Entre 2002 e 2016, houve medidas importantes para reduzir a pobreza e a desigualdade, mas reformas estruturais estiveram ausentes e os instrumentos do poder oligárquico permaneceram intactos. O Lula de 2022, porém, tem se comportado de modo distinto. Os atuais pontos debatidos vão muito além das mudanças vividas pelo Brasil até 2016
Antonio Martins, Outras palavras
No cenário político brasileiro – cada vez mais instável e, paradoxalmente, aberto à esperança –, está surgindo um elemento novo. Ele não explode nas manchetes, como as repetidas vociferações de Bolsonaro, o dramático desaparecimento na Amazônia, ou a constatação de que o número de famintos dobrou, em apenas dois anos. Mas tem, a longo prazo, importância maior.
Aqui e acolá, ainda que de maneira ainda embrionária e tímida, estão ressurgindo sintomas de um tipo especial de atividade, nos movimentos sociais. Já não se trata apenas de resistir às investidas contra os direitos sociais.
A reflexão sobre novos projetos de país está sendo retomada. E mais: Lula, o candidato com chances reais de vencer o bolsonarismo, parece em sintonia com o ensaio – ao contrário inclusive do que foi a tradição dos governos de esquerda, entre 2002 e 2016. Onde isso se dá? Por que meios? E – mais importante – por que é tão decisivo para vencer o fascismo e para as disputas muito duras que virão a partir de 2023?
Movimentos sociais ligados a pelo menos três temas estratégicos para o futuro do país estão amadurecendo projetos. O primeiro é a vasta rede que defende a transformação dos espaços urbanos. No último fim de semana (3 a 5/6), realizou-se em São Paulo, a Conferência Popular pelo Direito às Cidades.
Uma constelação de movimentos, que começa pelo BR Cidades e se estende ao MTST, à Central dos Movimentos Populares e a dezenas de outros grupos que lutam por moradia, encontram-se em diversos auditórios do centro. Participaram, enfrentando o frio, centenas de pessoas — dos ativistas majoritariamente negros que ocupam há décadas prédios e terrenos desaproveitados, a pensadores como Ermínia Maricato, Nabil Bonduki e Paolo Colosso.
Os pontos debatidos vão muito além das pequenas mudanças vividas pelo país até 2016. Fala-se em Reforma Urbana, em combate frontal à especulação imobiliária, em enfrentamento do déficit de moradias habitações dignas no centro das cidades, em garantia de transporte público e luta contra a ditadura do automóvel e em muito mais.
Outro processo de mobilização, também de intensidade crescente, está fermentando entre os movimentos que lutam pelo SUS – tão emblemático de outro país possível. Uma Conferência Nacional de Saúde, denominada “Livre, Popular e Democrática”, está marcada para 5 de agosto. É organizada pela Frente pela Vida, outra constelação nacional de entidades. Tem caráter descentralizado e autônomo. Qualquer ativista pode convocar, em seu local de trabalho, estudo, docência ou pesquisa, um evento preparatório, para debater o vasto temário proposto. Os encontros estão se multiplicando.
E, também, aqui, as ambições transformadoras vão bem além do que fizeram os primeiros governos de esquerda. Debatem-se novos parâmetros para financiamento da Saúde Pública – ou seja, reverter o “subfinanciamento” que foi agravado por Temer e Bolsonaro, mas vem desde a Constituição de 1988. Fala-se em “SUS 100% público”, que significa reverter gradualmente a privatização interna do sistema. Propõe-se enfrentar os “vazios assistenciais”, humanizar o atendimento, incorporar a Telemedicina e a Medicina de Dados, hoje cobiçadas pelos planos de Saúde. Desenvolver um Complexo Econômico e Industrial da Saúde, para reconstruir a indústria farmacêutica brasileira e criar a de equipamentos médicos. Em síntese, vislumbra-se não apenas defender o SUS – mas ampliá-lo e fortalecê-lo o SUS, a ponto de enfrentar a medicina de negócios.
Seria exaustivo reportar todas as iniciativas. Vale lembrar que começa a ganhar força o questionamento do Agronegócio. Há poucos dias, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) deflagrou um processo de debate e mobilização nacional que pretende questionar, nas eleições, o atual modelo agrícola. A ideia é chamar atenção para seu caráter predatório da natureza, hostil ao trabalho, hiperconcentrador de riquezas, produtor de alimentos empesteados de venenos. Além disso, é claro, propor como alternativa a agricultura camponesa e seu refinamento agroecológico.
Questão essencial: qual a posição de Lula diante destes movimentos?
Até o momento, ele os tem estimulado claramente, o que – vale notar – destoa da experiência dos governos de esquerda. Entre 2002 e 2016, houve medidas importantes para reduzir a pobreza e a desigualdade, mas as reformas estruturais estiveram ausentes. Mais: adotou-se a opção de governar estritamente sob a institucionalidade ultraconservadora do país – sem jamais tensioná-la de modo efetivo. Não se estimularam pressões ao Congresso, ao Judiciário, à mídia hegemônica. Todos estes instrumentos do poder oligárquico permaneceram intactos. Como resultado, a injustiça extrema da estrutura social brasileira também foi preservada.
O Lula de 2022, porém, tem se comportado de modo distinto. Estimulou pessoalmente os processos de conferências populares. Parte de seus falas tem frisado de maneira explícita a necessidade de governar para as maiorias, de enfrentar as desigualdades, de deixar de atender apenas aos interesses das elites. Em certos momentos, chegou a dizer que os governantes precisam ser cobrados, para que não se acostumem a dirigir distantes das dores da maioria. Esta postura se manterá? É impossível dizer hoje, inclusive porque os processos sociais têm muito mais força que os indivíduos. A vasta frente que está se formando contra o fascismo reúne interesses contraditórios. Parte de seus integrantes buscará se apoiar nas instituições para manter privilégios e frear transformações sociais efetivas.
Por isso, a autonomia e a recriação de um horizonte utópico são hoje fatores chave da disputa pelo futuro do país. O sentido de um possível governo Lula não será definido nem pela vontade do presidente, nem dos partidos que o apoiam. Será a resultante de um conjunto de pressões sociais distintas e muitas vezes contraditórias – algumas libertadoras, outras claramente retrógradas e coloniais. E a melhor maneira de alcançar um governo avançado não será nem nutrir esperanças cândidas, nem praticar a crítica ácida – mas empurrá-lo constantemente para frente.
E esta ação autônoma precisa de sonhos, de projeções de um futuro político comum. Eles são divagações idealistas mas, ao contrário, a antítese do projeto neoliberal. Negam o dogma, tão comum nas últimas décadas, segundo o qual as sociedades e os governos devem limitar-se a obedecer a disciplina dos mercados. Sugerem que há meios para enxergar a realidade e para transformá-la por meio da mobilização social e do confronto contra os interesses hoje dominantes. Por anos, estiveram ausentes, já que a única ação possível era defender as conquistas do passado. Começam a reaparecer, na forma de elementos para um novo projeto de país.
Serão essenciais, no cenário muito complexo que se abrirá em 2023, em caso de uma vitória democrática. O país está mais regredido, empobrecido e desigual do que em qualquer momento nas últimas décadas. Os interesses oligárquicos, fortalecidos, resistirão a mudanças. As experiências anteriores de governos de esquerda são insuficientes para enfrentar os novos desafios. É preciso algo novo. E os projetos políticos que começam a se esboçar de forma autônoma podem ser a chave para a reconstrução.
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