América Latina

A moeda sul-americana e a luta pela soberania

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As condições para o sucesso da moeda sul-americana (SUR) são, sobretudo, políticas. Para os que acreditam no livre curso de capitais, como se poder e dinheiro habitassem dimensões distintas, vale citar o mestre Belluzzo: ‘moedas não são bananas’

Imagem: ABr

Nathan Caixeta*, Brasil Debate

Dedico esse texto à discussão da proposta levantada por Fernando Haddad e Gabriel Galípolo em artigo da Folha de S. Paulo. Ao observar o debate inflamado que a proposta de Haddad e Galípolo levantou, notei existirem duas categorias de reflexão: aquelas que deveriam ser impressas em papel marrom, como a de Alexandre Schwartsman no InfoMoney e a de José Casado na Veja; e aquelas que se propõem à crítica rigorosa e propositiva como a de Ricardo Carneiro, acompanhado de Rafael Bianchini na Carta Capital.

Arriscarei considerações aos pontos centrais da proposta e suas implicações, deixando os aspectos técnicos para a posteridade. Para tanto, proponho acompanhar a discussão em quatro atos, esperando levar a imaginação do leitor ao confortável ambiente de um teatro. O primeiro ato será dedicado a discutir a questão da soberania monetária que salta às vistas na contribuição de Haddad e Galípolo. O segundo irá ao encontro dos críticos do “papel marrom”. A terceira parte acolherá, em sentido complementar, os comentários de Carneiro e Bianchini. O Quarto ato será inspirado por Keynes e sua International Clearing Union. Vamos lá.

1° Ato: a união monetária como uma questão de soberania

O objetivo da criação de uma moeda sul-americana, colocam Haddad e Galípolo, é: “ acelerar o processo de integração regional, constituindo um poderoso instrumento de coordenação política e econômica para os povos sul-americanos”. O termo “aceleração” supõe um esforço, ou emergência de chegada a um objetivo: a integração regional que requer, segundo os ilustrados teóricos do tema, uma série de condições, das quais a união monetária seria o último passo a ser alcançado, caso os anteriores tenham se efetivado.

São eles: a integração comercial (via acordos de livre-comércio multilaterais, a exemplo do Mercosul), acompanhada de plena mobilidade da mão de obra entre países, a integração produtivo-tecnológica (a exemplo do investimento cruzado realizado no leste asiático), a integração financeira (sistema de pagamento entre países do bloco) e, finalmente, a união monetária (a exemplo da Zona do Euro, criada em 1999).

Acelerar a integração, partindo da união monetária, significaria pular etapas que só existem no plano teórico. Ainda assim, conforme admitem os autores, a tarefa é complicada. De fato. Não por pular as etapas esculpidas pelos apóstolos do livre-câmbio, mas pelos limites políticos que tangenciam as questões da soberania e da hegemonia político-militar, tecnológica e monetária.

Como ensinou João Manuel Cardoso de Mello, a hegemonia nos espaços da política e da economia global é demarcada pela detenção: das armas, das tecnologias e da moeda do mundo. O posto hegemônico, entronado pelos EUA desde o pós Segunda Guerra, exige ter e exibir o poder sobre os demais países. Nas terras onde o destino manifesto foi promovido como o sonho da democracia para o mundo, não faltaram demonstrações de força.

No plano político-militar, as intervenções violentas e ilegítimas nos processos políticos de diversos países pelos EUA trataram de repartir o mundo entre os defensores da liberdade (sobretudo para os mercados) e seus inimigos que ousaram adotar formas de organização social que diferissem do “american way”.

No plano tecnológico-industrial, o hegemon exportou seu padrão de desenvolvimento para o mundo até que o domínio da finança sobre a produção repartisse o mundo entre produtores e detentores da tecnologia. A “ralé” periférica produz, a matriz da grande-empresa inova e faz dinheiro nos mercados financeiros.

Entretanto, como relembram Haddad e Galípolo, é no plano monetário que as garras da hegemonia norte-americana arranham a superfície do mundo. Em defesa do dólar, os EUA lançaram mais de uma vez a Economia Mundial à bancarrota. “Defender o dólar” passou a ser sinônimo de defesa à ordem capitalista global. Essa mesma ordem que produz desigualdades sociais e regionais de cara limpa, entendidas como efeitos colaterais do progresso.

A questão da soberania nacional e regional dos países periféricos, por exemplo, foi tratada como um jogo de “siga o mestre” na abertura para a globalização comercial e financeira. Na América Latina, não abrimos, escancararmos. Em contrapartida, na Ásia, em especial, na China, a abertura para a globalização veio com uma tela de proteção contra as selvagerias do livre-cambismo de bens e capitais.

A proposta afiançada pela dupla Haddad-Galípolo supõe passos em direção à soberania em um momento de questionamento da hegemonia norte-americana. As sanções contra a Rússia provaram ser mais penosas do que se imaginava diante da confrontação do pilar monetário do país hegemônico contra a soberania militar russa. Antes, ainda, a perda de competitividade da indústria americana que se arrasta há décadas é acompanhada pela competição tecnológica e comercial com a China, o gigante que a globalização “by american” ajudou a criar.

Os pesadelos de Biden recebem a visita daqueles que noticiam o ganho de proeminência do Yuan nas transações financeiras globais, caminho pelo qual se aventou a criação de um sistema paralelo de pagamentos em alternativa às sanções de acesso ao SWIFT impostas à Rússia.

Uma proposta de aceleração da integração regional não se trata de uma oposição ao dólar, mas de um posicionamento em bloco face às novas configurações geopolíticas e econômicas. Integrar é fortalecer a soberania dos países periféricos. Fortalecer, por seu turno, representa desenhar a própria rota de desenvolvimento ao invés de comprar o sonho dos mais poderosos.

Na trilha sem percurso pronto da integração regional, a união monetária representa graus de autonomia em relação aos distúrbios endogenamente gerados pelas assimetrias monetárias entre os países com moeda conversível e os países incapazes de negociar os termos de comércio e de financiamento “fora de casa”.

As condições para o sucesso da moeda sul-americana (SUR) são, sobretudo, políticas. Para aqueles que acreditam no livre curso de capitais, como se poder e dinheiro fossem corpos habitantes de dimensões distintas, não custa lembrar a frase do mestre Belluzzo: “moedas não são bananas”. A moeda, no plano mundial, é uma condição de poder e de soberania, estabelecida por uma convenção social que impõe a força do poderoso sobre o subalterno.

Acelerar a integração regional pela moeda é, em algum grau, lutar pela soberania contra aqueles que habitam na cúspide do sistema, os detentores do dinheiro que, desde a crise da dívida nos anos 1980, fazem dos trópicos o destino de verão para o “dinheiro que caça rendimentos”.

2° Ato: o papel marrom

As críticas de Alexandre Schwartsman e José Casado se impressas em um jornal exigiriam a polidez de um pugilista que ao encontrar o adversário tombado no ringue se nega ao último punch. Calçarei as luvas, rogando por paciência. Schwartsman atribui a ideia da SUR de Galípolo e Haddad a um “americanismo juvenil”, praticado por quem ignora os textos sagrados de Robert Mundell e Milton Friedman, além das complicações encontradas pela Zona do Euro durante a crise europeia em 2011-12.

Começando por Mundell, demonstrar a inviabilidade de uma integração monetária que desrespeite a plena mobilidade de trabalho e capital, flexibilidade de preços e salários, compensações entre países deficitários e superavitários; e ciclos semelhantes nos ritmos de expansão e contração da atividade econômica é o mesmo que demonstrar a identidade de Euler pela pura beleza, atribuindo dinâmica ao impávido.

A otimização eficiente de Mundell para o comércio intra-bloco monetário considera todos os fatores econômicos relevantes para uma economia composta por quitandas. Dentre os comerciantes, tudo é transacionável. A plena utilização dos fatores de produção é garantida. Pena que, nessa união monetária “perfeita”, esqueceram de inventar o dinheiro!

Na entrevista citada pelo economista adorador do dinheiro-banana, Milton Friedman afunda mais ainda o barco salva-vidas de Schwartsman. Seguindo Mundell, o Chicago boy dispara: “[no caso do mercado monetário comum], o mais provável é haver choques assimétricos (de preços e salários) cujo único mecanismo de ajuste seja fiscal, ou o desemprego”. Ou seja, se a realidade não se dobrar à teoria, fogo na aldeia!

Ao atribuir os desencantos adolescentes à proposta da SUR, o economista retoma a crise da Zona do Euro em 2011-12 como contraprova de que mesmo uma integração lenta, gradual e segura pode falhar, que dirá os atropelos causados por uma aceleração via união monetária.

Abro aspas, faltando-me caracteres marrons para fazer jus às palavras citadas: “Em suma, mesmo depois de cinco décadas de acordos, reformas, crises cambiais, crises políticas etc., o euro, como construção institucional, se mostrou despreparado para lidar com eventos de 2011-12. Como resultado, sua adoção precipitada por pouco não reverteu décadas de penosa construção institucional. Apesar disso, os autores acreditam que podemos literalmente botar o carro na frente dos bois e partir para integração monetária sem ter cuidado de nenhum dos passos anteriores.”

Para o ex-diretor do BC, a Europa fez pouco e fez mal em matéria de integração, penando na crise e jogando o entulho dos desequilíbrios financeiros sobre a Grécia. A título de lembrança, o BCE deixou a Grécia quebrar, antes de amealhar anteparos na operação da Troika. Mais ainda, foi a ausência de um fundo de estabilização financeiro que acentuou os desequilíbrios que deflagraram a crise da dívida dos periféricos europeus. Caso os austeros do BCE tivessem comprado os títulos soberanos dos países em dificuldade, o risco crescente de default persistiria? Pergunte para os operadores das rodadas de Quantitative Easing!

Trazendo Casado para a conversa, o antiamericanismo que tanto ele, quanto Schwartsman, acusam, evoca o mesmo sentimento de um navegador que ao chegar ao bojador se assusta e volta entornando a nau: a proposta da SUR tal como formulada por Haddad e Galípolo não atira contra o americanismo, mas contra os desequilíbrios causados pela dita-cuja chamada hegemonia monetária. Propor alternativas a um sistema monetário internacional assimétrico é avistar que, além do bojador, existe a primazia da soberania monetária para o desenvolvimento econômico e social.

Se para os escritores do papel marrom, o dólar é a banana mais madura do cacho, o americanismo é a bananeira (um poder natural sobre os rumos do capitalismo ocidental). Cortar a banana madura apodrece sua árvore e daí por diante as criaturas monstruosas que estão além do bojador os engole.

3° Ato: Os Comentários de Carneiro-Bianchini

Na Carta, Ricardo Carneiro e Bianchini se propõem a analisar três questões essenciais sobre a proposta da SUR: “Quais os problemas operacionais de uma moeda digital como o SUR, tal qual proposta no artigo? O SUR pode de fato ser um instrumento de aceleração da integração numa região de baixa integração comercial, produtiva e financeira? Não haveria instrumentos mais eficazes – comércio em moeda local, acordos de crédito recíproco – ou no caso do financiamento, menos demandantes de reservas como, por exemplo, bancos regionais ou fundos soberanos?”.

A dupla de economistas concebe uma análise crítica e detalhada da qual me apropriarei em parte. Investigando a SUR a partir das funções clássicas da moeda como unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor. Carneiro-Bianchini começam pela hipótese da SUR como uma espécie de clearing, uma moeda de pagamento entre os Bancos Centrais que comporiam a união monetária: “Com esta configuração, o SUR deveria funcionar como moeda de clearing ou meio de pagamento entre os bancos centrais da região, realizando as compensações que antes eram feitas pelo dólar, ou seja, na prática o SUR seria um substituto do dólar. Esta substituição seria vantajosa apenas se o BCSUR tivesse capacidade de ampliação de emissões fiduciárias para além do seu capital inicial, ou seja, dependeria da sua incerta alavancagem”.

Na proposta de Galípolo e Haddad, o capital inicial do Banco Central sul-americano, que conecta as instituições centrais nacionais, seria composto por aportes pelos países membros proporcionais a sua participação no comércio regional. A capitalização suplementar se daria pela cessão de divisas cambiais conversíveis, ou imposto na exportação para fora do bloco. A substituição do dólar como meio de pagamento intra-regional depende certamente da capacidade de alavancagem do BCSUR.

No entanto, como admitem Carneiro e Bianchini, o financiamento multilateral via o Banco de Desenvolvimento Latino Americano (CAF) e o Banco de Compensações Internacional (BIS) poderia amenizar distúrbios no sistema de pagamento. Lanço a bola para a inclusão do Banco dos BRICS para a formação de um sistema de financiamento multilateral, tendo em vista a forte relação comercial do Brasil, em maior grau, com os demais países-membros.

Acrescento que: com acúmulo de recursos vindos de impostos sobre exportação, e sobre a entrada e saída de capitais especulativos “de fora do bloco”, o “inominável” controle de capitais, evitar-se-iam oscilações tanto entre a SUR e as moedas nacionais, quanto entre a SUR e as demais moedas conversíveis (questões levantada na proposta de Haddad-Galípolo).

Quanto à capacidade de emissão fiduciária da SUR, prossegue a dupla de comentadores: “A partir das funções clássicas da moeda e suas interações contraditórias pode-se afirmar que faltaria ao SUR uma dimensão mais desenvolvida de reserva de valor. Para que tal acontecesse, a integração regional deveria estar mais avançada, ou seja, tanto o comércio em SURs quanto a denominação das relações de débito e crédito deveriam estar mais disseminadas e aprofundadas de modo a que houvesse um incentivo a carregar SURs nos portfólios privados”.

O trecho acima esclarece a dificuldade de conexão entre as funções de meio de pagamento e reserva de valor, visto que o estímulo à demanda por moeda necessitaria de um potencial emissor capaz de “forçar” o curso da SUR na denominação de contratos comerciais e financeiros intra-bloco, afastando o risco de dolarização das economias.

Ademais sobre a possibilidade de a SUR assumir a função de moeda de conta, admitem os debatedores do Observatório de Economia Contemporânea: “Aqui cabe destacar o fato de que as taxas de câmbio flutuantes das moedas domésticas com o SUR não eliminam das relações financeiras o currency mismatch. Ou seja, tomar empréstimos em SURs implica risco cambial, o que constitui uma importante desvantagem ante o sistema financeiro denominado exclusivamente em moeda doméstica. Ademais, se de fato o SUR for adotado parcialmente em certos países, convivendo com a moeda doméstica, muito provavelmente se ampliará a volatilidade típica dos sistemas bi-monetários”.

Essas evidências invocam o risco de desequilíbrios cambiais na ausência de uma moeda conversível intermediária, capaz de cessar as disparidades entre a demanda pela moeda regional e a demanda por moeda local. Isso nos traz de volta ao risco da dolarização das moedas locais. Uma alternativa seria a limitação do uso da SUR pelos Bancos Centrais Nacionais, o que atrasaria a estratégia de integração a despeito de maior segurança contra as oscilações vindas de dentro e de fora do bloco. Outra saída seria a atuação dos BC’s nacionais em conjunto com o BC sul-americano “limpando” o excesso de demanda por moeda local através da concessão de títulos compromissados em SUR’s aos BC’s nacionais (?).

Embora seja prenhe a capacidade inicial do Banco Central sul-americano de operar como emprestador em última instância, seu mecanismo de compensação entre países superavitários e deficitários reduz o risco de desequilíbrios financeiros, componente faltante na crise do Euro. Entretanto, para que a viabilidade da SUR seja robusta, a capacidade de atuar na “antevisão” de crises de financiamento é essencial, necessitando que para além do mecanismo de compensação, exista coerência entre os regimes fiscais dos países integrantes do bloco. Ao invés de regras “teto” para o gasto e o endividamento, a criação de “corredores” de financiamento para compra de títulos soberanos com graus crescentes de risco deve ser acompanhada de regras multilaterais de regulação dos sistemas financeiros: um “glass-steagal act” nos trópicos, para ser mais exato.

A discordância que trago aos comentários de Ricardo Carneiro e Rafael Bianchini reside na avaliação sobre a prematuridade da união monetária como aceleradora da integração regional, visto que alegam: “O SUR, pelo desenho proposto, tenderia a ser um simulacro do dólar e, portanto, agregaria pouco aos limites impostos pela atual arquitetura monetária e financeira internacional e dominância do dólar à operação das moedas periféricas”.

Fato que as modificações na “arquitetura monetária e financeira internacional” são de caráter incerto e o dólar continuará, até onde temos conhecimento, imperando como reserva de valor par excellence do mundo capitalista. Contudo, a emergência da soberania monetária como aporte para o desenvolvimento econômico e social dos países sul-americanos exige coragem política para encarar o desafio.

4° Ato: Keynes e a Internacional Clearing Union, mais vivos do que nunca

O “Plano Keynes”, como os esforços do mestre por uma União Monetária Internacional ficaram conhecidos, começou muito antes de seus embates com os norte-americanos nas conferências de Bretton Woods. Keynes visou à criação de um Clearing Union, um Banco Central dos Bancos Centrais que emitisse uma moeda que funcionasse como meio de pagamento entre as instituições monetárias nacionais visando a prover: “um método para regular a oferta de moeda e de crédito internacionais para manter, tanto quanto possível, a estabilidade dos preços internos; e regular a oferta de divisas internacionais para evitar oscilações temporárias, sejam elas causadas por sazonalidades, sejam decorrentes de outras influências quaisquer que não estejam relacionadas às instabilidades entre níveis de preços internos e externos”.

A proposta da Clearing Union, antes de ancorar-se nas funções clássicas da moeda, atira contra as instabilidades geradas pelas assimetrias entre as moedas nacionais. No trecho citado, Keynes estava apontando para a inconveniência que as oscilações na oferta de moeda (e de crédito) e os desequilíbrios cambiais entre as moedas nacionais geravam a partir da posição hegemônica de um país-emissor.

As questões apontadas por Keynes nos escritos prévios a Bretton Woods e mais ainda em seus embates com os norte-americanos durante a conferência que redesenharia o sistema monetário internacional ao redor do dólar, nunca estiveram reclusas às penúrias da relíquia bárbara, o ouro. Ao contrário, Keynes estava tratando dos perigos da hegemonia monetária, quer inglesa durante o padrão ouro-libra, quer dos EUA que se anunciavam, no pós-Guerra, como os usurpadores do poder legado pela “moeda global”.

Em Bretton Woods, o autor dos “Proposals for an International Clearing Union” reunia a experiência da tragédia do retorno à paridade libra-ouro do pré-Primeira Guerra, evento que praticamente fechou a porta do caixão da hegemonia monetária inglesa. Nos embates entre o Plano Keynes e a comitiva norte-americana capitaneada do H. Dexter White, o capitão inglês não agiu em defesa da libra contra o dólar (como talvez os escritores do papel marrom o tivessem acusado), mas em fazer de uma ordem monetária internacional que orbitasse:

“…uma instituição central (a Clearing Union), de natureza técnica e apolítica, para ajudar a respaldar outras instituições internacionais (como bancos de desenvolvimento multilaterais) que estejam articulados com o planejamento e a regulação da atividade econômica mundial.” A Clearing Union, segundo Keynes, deveria: “…assegurar a expansão e contração da liquidez internacional compatíveis com as tendências inflacionárias e deflacionárias da demanda efetiva global”.

A garantia de estabilidade para a “demanda efetiva global” representa a soberania para o desenvolvimento econômico das nações, ao possibilitar autonomia na definição de suas políticas econômicas. Essa autonomia revela-se essencial no alcance do pleno emprego e na defesa contra as pressões inflacionárias.

Sem que as nucas dos policy makers sejam assombradas pelo fantasma dos desequilíbrios globais causados pela supremacia monetária de um único país, o pleno emprego com estabilidade de preços é um sonho possível de ser compartilhado pelas nações.

Na contramão da cooperação global, mediante seus desmandos sobre a oferta de crédito e a taxa de juros global, a hegemonia do país emissor da moeda-chave fomenta expansões assimétricas da atividade econômica global e, por outro lado, impõe crises econômicas e financeiras que se alastram rapidamente no capitalismo globalizado.

Para manter sua supremacia emissora, isto é, a qualidade de sua moeda como reserva de valor, provedora de liquidez em escala global, o país hegemônico necessariamente absorve a capacidade de reserva de valor das demais moedas nacionais, especialmente, no caso das moedas não-conversíveis.

Para garantir a liquidez do sistema monetário internacional nucleado pela emissão da moeda hegemônica, o país emissor abusa do “privilégio exorbitante”, como consagrou Barry Einchengreen, para financiar a acumulação privada da riqueza, aportando recursos aos sistemas financeiros e empresas a partir da expansão autônoma de sua dívida pública. Quando o risco das operações comerciais e produtivas, precificadas pelos mercados financeiros dispara em fuga para a qualidade oferecida pela moeda-chave do país hegemônico, desvalorizando as moedas nacionais e, em último caso, causando inflação e desemprego. O país hegemônico joga o risco para os vizinhos, enquanto se prepara para novas rodadas de expansão da dívida pública “livre de risco”.

Quando o risco sistêmico embutido nas operações financeiras globais dispara, vindo da própria “estabilidade instabilizadora”, como batizou Minsky, o hegemon levanta as orelhas para os excessos no sistema de crédito, em geral, elevando as taxas de juros, o que estoura, invariavelmente, a bolha de ativos patrocinada pelo próprio caráter expansivo da dívida pública do país emissor da moeda-chave. Em seguida, se utilizando de seu endividamento ilimitado, o dono da moeda global entra no jogo para salvar as instituições financeiras, e o faz, quase sempre, tardiamente.

A inviabilidade de um sistema monetário internacional comandado unilateralmente não se encontra ao vasculhar os arranjos financeiros, regulatórios ou cambiais que, de tempos em tempos, funcionam como remendos patrocinados pelo poder político do leviatã-monetário.

Ao contrário, é a unilateralidade da emissão de uma dívida pública sancionadora da expansão da moeda-reserva que denuncia essa inviabilidade. Explico me valendo do “ancestral alemão” de Keynes: “A dívida pública dota o dinheiro de capacidade criadora, transformando-o, assim, em capital”. Ao dotar o dinheiro-mundial de capacidade criadora, a dívida pública do hegemon financia o sistema de crédito global, responsável por determinar os rumos da liquidez.

A liquidez internacional gerenciada entre a fome dos mercados financeiros e o bufê central do mundo, acaba empatando o jogo das nações, ao possibilitar aos agentes financeiros arbitrar sobre as taxas de câmbio e preços futuros dos ativos cuja marcação a mercado se dá em termos da moeda hegemônica.

Sob estas condições, as nações subalternas ao poderoso detentor do “fiat money” não têm opção senão entre seguir o baile das condições de oferta de crédito global, ou carregar os custos de uma política econômica autônoma.

Notem que até aqui estou falando do conceito de hegemonia monetária, tomando cuidado para separar o “movimento” das formas categoriais universais de sua realização histórica particular.

Avaliar a atuação dos EUA como detentor da hegemonia monetária não é tarefa para um texto curto. Basta lembrar-se de Maquiavel: a primeira tarefa de quem detém o poder é preservá-lo.

Até onde conseguiu, para desespero de Maynard, a Inglaterra amarrou com arames a supremacia do padrão-ouro. Como lembram Galípolo e Haddad, o Federal Reserve norte-americano reafirmou a supremacia do dólar que vinha descascando ao longo dos anos 1970, ao elevar as taxas de juros em 1979 após se desvencilhar da relíquia bárbara em 1973. Novamente em 2006-07, quando a crise estava em ponto de explosão a partir da inflação de ativos patrocinada pelo FED e pelas vistas grossas em relação ao risco sistêmico do sistema de crédito, os sábios do Board do Federal Reserve resolveram “frear” o excesso de crédito, elevando as taxas de juros. Resultado: a maior crise financeira desde 1929, obrigando o FED a engordar seu balanço comprando os títulos de crédito sem valor.

No atual momento de questionamento da hegemonia norte-americana, a defesa do dólar coloca o FED na corda bamba. Isso ficou evidente no discurso do Fomc ao elevar em 0,5% a básica taxa de juros em 4 de maio, anunciando intenções de reduzir seu balanço, isto é, comprimir unilateralmente a oferta de crédito e jogar o risco sistêmico para a galera.

Os avisos de Cláudio Borio, do BIS, e do ex-presidente do FED Alan Greenspan, são claros: a inflação de ativos durante a última década (aditivada durante a pandemia) tem raízes no mercado especial de títulos entre os bancos e o FED. Ao triplicar seu balanço desde 2008, o FED tornou o sistema de crédito dependente de novas expansões de liquidez, os Quantitative Easing’s da vida. A reafirmação da hegemonia monetária, sob pretexto de controlar a inflação, pode novamente ter como resultado uma crise financeira global patrocinada pela unilateralidade do controle sobre a oferta de liquidez global.

A proposta da Clearing Union de Keynes e suas razões estão mais vivas e emergenciais do que nunca e a soberania desenhada por Haddad-Galípolo é filha dessa emergência. Não podemos deixar que o jogo dependa do dono da bola.

Conclusão

Nas escoras da hegemonia monetária, de qualquer origem, as assimetrias reinarão, travando a soberania das sociedades sobre seu próprio destino, sobre políticas que levem ao pleno emprego; e, ainda, continuarão a embalar crises ao sabor dos que usufruem dessas assimetrias para concentrar riqueza. As lutas pela soberania concorrem para o fim das hegemonias e a partilha, em paz, do progresso técnico e dos meios de subsistência. Nas palavras do mestre Keynes: “as dificuldades estão não na aceitação de novas ideias, mas sim, em escapar das antigas ideias que se encontram ramificadas em cada canto dos nossos pensamentos”.

*Nathan Caixeta é economista pela FACAMP, mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP (NEC/FACAMP).

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