo às férias. Para eles, um país só produz riqueza trabalhando.
Enganam-se.
Nada tenho contra o capitalismo justamente porque ele se retroalimenta e pode, numa utopia, ser ainda mais justo que o utópico comunismo. A economia não para nunca, embora, claro, pode diminuir seu ritmo. Mas, se mesmo as máquinas produtivas precisam parar, as máquinas humanas não precisariam?
Quando se vai a algum show, usa-se transporte próprio ou dalgum serviço. Paga-se estacionamento, ao final, o pessoal dá uma esticadinha pra comer algo e assim por diante. Isso sem falar nas dezenas de trabalhadores envolvidos nos bastidores. Isso num evento de médio porte.
Nos feriados prolongados, pergunte aos donos de hotéis, bares e comércios das praias e cidades turísticas se eles são contra essas folgas de quatro dias. Ou indague a mãe daquele que mora longe se ela não gostou que o ingrato finalmente foi lhe visitar no Corpus Christ.
É claro que o pretenso liberal brasileiro vai a shows sertanejos e do Amado Batista ignorando quem pagou o cachê do seu ídolo (se a Lei Rouanet, um investidor ou a Prefeitura, com dispensa de licitação); frequenta xópins nos finais de semana e, nos feriadões, se manda para a sua casa na praia. É capaz até de levar a mãe junto.
O problema do pretenso liberal brasileiro é outro. São os artistas que se posicionam a favor da civilidade e da democracia; talvez seja a incapacidade intelectual e sensitiva de compreender determinados tipos de expressões artísticas; é a possibilidade dos trabalhadores, nas folgas, se desligarem um pouco do trabalho (da produção, da obsoleta acumulação) e ir com seus um-ponto-zero aumentar a fila do pedágio nos feriadões, não deixando os Corollas passarem na frente.
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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