Voto no Lula, e o motivo não é o Bolsonaro
É necessário dizer quais razões objetivas são capazes de definir algo tão importante como depositar a esperança em alguém para conduzir um país
Anderson Pires*
As eleições para presidente deveriam ser definidas pelas virtudes dos candidatos. Mas no embate pelo voto, muitas vezes é mais fácil ressaltar as negações que apresentar os porquês de escolher um candidato específico. A desconstrução é uma ferramenta importante, contudo, tem limites. Para além do negar, é necessário dizer quais razões objetivas são capazes de definir algo tão importante como depositar a esperança em alguém para conduzir um país.
Então, quais seriam os motivos que me fazem votar no Lula para presidente? Com esse texto encerro um conjunto de artigos que foram produzidos desde 2019 e abordaram diversos temas da conjuntura política no Brasil. Escolhi este momento em decorrência da definição da pré-candidatura, chapa e aliados.
De volta aos motivos, vou tentar expor o que me faz acreditar que o Lula é a melhor opção entre os candidatos. A primeira das razões diz respeito à representatividade social. Aqui não falo de capacidade eleitoral, refiro-me ao estrato social. Sem dúvida alguma, não existe um outro líder político com tanta expressão, que tenha origem e trajetória mais próxima da realidade da maioria do povo brasileiro. Costumo dizer, quem mais sabe é quem sente.
É muito fácil alguém que nasceu em condições favoráveis, frequentou bons colégios e teve sempre direito a três fartas refeições diárias, intercaladas por lanchinhos, fazer análises sobre a desgraça alheia. No caso do Lula, além da vivência, a vida lhe permitiu acumular conhecimento sobre as origens da desigualdade social e a quem serve a manutenção dela.
Tem outro aspecto que me faz valorizar ainda mais a origem e a trajetória do Lula. A dominação e a exploração tão gritantes no Brasil produziram uma multidão de miseráveis conformados. Um pobre que ensina a gritar e a se inconformar com sua condição é primordial para que de alguma forma a subordinação seja quebrada. Para quem quer ocupar seu espaço de direito, é imprescindível que levante a cabeça.
É verdade que mesmo dizendo ao pobre que ele tem direitos, Lula conduziu governos que buscavam conciliação de classe. Enquanto dizia que ninguém teria de sair com uma enxada apoiada no ombro, na busca por um jardim de rico para capinar em troca de um prato de comida, não promovia enfrentamentos para além de soluções negociadas no campo institucional.
Foi essa a base de programas como o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida e tantos outros que de alguma forma reverteram parte do orçamento da União em políticas que trouxeram o mínimo de dignidade aos mais pobres. Como Lula sempre repetiu: todo brasileiro deve ter o direito de comer três vezes ao dia.
Claro que apenas comer não constitui cidadania, mas diante de uma legião de pessoas nos sinais de trânsito em busca de alguns trocados e de regiões com milhões de trabalhadores sem perspectiva alguma, como era o semiárido brasileiro, qualquer política social torna-se um feito grandioso. Aqui faço uma ressalva: quem achar exagerado dimensionar dessa forma, certamente não conhece a realidade do Brasil e quão pobres são nossos rincões.
Lembro ainda jovem, quando ia passar férias na casa dos meus avós no sertão de Alagoas, como eram comuns os relatos de pessoas que viviam de comer preá, um tipo de roedor, e dependiam de alguns trocados que ganhavam na “Magnu”. Era uma corruptela da expressão “magro e nu”, que usavam para denominar os que conseguiam ocupação no DNOCS para empilhar pedras. Estas, curiosamente, serviriam para reter a água de chuvas que nunca vinham.
Num país de tanta desigualdade, o voto em Lula é mais que justificável, por ter sido o primeiro a debater temas identitários, que mesmo sem serem tratados por um viés classista, ninguém antes ousou colocar o dedo. Negros, índios, homossesuxais e outras minorias viviam à margem, sem que as discussões sobre condição social, raça, cor e gênero fossem feitas de forma clara.
Independentemente de considerar que a redução da desigualdade é a melhor forma de corrigir os ataques que as minorias sofrem, o cunho humanista do Lula e do PT serviu para que as políticas de cotas fossem implementadas. Também decorre disso a discussão sobre o respeito à identidade de gênero e o combate a preconceitos seculares, que passaram a ser tipificados como crimes.
O Lula tem também uma capacidade ímpar para motivar a nação em momentos de crise. Foi em seu governo que tsunamis econômicos foram tratados como marolinhas. Não por bravata, mas por ter estabelecido uma política econômica que quebrava com as amarras que os Estados Unidos e a Europa sempre impuseram ao Brasil. Foi no seu governo que China, Índia, África e Rússia passaram a ser tratados como parceiros prioritários.
Se antes o Brasil tinha cerca de 90% das suas transações comerciais com os mesmos países por décadas, sem expandir de forma significativa sua balança comercial, diversificamos os parceiros e reduzimos a relação com os Estados Unidos e a Europa para algo em torno de 17%. Foi no Governo Lula que saímos da condição de devedores aos bancos internacionais, para credores com reservas cambiais nunca vistas. Entrou muito dólar no Brasil, e nossa moeda era forte.
Como era bom andar pelo mundo e se sentir respeitado. Subimos de patamar. No universo capitalista, isso representa muito. Afinal, é a capacidade de consumo que interessa a quem produz e tem o que vender. Os brasileiros, antes identificados de forma pejorativa e folclórica, passaram a fazer os olhos de vendedores nos endereços mais valorizados do planeta brilharem pela economia emergente no país.
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O Lula também mostrou que somos capazes de liderar setores estratégicos da economia mundial. A exemplo, romper com o complexo de vira-latas, brigar pela independência na produção de petróleo e energia, com o mais alto nível tecnológico do planeta, extraindo-o de onde diziam ser impossível, como foi o pré-sal. Quem melou a mão de óleo bruto e mostrou ao povo brasileiro que isso era possível foi um retirante nordestino que nasceu onde uma lata de água suja era tratada como iguaria.
O líder Lula é ainda maior quando ensina às grandes nações que não se combate a pobreza tirando de quem já não tem quase nada. A compreensão de que o Brasil nunca será um país rico se for cercado por pobres promoveu um processo de integração na América Latina, que visava ao desenvolvimento regional e à cooperação econômica e social. Lembremos a ajuda na modernização de universidades em países como o Paraguai, e muito mais: reconhecer que a Bolívia era um país explorado pelo Brasil na sua única riqueza, enquanto o povo vivia de forma miserável.
Abro mais um parêntese. Em 2006, quando Lula era candidato à reeleição, estourou a crise da Bolívia com a Petrobras. Após a eleição, Evo Morales resolveu expropriar a exploração do gás no país e estabelecer novos preços. Quase todos os setores cobraram do Lula uma postura autoritária: impor ao país menor e infinitamente mais pobre a manutenção de condições desfavoráveis. Lembro que a senadora Heloisa Helena cobrava aos gritos atitudes enérgicas do presidente do Brasil, para proteger os interesses da Petrobras. Mesmo numa eleição, Lula fez valer os seus princípios ‒ não iria agir como um imperialista que massacra o mais fraco, mesmo que isso representasse perdas eleitorais.
Seria mais fácil o discurso patriótico de defesa dos interesses da nação. Porém, certamente, todo o projeto de liderar a construção de um novo polo de poder, com integração da América Latina, estaria perdido. Afinal, o Brasil passaria a ser apenas o explorador mais próximo. Essa visão estratégica da política internacional mostra o tino diferenciado do Lula sobre mudanças necessárias para construir um mundo menos desigual.
Essa postura permitiu que o Brasil fosse ouvido em temas cruciais, como o combate à fome e a recuperação e preservação do meio ambiente. Os grandes temas mundiais passavam pelo nosso país. De mero observador periférico, entramos no centro das discussões. Foi esse respaldo que abriu espaço para formação dos BRICS e a criação de um banco de fomento independente do FMI, para esse novo bloco de países.
Não tenho dúvidas de que a liderança exercida pelo Lula incomodava aos que sempre viveram à custa da subserviência, como também às grandes potências mundiais, que viram ali um risco real de quebra da hegemonia global. Ao contrário de outros líderes de grandes nações como China e Rússia, o Brasil tinha um presidente forjado na democracia, pacifista, carismático, popular, com princípios humanitários aceitos de forma global.
Para muitos, as razões do voto no Lula estão no contraponto à situação em que o Brasil se encontra. Isso é bastante relevante. Mas não podemos tratar como único motivo. Essa análise rasa não é justa com o seu legado e o que expressaria uma série de outras questões que acho fundamentais para o Brasil avançar democraticamente.
A volta do Lula à presidência é também uma retomada de rota necessária ao Brasil. Apesar da aliança demasiada ampla que sustenta a sua candidatura, existe um entendimento, seja por coerência ou arrependimento, de que a manutenção da institucionalidade é vital para a democracia. Sendo assim, o Lula vira um ícone, pois, mesmo depois de todos os processos que sofreu, como o desrespeito aos direitos fundamentais, manipulações, desvios de função, apropriação do Estado em prol de interesses econômicos e políticos, não defendeu manifestações que desacreditassem os poderes e as instituições brasileiras.
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Não é fácil manter o equilíbrio e a sanidade diante de tantas injustiças e absurdos. Ainda mais quando se tem a perda da liberdade e dos direitos políticos. Lula percorreu todo esse trajeto, que tinha como objetivo exterminá-lo e reescrever a história com a velha narrativa de que nascer pobre é pré-condição para a desonestidade. Na ótica das elites, toda pessoa oriunda das classes desfavorecidas é capaz de roubar galinhas. No caso do ex-presidente, bastou um apartamento numa praia de farofeiro e um sítio em local sem nenhum glamour. Afinal, Paris não é para retirantes.
Pois é, votar no Lula é muito mais que um simples contraponto ao caos ou ao fascismo. Não lhe imponho qualquer obrigação com revoluções, muito menos um governo socialista. A utopia não pode ser maior que as razões objetivas que representarão avanços sociais e civilizatórios para quem vive em condições muito parecidas com as de Caetés, na década de 1940.
As marcas que Lula deixa na história deste país são expressas por quem mais tem identidade com sua trajetória. Sabem que ele é a melhor opção, porque sentiram que era possível viver com menos dor e sem baixar a cabeça para a exploração, muito menos aceitar que a miséria é uma determinação divina.
Voto no Lula pela compreensão do que é a desigualdade no Brasil. Reafirmo essa convicção quando olho para o Estado Brasileiro e vejo que seus donos não têm a cara das minorias. As elites ainda terão o controle dos meios de produção, mas serão obrigados a aceitar alguém do povo no mais alto cargo político do país.
*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.
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