Povos indígenas

Documento mostra como o governo Bolsonaro agiu para reprimir povos indígenas e desmontar a Funai

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Documento agora indispensável demonstra como governo Bolsonaro agiu para desmontar políticas indigenistas, reprimir povos originários, sabotar demarcações e assediar servidores do órgão. A jugular da Funai foi golpeada logo no primeiro dia da gestão, por meio da Medida Provisória (MP) 870

Imagem: reprodução Outras Palavras

Inesc-INA

Foiçada no pescoço

“Pelo amor de Deus, hoje um índio constrói uma casa no meio da praia e a Funai vem e diz que ali agora é reserva indígena. Se eu for eleito, vou dar uma foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço. Não tem outro caminho.” –
Jair Bolsonaro, em campanha presidencial. A Gazeta, 01/08/2018.

Ainda antes de tomar posse como presidente da República, Jair Bolsonaro anunciou que não pretendia demarcar “nem um centímetro de terra indígena“, projeto que se somava à meta de “proporcionar meios para que o índio seja igual a nós“. Segundo o então presidenciável, indígenas deveriam poder “viver de royalties não só de minério, mas exploração da biodiversidade, bem como royalties de possíveis hidrelétricas“. Sobre a Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão responsável por dar início e suporte técnico às demarcações de Terras Indígenas (TIs) e dar conta de outras políticas públicas destinadas aos povos indígenas, Bolsonaro foi peremptório: mereceria uma “foiçada no pescoço”. “Não tem outro caminho; não serve mais”.

Como mostram as páginas deste dossiê, não foram meras palavras ao vento. A jugular da Funai foi golpeada logo no primeiro dia da gestão Bolsonaro. Por meio da Medida Provisória (MP) 870 e decretos associados (1 e 2), mudou-se profundamente a institucionalidade da política indigenista. Demarcação de TIs e manifestação em processos de licenciamento ambiental com impacto sobre elas já não seriam assunto da Funai. Cortava-se também o vínculo do órgão indigenista com o Ministério da Justiça, ligação existente desde a década de 1990 e bastante destacada nas áreas de demarcação e proteção das TIs. A Fundação passaria ao recém-criado Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH). A titular do novo ministério, Damares Alves, não se importava: “Índio não é só terra”.

Retiradas da Funai, as competências da política indigenista mais incômodas para o poder econômico iriam para ministério historicamente alinhado com adversários das TIs: o da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Mais especificamente, seu destino seria uma nova Secretaria Especial no organograma do Mapa: a de Assuntos Fundiários, criada para acomodar Nabhan Garcia no alto escalão do governo. Ex-presidente da União Democrática Ruralista e notório opositor à reforma agrária e aos direitos territoriais de indígenas e quilombolas, o agora Secretário Especial da Seaf/Mapa passaria a ser, precisamente, o responsável por esse conjunto de políticas. Transferido para a supervisão de Nabhan, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ficaria com o orçamento, arquivos documentais, patrimônio físico e equipes de servidores federais que, oriundos da Funai, se ocupam da demarcação e do licenciamento ambiental.

A prometida foiçada do Bolsonaro candidato concretizou-se, assim, num redesenho administrativo de quatro dimensões: (1) cortar competências fundamentais da Funai; (2) separar a autarquia do Ministério da Justiça; (3) transferi-la a um novo ministério marcado pela visão ideológica de Damares Alves sobre direitos humanos; (4) jogar as competências relativas às TIs no colo de ninguém menos que Nabhan Garcia, o que fazia jus à imagem da raposa cuidando do galinheiro. Tudo somado, a proposta parecia sob medida para implementar o projeto de não demarcar “nem um centímetro” de TIs, fragilizando os mecanismos de proteção a esses territórios e promovendo a máxima exploração econômica de seus recursos naturais.

O ataque gerou reação intensa e imediata. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) recorreu à Procuradoria-Geral da República para solicitar providências judiciais contra as medidas do novo governo. Também uma Ação Direta de Inconstitucionalidade nesse sentido foi movida pelo Partido Socialista Brasileiro. A Indigenistas Associados (INA) lançou campanha em defesa da integridade institucional da Funai, com foco nos debates da conversão da MP 870 em lei por parte do Congresso Nacional. O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) emitiu Recomendação de retorno da competência demarcatória ao órgão indigenista. A 6a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, especializada na defesa dos direitos indígenas, produziu nota técnica sustentando a inconstitucionalidade das mudanças propostas.

Tempos de incerteza

Na apreciação da MP 870 por parte do Congresso Nacional, durante o primeiro semestre de 2019, muitas propostas de emendas foram apresentadas para alterar a aberrante institucionalidade indigenista proposta por Bolsonaro. Enquanto transcorria esse processo, a MP esteve em tese vigente, sem, no entanto, que o governo tenha conseguido concluir o que pretendia.

A mudança de competências da Funai ao Mapa/Incra supunha perguntas para as quais os autores da medida não tinham respostas. Seria necessário, por exemplo, readequar procedimentos do processo demarcatório durante o período de transição. Assim, uma vez cumprida a primeira etapa deste processo (delimitação), a quem a Funai deveria encaminhá-lo: ao Ministério da Justiça, conforme previsto no Decreto 1.775 (que seguia e ainda segue vigente), ao ministério a que ela agora se vinculava (MMFDH) ou àquele que passava a deter a competência pela matéria demarcatória (Mapa)?

Havia ainda outras dúvidas, sobre como se daria a transferência de setores inteiros da Funai, incluindo servidores. Qual a base legal para que ocupantes, por concurso público, de cargos existentes na estrutura da Funai, e apenas nela, continuassem sua vida funcional em outro órgão? Para além das questões de pessoal, o que fazer com setores da Funai que, a exemplo da Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato e de unidades descentralizadas do órgão indigenista, contribuem com procedimentos demarcatórios, embora não trabalhem unicamente com eles? À luz da MP 870, deveriam sair ou permanecer na Funai? Se saíssem, enfraqueceriam ainda mais o órgão, na execução de políticas que se combinam com a demarcatória. Mas, sem absorver esses setores, o Mapa/Incra teria muitas dificuldades para dar conta de todas as novas atribuições relativas às demarcações.

Na falta de respostas para essas questões, vigorou a incerteza administrativa. O período de indefinição só teve fim quando esta gestão se viu obrigada a abandonar seu plano inicial para a política indigenista. Num primeiro momento, o Congresso Nacional aprovou emendas à MP 870 que reconstituíam, numa derrota para o governo, o quadro original: todas as competências indigenistas e a própria Funai ficavam no Ministério da Justiça. Em junho de 2019, o projeto decorrente da conversão da MP 870 foi sancionado como lei por Bolsonaro. Na mesma ocasião, porém, ele, como mau perdedor, editou nova MP, teimando em destinar ao Mapa a demarcação de TIs.

A resolução formal da situação veio no início de agosto de 2019, quando o STF negou ao Executivo a possibilidade de insistir no assunto. Em termos de prática de gestão, contudo, os pedaços de orçamento que haviam ido para o Mapa foram recuperados pela Funai apenas em novembro, o que impactou negativamente a execução de metas do órgão indigenista no primeiro ano de governo Bolsonaro.

A Funai do general, sob Damares

O ano inicial do governo Bolsonaro, 2019, teve dois momentos bem marcados. O primeiro, mais ou menos correspondente aos meses de incertezas relacionados à vigência da MP 870, foi o do breve retorno do general Franklimberg Ribeiro de Freitas à presidência da Funai. Franklimberg já tinha presidido a autarquia no governo Temer. Depois de onze meses, em abril de 2018, saiu por pressão da bancada de parlamentares ruralistas, conforme amplamente comentado na oportunidade. Descuidando do cumprimento da quarentena, o general foi então assessorar a mineradora Belo Sun, com interesses na região indígena da bacia do Xingu, para em seguida, em meados de janeiro de 2019, aceitar o convite de retorno, a fim de conduzir o enfraquecido órgão indigenista amadrinhado por Damares.

Franklimberg reassumiu a Funai tentando equilibrar-se entre a adesão ao jogo bolsonarista e a preservação de algo da institucionalidade indigenista. Trouxe três diretores de sua estrita confiança, mas não mexeu, ou não teve tempo de mexer, nos cargos abaixo destes. Chegou com um discurso de que as alterações promovidas pela MP 870 permitiriam agilizar processos e centrar esforços no mais importante: o “apoio social” aos indígenas e o “monitoramento territorial”. Também sugeriu que alguns servidores da Funai se orientam por “questões ideológicas”, ligadas ao tempo em que “o PT estava no governo”. Caracterizou as situações de invasão de TIs como “situações pontuais” e defendeu o modelo agropecuário de larga escala para indígenas, escusando-se, porém, de opinar sobre mineração em TIs, assunto que caberia ao Congresso Nacional “decidir se pode ou não”.

Nos poucos meses em que Franklimberg esteve no cargo, ocorreram oficinas de construção do novo PPA. As ações da Funai eram consideradas parte do MMFDH, sem nenhuma especificidade. Não consta que Franklimberg e sua equipe tenham resistido a essa assimilação generalista da política indigenista às políticas do MMFDH. Com uma coisa, porém, o general não concordou: que, para cumprir o previsto na MP 870, toda a Diretoria de Proteção Territorial da Funai se transferisse para o Incra.

Os problemas políticos de Franklimberg dentro do governo se acentuaram quando as transformações propostas pela MP para o indigenismo foram derrotadas no Congresso Nacional. Mais ainda, quando, acompanhando o posicionamento da área técnica da Funai e de sua Procuradoria Federal Especializada (PFE), o então presidente da Funai recusou-se a aceitar uma certa proposta de inovação normativa vinda do Incra. Trataremos disso no capítulo 5. Por ora, basta dizer que a recusa em aceitar o que queria o Secretário Especial da Seaf-MAPA, Nabhan Garcia, nesse caso específico no mínimo acentuou a antipatia mútua e foi o estopim de sua demissão. Ao despedir-se da Funai, o general fez uma fala pública em que expôs a rivalidade com Nabhan. Caracterizou-o como um mau assessor do presidente da República na questão indígena, alguém que, quando fala sobre o tema, “saliva ódio aos indígenas”.

Cerca de um mês após a exoneração de Franklimberg, em julho de 2019, tomou posse na presidência da Funai Marcelo Xavier, delegado da Polícia Federal. É principalmente sobre a gestão de Xavier, autodenominada Nova Funai e em curso até o presente momento, que nos deteremos neste dossiê.

Agenda ruralista nas entranhas da Funai

A chegada de Xavier à presidência da Funai consolida as promessas de campanha de Bolsonaro para a política indigenista. Sob o comando do delegado, como ficará evidente, a estrutura da Funai passou a servir principalmente a interesses anti-indígenas, em desrespeito à missão institucional do órgão. Suas ações trouxeram para as entranhas da instituição a agenda da parte mais truculenta do setor ruralista brasileiro, aquela que, em lugar de pensar estrategicamente em ganhos de produtividade e garantia das condições de viabilidade climática e ambiental da expansão da agropecuária, insiste em desafiar os dispositivos constitucionais e legais que amparam a destinação de terras a projetos de conservação da natureza e à posse por indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais.

São notórios os parlamentares que, integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), mais interesse têm em alterar radicalmente os fundamentos da política indigenista, em especial no que diz respeito ao direito à terra e ao usufruto de suas riquezas. A lealdade do atual presidente da Funai a eles tampouco se oculta. O próprio , ao apresentar sua trajetória profissional, destaca ter sido “consultor”, em 2016, da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) Funai/Incra, iniciativa sabidamente comandada por deputados da FPA e na qual se articularam linhas de ação que viriam, então, a partir de 2019, a ser impulsionadas pela direção da Funai.

Na estrutura do atual governo federal, a figura de referência para a tentativa de sufocamento e submissão dos direitos indígenas aos interesses ruralistas é o já mencionado Nabhan Garcia, Secretário Especial da Seaf/Mapa. Muito embora a Funai se mantenha vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Marcelo Xavier dá menos destaque a aparições públicas suas ao lado do titular desta pasta do que à associação de sua imagem e de seu discurso com a imagem e discurso de Nabhan Garcia (aqui, aqui, e aqui).

O atual presidente da Funai age como se tivesse o compromisso de ajudar a viabilizar a agenda política de Garcia, de quem, é bom lembrar, esteve a ponto de ser oficialmente subordinado. Criada sob medida para acomodar Garcia no Executivo, a Seaf seria responsável pelas (não) demarcações de TIs se os planos iniciais do governo tivessem vingado, e o hoje presidente da Funai chegou a ser nomeado assessor por lá. Só não assumiu o cargo porque a cessão por parte da Polícia Federal não se concretizou dentro do prazo regulamentar, conforme o próprio Garcia revelou a um repórter. Posteriormente, quando o Legislativo reverteu o agressivo projeto do novo governo de retirar da Funai e entregar ao Mapa a competência sobre TIs, Xavier foi reacomodado na presidência do órgão indigenista.

Tudo se passa, portanto, como se a presidência da Funai tivesse sido adequada a fazer o que a derrota da MP 870 impediu que ficasse sob a direta responsabilidade de Garcia na Seaf/Mapa. Na prática e de maneira oficiosa, a dupla de gestores públicos alimenta um vínculo entre Seaf/Mapa e Funai que inexiste no plano oficial. E o titular do MJSP, desde Sérgio Moro, demonstra sua conivência com o faz de conta: omite-se na defesa dos direitos dos indígenas, em que pese competência expressa (Lei 13.844/2019, art. 37, inciso XXIV).

Com Marcelo Xavier na presidência, a autarquia indigenista vê-se, enfim, capturada por interesses opostos aos direitos indígenas. Ao invés de assegurar as garantias constitucionais dos povos indígenas, trabalha consistentemente pelos seus adversários. É a própria Fundação Anti- indígena.

A Nova Funai

Em agosto de 2021, foi lançado o livro institucional: “Funai: autonomia e protagonismo indígena”. A publicação sintetiza as concepções da autoproclamada Nova Funai, e ganhou uma segunda edição, com pequenas atualizações, em abril de 2022. De acordo com as palavras de Marcelo Xavier, a intenção é “consolidar novos entendimentos e conscientizar as diferentes comunidades”.

Apesar da linguagem pretensamente rebuscada e do apelo constante às citações – distantes da extensa produção teórica acerca dos direitos e modos de vida indígenas no país –, o livro é pouco mais do que um panfleto do anti-indigenismo bolsonarista. Os três pilares desta doutrina – dignidade da pessoa humana (ou autonomia indígena), pacificação dos conflitos e segurança jurídica – não escapam a uma análise minimamente detida: trata-se, principalmente, de nomes bonitos para propostas abertamente inconstitucionais.

No jogo de distorção de conceitos, corriqueiro em toda gestão Bolsonaro, “dignidade da pessoa humana” (ou autonomia) significa empurrar as terras e comunidades indígenas para a exploração econômica por terceiros, “pacificação de conflitos” significa trabalhar a favor dos interesses de não indígenas e “segurança jurídica” significa desmontar por dentro o aparato de proteção dos direitos indígenas para possibilitar que isso tudo ocorra.

Ao longo do dossiê, veremos como esses três pilares foram impostos no cotidiano da Funai durante a atual gestão, ainda que sigam sendo objeto de debate em instâncias norteadoras, como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Aqui, nos importa ressaltar que, apesar do nome aludindo ao protagonismo e à autonomia indígenas, os novos entendimentos divulgados na publicação não foram construídos junto às comunidades. Na Nova Funai, manifestações indígenas foram recebidas com bombas de gás lacrimogêneo e lideranças denunciadas, como se criminosas, à Polícia Federal. Da mesma forma, como veremos mais adiante, servidores concursados, da própria Funai e de sua Procuradoria Federal Especializada (PFE), não apenas não foram ouvidos como passaram a ser calados e constrangidos na instituição.

“Estou sofrendo ataques na Funai, das mais diferentes hordas. E eles me atacam dizendo que estou fazendo exoneração em massa na Funai, trocando servidores (…). Eu estou colocando pessoas de minha confiança nas bases agora, justamente para atender aos senhores. Então eu quero aqui trazer o recado a todos vocês, que confiem no presidente da Funai.” – Marcelo Xavier, Audiência pública “Questões fundiárias no estado de Mato Grosso do Sul, 08/11/2019.

Era principalmente de produtores rurais do Mato Grosso do Sul a plateia que escutava o há pouco empossado presidente da Funai, Marcelo Xavier. A ocasião era uma audiência pública sobre regularização fundiária presidida pelo já citado Secretário Especial do Mapa, Nabhan Garcia. As promessas de atender “aos senhores” produtores rurais nos conflitos envolvendo os direitos territoriais indígenas, feita pelo responsável pela política indigenista do país, arrancou aplausos entusiasmados.

Desde então, a captura da estrutura da Funai pelos interesses ruralistas é mais uma promessa que vem sendo cumprida. Entre fevereiro de 2020 e agosto de 2021, houve um crescimento de 20,20% de indicados políticos, sem vínculo com a administração pública, nos cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) de mais alto nível na gestão do órgão. O maior aumento no período, de 72,73%, foi identificado nos cargos DAS 101.3, justamente a faixa em que se encontram os chefes das Coordenações Regionais (CRs) – as “bases” mencionadas por Xavier.

Atualmente, das 39 Coordenações Regionais da Funai, apenas duas têm como chefes titulares servidores do órgão. Outras dez estão sendo comandadas por servidores na precária e, às vezes, persistente condição de substituto, ausente a figura do coordenador regional titular. Em 27 CRs, os chefes nomeados são de fora do quadro da Funai: dezessete militares, três policiais militares, um policial federal e seis profissionais sem vínculo anterior com a administração pública. Os currículos dos eleitos chamam atenção pela falta: quase não se notam experiências de atuação com a política indigenista, ou mesmo com cargos de direção em administração pública. Alguns deles, inclusive, definem-se como “pecuaristas” e não escondem suas alianças com o agronegócio, como é a situação do chefe da Coordenação Regional Araguaia Tocantins, sediada em Palmas (TO), que se envolveu em caso de nomeação denunciado como prática de nepotismo.

As preferências do atual presidente da Funai resultaram em uma série de trágicas histórias alegóricas do anti-indigenismo da Nova Funai. Segundo relatos de servidores ouvidos, o coordenador que passou por uma CR, costumava fazer reuniões com sua pistola Glock sobre a mesa, e chegou a afirmar a seus subordinados que “de índio não entendo; entendo é de dar tapa na cara de vagabundo“. Ou, ainda, outro coordenador, da CR Vale do Javari (AM), que foi gravado falando em “meter fogo” em índios isolados. Um terceiro, flagrado por câmeras de segurança agredindo um indígena na sede da unidade que chefia, a CR Xavante (MT). Um quarto (CR Araguaia Tocantins) apoiou ação policial de busca e apreensão em aldeia cujo resultado foi o indígena procurado ser morto, fatalmente baleado, na presença de crianças e outros membros da comunidade. E chegamos ao ponto de um coordenador, o da CR Ribeirão Cascalheira (MT), ser preso, por envolvimento com arrendamento de TI.

Nos cargos hierarquicamente superiores, o aparelhamento pouco preocupado com indigenismo também foi intenso. Todos os 25 cargos DAS-4 existentes no órgão foram trocados. Há dois que, em maio de 2022, encontram-se vagos, já que os nomeados durante sua gestão foram exonerados e ainda não substituídos. Um destes é o chefe do setor responsável pelas políticas para indígenas isolados e recém contatados, para o qual a primeira escolha da atual gestão foi Ricardo Lopes Dias, profissional conhecido por atuar como missionário evangelizador. A posição foi depois ocupada por um servidor do quadro, também exonerado. Nos demais 23, há quatro servidores do quadro da Funai e dezenove de fora: nove de outros órgãos, cinco dos quais policiais (entre originários da Polícia Federal e corporações estaduais), cinco militares e cinco sem vínculo pregresso com a administração pública. Na mais alta direção, além do presidente (DAS 6), há três diretores (DAS 5), dois dos quais (de Proteção Territorial – DPT e de Administração e Gestão – Dages) vieram da Polícia Federal. O terceiro diretor (de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável – DPDS) era também da PF, mas foi recentemente trocado por um militar.

Este balanço, considerado em conjunto com o referente aos cargos das CRs, aponta para uma forte tendência de que a Funai seja ocupada por pessoas sem experiência com indigenismo – sobretudo militares e policiais, além de alguns advogados de especialidades distantes aos direitos indígenas.

Militares e policiais

A falta de perfil adequado dos gestores nomeados muitas vezes implicou mudanças constantes, resultando em prejuízos à execução da política indigenista. Por exemplo, entre o início de 2020 e os dias de hoje, a diretoria DPDS teve quatro titulares diferentes. Alguns nomeados permaneceram apenas alguns meses, como foram os casos de uma diretora da DPT, de um coordenador-geral de Gestão Ambiental e da coordenadora de Componente Indígena de Petróleo, Energia e Gás, dentro da Coordenação-Geral de Licenciamento Ambiental. Na unidade responsável pela análise e elaboração de respostas à contestação de terceiros a processos administrativos de demarcação de TIs, o atual titular foi nomeado para o cargo em outubro de 2021, sendo o sexto a ocupá-lo desde quando Marcelo Xavier assumiu a presidência da Funai.

Nas Coordenações Regionais, as indicações sem critério técnico também têm gerado instabilidade. Várias unidades permanecem por longos períodos apenas com substitutos dos cargos, devido à demora nas nomeações de titulares e, quando estas ocorrem, também a desistências e judicializações. A opção da atual presidência pela nomeação de gestores “polêmicos” levou a algumas contestações na justiça, como nos casos de um capitão da reserva e folclórico ex-candidato a deputado estadual (“O homem do megafone“) na CR Campo Grande (MS), de um capitão do Exército na CR Roraima e de um subtenente do Exército na CR Xingu (MT). Juntamente com os já comentados episódios de violência física e simbólica cometidos por coordenadores regionais de origem militar, as judicializações de nomeações demonstram que os escolhidos pelo presidente da Funai para representá-lo nas “bases” de fato atendem a interesses de outros senhores, que não os indígenas, não tendo perfil adequado para cumprir a missão do órgão indigenista.

Gestão policialesca: assédio e perseguição a servidores

A ocupação militar e policial da Funai tem efeitos diretos no cotidiano dos servidores do órgão. Relatos de assédio são comuns, especialmente aqueles relacionados à imposição de obstáculos ao exercício de funções. Como formas de constrangimento, desrespeito e punição, servidores com posicionamento técnico divergente da orientação anti-indígena da Funai viram suas competências serem retiradas, deixaram de ter acesso a processos nos quais estavam envolvidos, passaram por deslocamento de funções e lotações à revelia e ainda ameaça de remoções, às vezes efetivada.

Em abril de 2022, por exemplo, quatro servidores foram surpreendidos com sua dispensa, publicada no Diário Oficial da União, de Funções Gratificadas que exerciam em localidades diferentes de seu local de lotação. Subitamente, sem qualquer diálogo ou justificativa técnica, os servidores tiveram de mudar de cidade e de rotina pessoal e de trabalho.

A ocupação de cargos e funções é uma opção discricionária, sabe-se bem. Mas esses casos de movimentação à revelia são duplamente emblemáticos. Primeiro, porque revelam prioridades tortas: os servidores foram retirados de CRs e CTLs, que atendem a milhares de indígenas contando com um exíguo quadro de pessoal, para retornarem ao setor de Licenciamento Ambiental em Brasília, não mais carente de recursos humanos do que aquelas. A brusca movimentação foi determinada sem uma análise comparativa em termos de interesse público e resultados da política indigenista. Em segundo lugar, a decisão unilateral impactou significativamente a vida e a saúde de servidores e familiares, e é bastante agressivo e desrespeitoso, do ponto de vista da gestão de pessoas, que tenha sido tomada sem qualquer diálogo ou questionamento prévio.

De 2019 para cá, também aumentou vertiginosamente o número de processos administrativos disciplinares (PAD), refletindo uma deliberada política institucional. Além de disseminar medo e desconfiança no ambiente de trabalho, o uso constante deste instrumento implica diminuição do tempo disponível para as tarefas cotidianas finalísticas dos servidores, considerando-se que os processos são analisados pelos próprios funcionários, já sobrecarregados, tendo em vista o exíguo quadro de pessoal do órgão. Convocados a dedicar-se a duas ou mesmo três comissões simultâneas de PAD, sua própria possibilidade de dedicação às atividades indigenistas é afetada. A primazia do trabalho finalístico não é considerada pela Corregedoria, que rejeita substituir servidores designados para comissões de PAD. (clique aqui para ver a fonte)

A prática de assédio e perseguição foi amplamente sentida em uma das Coordenações Regionais. Logo após a nomeação do Coordenador Regional, houve um episódio que ficou conhecido entre os servidores como “exoneração pública”. O militar então designado para assumir o cargo convocou uma reunião geral, entre servidores e prestadores de serviço terceirizados, para anunciar a sua decisão de exonerar um indigenista especializado, com anos de experiência em seu setor, sem qualquer justificativa plausível. O anúncio provocou um enorme constrangimento, mal-estar e um clima de tensão entre todos os servidores. O servidor exonerado passou a ser perseguido, retirado de todos os processos envolvendo questões territoriais com os quais trabalhava e se deparou com a tentativa de abertura de um PAD para apuração de atos da gestão da Funai praticados em 2011, nunca antes questionados. O mesmo Coordenador Regional chegou ao ponto de esmurrar a parede ao ser alertado por servidores sobre medidas de segurança sanitária relativas à Covid-19, já que apresentava sintomas gripais e estava sem máscara, no auge da pandemia. A prática recorrente de sua gestão era intimidar e ameaçar servidores considerados “ideológicos” por se recusarem a agir contra os direitos dos povos indígenas com os quais trabalham.

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