O identitarismo é um empecilho à esquerda nas eleições de 2022?
Ádamo Antonioni*
A fala do ex-presidente Lula afirmando que “o mundo está chato pra cacete” e criticando o politicamente correto caiu como uma bomba entre os setores do identitarismo da esquerda. Muitos o associaram com a declaração do atual presidente que, durante seu discurso de posse em 2019, considerou aquele 01 de janeiro como dia em que “[…] o povo começou a se libertar do socialismo, se libertar da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”.
Embora aparentemente semelhantes, através de uma análise de discurso mais profunda é preciso compreender que se trata de falas opostas, uma vez que parte de visões de mundo complemente distintas. Jair Bolsonaro sequestrou a identidade nacional para atender aos interesses do mercado neoliberal e de seu pequeno núcleo familiar. Enquanto Lula, assim como grande parte da tradição da esquerda, compreende identidade no sentido mais amplo.
Mas o que é identitarismo?
A discussão sobre o identitarismo apareceu no debate público através das chamadas políticas identitárias. O identitarismo tornou-se uma palavra usada de forma pejorativa para designar militantes de esquerda à frente de movimentos vistos como “minoritários”, como o movimento negro, feminista, LGBTQIA+ e indígena. A extrema-direita_ que vai do MBL às milícias digitais do bolsonarismo_ passou a acusar tais movimentos de defenderem pautas que não atendem à população em geral, mas apenas a um pequeno grupo. Um pequeno grupo que, segundo esta retórica, seria privilegiado.
Esta retórica é endossada pela prática que ainda hoje acontece por parte de muitos representantes desses movimentos que conquistaram visibilidade na internet, transformando pautas coletivas em autopromoção, utilizando-se de estratégias autoritárias como o cancelamento, o escracho, a exposição de pessoas anônimas e sem conhecimento de causa para lacrar na internet, ampliar seu engajamento e atrair as marcas para aumentar seu faturamento. O que se configura como uma política identitária neoliberal, alvo de crítica no livro “Batalhas morais”, do professor Richard Miskolci, segundo ele: “Nas redes sociais, ativistas transformavam discussões acadêmicas e políticas complexas em pautas identitárias e vigilância comportamental, atuando como polícia a perseguir todos que não seguissem suas prescrições”.
Para a política identitária neoliberal o que importa é só a representatividade. Basta um único indivíduo do “grupo minoritário” fazer propaganda da marca famosa que resolveria todos os problemas da comunidade. “Também nas atividades comerciais a dissidência sexual encontra um nicho como fonte de imagens publicitárias sedutoras, linhas de produtos, mercadorias que promovem um estilo de vida e prazeres prontos para o consumo”, afirmam Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nany Fraser no livro “Feminismo para os 99%”.
Por uma política identitária verdadeiramente democrática
Antes de qualquer coisa é preciso reconhecer a eficiência da retórica da direita que, na disputa de narrativas, tem conseguido conquistar a população em geral para o seu discurso. Expressões como “ditadura gay”, “ideologia de gênero” e mesmo “politicamente correto” ganham facilmente apelo popular e desmobiliza o campo progressista que tenta participar do debate.
Tanto o governo de Jair Bolsonaro como representantes do MBL já perceberam a necessidade de se utilizar figuras desses “grupos minoritários” para legitimar a racionalidade neoliberal. Volta e meia esses personagens aparecem no debate público atacando, por exemplo, as cotas raciais, ou defendendo a meritocracia como se apenas a autossuficiência fosse capaz de derrotar um sistema tão desigual como o capitalismo.
Nesse sentido, a filósofa Judith Butler convoca todas as pessoas que, de alguma maneira, se sentem oprimidas pela lógica neoliberal, a se unirem numa aliança, uma assembleia mesmo, para que juntas, possam superar essas desigualdades: “Neste momento em que a economia neoliberal estrutura cada vez mais as instituições e os serviços públicos, o que inclui escolas e universidades, em um momento em que as pessoas, em números crescentes, estão perdendo casa, benefícios previdenciários e perspectiva de emprego, nós nos deparamos, de uma maneira nova, com a ideia de que algumas populações são consideradas descartáveis”, analisa a filósofa.
Ainda segundo o argumento de Butler: “Na moralidade neoliberal, cada um de nós é responsável apenas por si mesmo, e não pelos outros, e essa responsabilidade é principalmente e acima de tudo uma responsabilidade por nos tornarmos economicamente autossuficientes em condições em que a autossuficiência está estruturalmente comprometida”.
Neste aspecto, a política identitária não pode se limitar a promover identidades (ou melhor, pessoas) isoladas, mas deve estar voltada para o bem comum. Uma política identitária verdadeiramente democrática disposta a criar e/ou fortalecer redes de apoio sociais e econômicas capazes de proteger pessoas (qualquer pessoa) que esteja exposta à violência, à doença, à pobreza e à morte.
No momento mais crítico da pandemia da covid-19 ficou evidente o quanto esta citação de Butler fez sentido. O presidente da república insistiu na liberdade dos comerciantes em manterem suas portas abertas, em face das milhares de mortos diárias pela doença. O presidente da república defendeu abertamente a narrativa do “cada um por si e salve-se quem puder”, o que levou a CPI da Covid do Senado Federal a denunciá-lo por crimes contra a humanidade, já que Bolsonaro expôs de forma irresponsável, sobretudo a população mais pobre, à doença e à morte.
Nas eleições deste ano é preciso construir esta ampla aliança entre todas as pessoas expostas à precariedade, dos movimentos negro, feminista, LGBTI+, indígena, à população geral das periferias, vivendo do subemprego, do trabalho precário, assoladas pela fome ou assombradas pela violência urbana. Segundo dados do IBGE, mais de 13% da população está desempregada, uma das maiores taxas do mundo. Metade da população brasileira sofre algum tipo de insegurança alimentar e quase 20 milhões passam fome, conforme pesquisa da Rede Passan. Já o Atlas da Violência aponta que o Brasil registrou um aumento de 35,2% de mortes violentas em 2021. O debate, neste ano, articula a política identitária com a precariedade resultado da política neoliberal dos últimos anos, contrapondo nossas pautas ancoradas na solidariedade, na cooperação, no amor, na empatia e no companheirismo, com a retórica neoliberal da meritocracia, do individualismo, da competitividade capitalista e do egoísmo que sustenta o governo Bolsonaro.
O identitarismo não é um empecilho à esquerda
Não será fácil, tendo em vista que o bolsonarismo, nos últimos anos, tem conseguido emplacar com certa facilidade sua narrativa do individualismo meritocrático neoliberal. Mas não é impossível. Mais do que nunca precisamos afirmar e reafirmar nossos valores, fazer prevalecer à solidariedade sobre o egoísmo, parafraseando Pepe Mujica. Insistindo numa campanha eleitoral que fale sobre o coletivo, sobre todas e todos, sobre os pilares que sustentam nossa jovem democracia, sobre união, e, assim, nos contrapondo ao desastre social e econômico causado pelo atual (des)governo.
“Em outras palavras, ninguém sofre de falta de moradia sem que exista uma falha, sem que haja um fracasso social no sentido de organizar a moradia de um modo que ela seja acessível a toda e qualquer pessoa. E ninguém sofre com o desemprego sem que exista um sistema ou uma economia política que fracasse em salvaguardá-lo dessa possibilidade”, afirma Judith Butler.
O fracasso social e econômico que o país enfrenta tem um culpado, se chama Jair Bolsonaro, eleito sob a bandeira da família, mas que só sabe privilegiar seus próprios filhos, com mansões e rachadinhas, enquanto a imensa maioria vive em condições precárias.
Uma política identitária que não faça intersecção com o debate econômico, que não critica a racionalidade neoliberal, serve apenas para manter a ordem capitalista, baseada na opressão e na desigualdade, na promoção de ativistas caça-likes de internet que deixam o mundo chato pra cacete.
*Ádamo Antonioni é jornalista, professor de Filosofia. Doutorando em Educação (UFPR). Autor do livro: “Odeio, logo, compartilho: o discurso de ódio nas redes sociais e na política”.