Violência institucional: juíza de Santa Catarina afastou menina estuprada de sua mãe para impedir aborto legal. "As cenas do vídeo parecem de filme de terror; são nauseantes. Infelizmente, assistimos a um sistema de Justiça que, ao invés de proteger, viola os direitos de crianças e adolescentes"
Universa
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) divulgou, por meio de nota, que a Corregedoria-Geral do órgão instaurou um pedido de análise da conduta da juíza Joana Ribeiro Zimmer, que induziu, em audiência, uma menina de 11 anos vítima de estupro a desistir de fazer um aborto legal. A história foi revelada, nesta segunda-feira (20), em reportagem do site The Intercept Brasil.
“A Corregedoria-Geral da Justiça, órgão deste tribunal, já instaurou pedido de providências na esfera administrativa para a devida apuração dos fatos”, afirma o TJ-SC em nota à imprensa. Diz ainda que o processo está sob segredo de Justiça, “pois envolve menor de idade, circunstância que impede sua discussão em público” e que não haverá manifestação do órgão sobre o caso, além do que foi dito no comunicado.
De acordo com a reportagem, a menina, acompanhada de sua mãe, procurou o serviço médico do Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, ligado à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), para realizar o aborto com 22 semanas e dois dias. As normas do hospital permitiriam o procedimento até a 20ª semana de gestação e exigiram uma autorização judicial —ambas as normas não estão contempladas na lei.
Na audiência, Zimmer afirma que o aborto após esse prazo “seria uma autorização para homicídio“. Perguntou, ainda, se a garota poderia “esperar um pouquinho” antes de abortar. O estupro ocorreu quando a vítima tinha dez anos.
Joana Ribeiro Zimmer é titular da Vara Cível da comarca de Tijucas e é especializada no tema de infância e adoção. Tem artigo publicado sobre o tema no livro “Estatuto da Criança e do Adolescente: 30 anos, Grandes Temas, Grandes Desafios” (ed. Lumen Juris).
Ativistas condenam juíza
A postura da juíza teve grande repercussão. Segundo juristas ouvidas por Universa, não há amparo legal para o posicionamento do hospital nem da juíza.
A juíza Cristiana Cordeiro, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), afirma que as cenas descritas pela reportagem mostram uma violação da Lei do Depoimento Especial, de 2017, que trouxe uma regra impositiva para a realização de oitivas — processo em que uma pessoa é ouvida pela Justiça — com crianças e adolescentes.
Cordeiro considera “nauseante” as cenas da reportagem. “Crianças e adolescentes são sujeitos de direito. Uma menina de 11 anos não compreende o que é reprodução, como se engravidar, o que significa maternar. Então, são cenas de um filme de terror. Infelizmente, assistimos a um sistema de Justiça que, ao invés de proteger, viola os direitos de crianças e adolescentes“.
‘Sessão de tortura’
Para Tabata Tesser, integrante da organização Católicas pelo Direito de Decidir e mestre em Ciência da Religião pela PUC-SP, a audiência pode ser equiparada a uma tortura psicológica.
“O aborto legal não é crime. Parece redundante dizer isso, mas o que temos visto é jurisdições se baseando em opiniões e em cunho fundamentalista. A tarefa da justiça deveria ser garantir que criança não pudessem ser mães depois de passar por inúmeras violências, não passar um mecanismo de tortura do Estado“, diz a ativista que reforça que, nesse momento o mais urgente é garantir o acesso da menina ao sistema de saúde para a realização do procedimento, de forma legal e segura.
“Temos que priorizar a vítima. Não é o momento de humanizar o feto, mas a criança que foi a vítima desse ciclo de violência“, diz. “Neste momento, a prioridade é a retirada da menina do abrigo e realizar o procedimento de aborto. Cada dia mais é um risco de morte para a menina. Interromper esta tortura é o mais urgente“.
Para ela, o vídeo divulgado pelo The Intercept Brasil mostra uma “institucionalização do horror”. “Forçar uma menina de 11 anos a uma gestação reitera uma forma institucional de violência“, diz. “Ela passou por um ciclo de violências, foi penalizada ao menos três vezes: quando ela sofre a violência sexual; depois, quando foi induzida ao erro e teve seu aborto legal negado; e quando é afastada do seu vínculo afetivo e vai para um abrigo num momento de dor“.
Tesser chama atenção, também, para o racismo institucional nas cenas. “Uma juíza branca condenando uma mãe e uma criança a mais uma etapa de violência, tentando transformar a criança em uma espécie de barriga de aluguel para adoção“, afirma.
Código penal não estipula prazo para aborto legal
Para a advogada criminalista Tania Maria de Oliveira, coordenação executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), afirma que, mais do que inadequada, a conduta da juíza e dos médicos que prestaram o primeiro atendimento foi ilegal.
“O código penal não cita um prazo para a realização do aborto legal nos casos previstos em lei. Não fala em semanas. Isso não existe. Essas interpretações são invenções de instituições médicas. Qualquer mulher que passou por um estupro tem esse direito“, diz a advogada.
As normas brasileiras autorizam o acesso ao serviço de aborto legal em três casos: quando a gestação é decorrente de estupro ou oferece risco de vida à gestante, e o Supremo Tribunal Federal (STF) adicionou, em 2012, uma terceira hipótese, quando o feto tem anencefalia.
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Notas técnicas do Ministério da Saúde estabelecem, em caráter de recomendação, o prazo de 20 a 22 semanas para o abortamento legal. O peso fetal de até 500 gramas também pode ser um parâmetro, segundo os documentos. Em março deste ano, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou diretrizes em que atualiza as recomendações para protocolos de abortamento.
O órgão diz, no documento, que os limites gestacionais não são baseados em evidências científicas. “Embora os métodos de aborto possam variar de acordo com a idade gestacional, a gravidez pode ser interrompida com segurança, independentemente da idade gestacional”, afirma o texto.
Ainda assim, diz a jurista, essas normas técnicas não podem ser utilizadas para impedir o procedimento em casos garantidos em lei. “Uma instituição não pode criar regras que sejam contra a legislação. Essa menina foi vítima de uma série de ilegalidades neste processo, em prejuízo da infância”
Oliveira também questiona a decisão da juíza e da promotora Mirela Dutra Alberton, do Ministério Público catarinense, em enviar a menina para um abrigo. Alberton ajuizou uma ação cautelar pedindo o acolhimento institucional da menina, onde deveria “permanecer até verificar-se que não se encontra mais em situação de risco [de violência sexual] e possa retornar para a família natural“. Atualmente, a menina se encontra na instituição e está na 29ª semana de gestação.
“É deplorável, na minha opinião, mandar sem justificativas uma criança para abrigo para manter uma gestação que ele não quer. Eles [juíza e promotora] cometem uma série de vícios para manter uma gravidez de uma criança, detida em uma instituição“.
A advogada também análise os impactos da audiência psicológica para a criança. “Para qualquer criança que vai ser ouvida pela justiça, num caso de guarda, por exemplo, ou em qualquer circunstância, existe um cuidado da psicologia forense, ainda mais no caso de crianças que foram violentadas. Elas devem ser ouvidas separadamente por psicólogos. É muito dramático e grave submeter crianças a esse tipo de constrangimento, com autoridades perguntando qual nome ela quer dar para o bebê. É uma violência psicológica que não tem precedentes“.
Escuta respeitosa
Mesmo após a Lei Mari Ferrer ser sancionada há menos de um ano, em dezembro de 2021, uma audiência volta a chamar a atenção pela violência com que uma vítima de estupro é tratada. “Uma lei sem lapso de políticas públicas vira apenas um papel. Estamos em um país que tem mais disposição para alteração de normas técnicas do que para fazer o acolhimento de uma criança“, afirma Tabata.
“Elas têm que ser ouvidas de uma forma que não sejam revitimizadas, de um jeito que assegure sua proteção e a proteção e evite a culpabilização da criança por algo que ela não cometeu. Se ela sofreu uma violência, não pode ser vítima de outra pelo Estado“, afirma a juíza Cristiana Cordeiro.
O sistema de escuta especial de adolescente foi introduzido no Brasil, em meados dos anos 2000, explica Cordeiro, e determina que as crianças devem ser ouvidas em ambiente seguro e por uma equipe especializada. “Essa escuta é sempre feita por equipe especializada, geralmente de psicólogos assistentes sociais, a não ser que o juiz seja capacitado para fazer essa prática“.
Condutas de juíza e promotora devem ser apuradas
O caso, segundo a advogada Tânia Oliveira, pode (e deve) ser apurado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público). “Os envolvidos devem ser responsabilizados pelos conselhos, que verificam ilegalidades na conduta de magistratura e de membros do Ministério Público“, diz.
Juízes e promotores são obrigados a participar de cursos de capacitação em que um dos temas é a condução de oitivas com crianças e adolescentes. Cristiana Cordeiro elaborou uma destas formações.
Ela afirma que, além das penalidades administrativas, cabe um processo de indenização por danos morais à menina e à sua mãe. “Estamos falando em dano provocado na menina e em sua mãe, que também foi ouvida de forma despeitosa, por terem passado praticamente por uma tortura psicológica do estado. O que a matéria exibiu foi uma confusão entre dogmas religiosos e a Justiça“.
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