Ciência

O homo sapiens vive como parasita e causa o adoecimento da Terra, diz doutor em geografia

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Estamos diante do que os cientistas chamam de sexta extinção em massa: Dados da pesquisa de Bar-On apontam que cerca de metade dos animais do planeta tenha sido perdida nos últimos 50 anos. O antropoceno carrega consigo alguns aspectos negativos em relação a isso: 83% dos mamíferos terrestres desapareceram, e junto com eles foram 80% dos mamíferos aquáticos, 50% das plantas e 15% dos peixes

Imagem: Erik de Castro | Reuters

Patricia Fachin, Ihu Unisinos

Enquanto alguns pesquisadores denunciam os efeitos da ação humana sobre a Terra, que gerou a nova era geológica, o antropoceno, e projetam a possibilidade da extinção humana como consequência da irracionalidade do Homo sapiens diante da Natureza, Luiz Fernando de Novaes Vianna vê o antropoceno como a “era do desafio de descobrir um novo estilo de vida que permita utilizarmos a etimologia oikos para que nos percebamos inseridos como parte integrante e não mais como proprietários” da casa que habitamos.

Segundo ele, “apesar de as palavras ‘economia’ e ‘ecologia’ apresentarem a mesma etimologia (‘oikos’ = casa), hoje podem ser consideradas como água e óleo. Enquanto a ecologia busca entender o funcionamento da complexa teia da vida, a economia busca se apropriar da Natureza como algo que está totalmente a serviço da espécie humana”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele reflete sobre a relação da espécie humana com a Natureza e o desejo de controlá-la e as consequências desse processo. “Ao mesmo tempo em que vivemos as últimas quatro ou cinco décadas usufruindo dos benefícios dos luxos produzidos pelo nosso sistema econômico, tecnológico e científico, estamos começando a perceber que esse benefício, focado primordialmente na espécie humana, está trazendo consequências severas para as demais espécies.

Como parte de uma teia ecossistêmica complexa, qualquer desequilíbrio acentuado no ecossistema pode causar um colapso imprevisível, com consequências severas para o todo.” Entre as consequências já observadas, acrescenta, “após a revolução industrial e o advento das commodities, passamos a viver como parasitas, extraindo ao máximo de Gaia aquilo que necessitamos a ponto de levá-la ao adoecimento”.

Luiz Fernando de Novaes Vianna é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Santa Úrsula, Rio de Janeiro, mestre em Engenharia Ambiental e doutor em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. É pesquisador da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina – Epagri e do Centro de Informações de Recursos Ambientais e de Hidrometeorologia de Santa Catarina – Ciram.

A entrevista foi originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no dia 16-06-2022. Confira:

Que novas reflexões e problemáticas a pandemia de Covid-19 acrescentou à discussão sobre o antropoceno?

Luiz Fernando de Novaes Vianna – Não acredito que a pandemia tenha trazido novas reflexões e problemáticas além daquelas com as quais lidamos, como humanidade, desde o marco histórico da revolução industrial. Ela apenas colocou em foco a nossa ideia de controle da Natureza através da ciência e da técnica. A única novidade aqui talvez esteja na percepção que estamos construindo em relação às consequências do nosso estilo de vida, como espécie, a partir de então. Essa percepção é que nos leva, hoje, a questionar se estamos ou não cruzando uma era e realmente adentrando ao que chamamos de antropoceno. No livro “Sapiens, uma Breve História da Humanidade”, Yuval Harari traz uma perspectiva histórica fantástica sobre como passamos de seres integrados à Natureza para seres que pretendem controlá-la e dominá-la, como se ela fosse algo alheio à nossa existência e sob o nosso domínio.

Através de uma análise psicossocial, ele nos apresenta alguns indícios de como a humanidade foi se organizando em grupos cada vez mais numerosos a partir não mais das necessidades biológicas (alimentação, reprodução, abrigo, proteção…), mas de abstrações e crenças. O surgimento das religiões e, mais recentemente, da ciência nos levou de pequenas tribos e grupos de caçadores-coletores com menos de 100 indivíduos para outro patamar como espécie, favorecendo o crescimento das organizações humanas e iniciando o processo das grandes civilizações.

Tanto as religiões quanto a política, a ciência e a economia nos levaram a um papel de “senhores da Natureza”, no qual valores como cooperação e altruísmo foram, aos poucos, dando lugar à competição e ao individualismo. Enquanto as religiões tiveram um papel fundamental na união de grupos de pessoas através da crença, a política ampliou essa união para a concepção das nações. Ao mesmo tempo em que ambas favoreceram a criação de grupos humanos cada vez mais numerosos e focados em valores e ações comuns, as diferenças ideológicas entre os grupos também foram aumentando. A partir da adoção da moeda, um novo valor foi inserido em nossas crenças e o processo de união, que até então parecia caminhar para uma organização social ainda cooperativa, passou a dar lugar às disputas. E essas disputas passaram também a fazer parte de um processo de “luta contra a Natureza”. O selvagem tornou-se inimigo.

O controle da natureza

Com as descobertas científicas associadas às ciências naturais (física, química e biologia), o homem passou a acreditar na possibilidade de controlar a Natureza. Trabalhos como os de Galileu, Lavoisier, Descartes, Newton e Einstein fortaleceram a percepção humana sobre a sua capacidade de entendimento e domínio dos fenômenos naturais. Mas a Teoria da Evolução de Darwin talvez seja a obra científica cuja interpretação teve mais influência nesse processo. A ideia da “lei do mais forte” que paira sobre ela é hoje a base da economia mundial. Apesar de as palavras “economia” e “ecologia” apresentarem a mesma etimologia (“oikos” = casa), hoje podem ser consideradas como água e óleo. Enquanto a ecologia busca entender o funcionamento da complexa teia da vida, a economia busca se apropriar da Natureza como algo que está totalmente a serviço da espécie humana.

Assim, o antropoceno talvez seja a era do desafio de descobrir um novo estilo de vida que permita utilizarmos a etimologia oikos para que nos percebamos inseridos nela como parte integrante e não mais como proprietários.

Quando se analisa o atual cenário, especialmente tendo em vista as mudanças climáticas, há, de um lado, a crença de que o desenvolvimento científico poderá oferecer soluções futuras para mitigar os efeitos extremos e, de outro, a crença de que estamos caminhando para a extinção da espécie humana, tendo em vista o antropoceno. Até que ponto a ciência e a máxima do antropoceno podem controlar e determinar a vida do planeta? Que limites percebe em cada crença?

Luiz Fernando de Novaes Vianna – É interessante a adoção do termo “crença” nessa pergunta. Até então a ciência sempre teve como objetivo buscar soluções que, com o passar do tempo, se tornam verdades. Boa parte do conhecimento que temos hoje a respeito do funcionamento das coisas tem por base a ciência. Esse conhecimento, quando consolidado, torna-se o que consideramos verdade. Nossas máquinas, nossas construções, nossos medicamentos são todos frutos da ciência e são verdades do nosso dia a dia. Andamos de carro, moramos em casas e tomamos remédios para alguns males, sem nos perguntar se acreditamos nisso. Já estão consolidados. Mas todos esses exemplos nasceram de crenças. Hoje andamos de carro porque alguém, em algum momento, acreditou ser possível utilizar um objeto circular para fazer uma roda. Depois alguém acreditou que ao colocar quatro desses objetos alinhados em eixos, seria possível fazer um carro de boi. E assim a ciência segue, nascendo das crenças para construir as verdades.

Quando fazemos perguntas sobre o futuro, caminhamos pelas trilhas das crenças. Hoje, mesmo diante do nível tecnológico que atingimos, temos dificuldade em assumir a nossa incapacidade de lidar com as crenças e com a verdade que nos impossibilita de ter o controle de tudo. E aí está a trilha da ciência.

A pandemia nos colocou em um grande experimento científico como humanidade. Nos últimos anos foram tentados vários caminhos para lidar com o coronavírus, a Covid-19 e as suas consequências para a humanidade. Esse grande experimento abriu caminhos por inúmeros ramos da ciência. Os primeiros decretos públicos para tentar reduzir a circulação das pessoas e, consequentemente, a disseminação do coronavírus tiveram como base a crença de que o isolamento reduziria o número de casos. Mas como nesse grande experimento nós éramos as cobaias, nossas crenças individuais nos levaram por caminhos distintos, pois ainda não dispúnhamos de muitas verdades científicas sobre a real eficácia desse isolamento. O mesmo ocorreu, em seguida, com as vacinas. O coronavírus nos colocou frente a frente com as nossas crenças. Ao mesmo tempo, nos colocou frente a frente com a nossa incapacidade de controle sobre a Natureza.

Mudanças climáticas

Em relação às mudanças climáticas, seguimos a mesma lógica. Hoje fazemos parte de um grande experimento científico e temos muito mais crenças do que verdades. Por mais que acreditemos comprovar que nos últimos milhares de anos nunca houve alteração climática no nível que nossa ciência nos permite avaliar, o que são os últimos milhares de anos em comparação aos 4,5 bilhões de anos do planeta? Temos controle sobre o que fazemos hoje no planeta? Não será essa forma predatória de se apropriar dos recursos naturais uma estratégia ecológica da nossa espécie, codificada no nosso DNA e sobre a qual não temos possibilidade de intervir? Quantas espécies já foram naturalmente extintas antes de nós? Por que as espécies deveriam ser perpétuas?

Diante dessas perguntas, os limites de cada crença estão dentro de cada um de nós. Do mesmo jeito que alguns preferem consumir orgânicos, não utilizar sacolas plásticas, tomar banhos rápidos e andar apenas de bicicleta, há aqueles que querem consumir ao extremo tudo que a sociedade atual oferece. Cada um escolhendo de que lado do experimento deseja estar. A verdade sobre esse experimento só será conhecida no futuro. Não temos o menor controle sobre ela.

No artigo intitulado “Antropoceno e o Covid-19: Uma era de integração ou de controle da Natureza?”, você reflete sobre dois caminhos para o Homo sapiens: ou sua capacidade de controlar a Natureza ou um ser limitado que faz parte de uma complexa teia ecossistêmica que possui seus próprios mecanismos de autorregulação. Uma dessas alternativas explica e caracteriza melhor o Homo sapiens do que a outra? Por quê?

Luiz Fernando de Novaes Vianna – Relendo hoje o artigo, me questiono se há uma dicotomia entre integração e controle. Me questiono se, diante dessa complexa teia ecossistêmica, esses dois caminhos são realmente os que se destacam ou se são apenas dois ramos perdidos no emaranhado dela. Se fizéssemos essa pergunta direcionada a nós individualmente, qual seria a resposta?

Eu penso que possuímos tanto a capacidade de estar integrados à Natureza quanto sentimos a necessidade de controlá-la. Há ato mais natural e selvagem do que o parto? E esse é o ponto de partida para a existência de qualquer ser humano. Por outro lado, em muitos casos, tentamos minimizar alguns fatores associados a esse ato, seja por medo, por crença ou simplesmente porque repetimos algo que alguém fez antes de nós. Anestésicos, cirurgias e uso de drogas são formas de tentar controlar alguns aspectos desse processo tão natural e selvagem. Qual tipo de parto caracteriza melhor o Homo sapiens do que o outro?

O ponto de reflexão que tento trazer no artigo é: o que deixa de ser natural nas nossas escolhas e atitudes se somos, de fato, parte da Natureza? Em relação à necessidade de controle, hoje percebo muito mais como uma questão psicossocial do que ecológica. Somos seres controladores por natureza, por isso temos dificuldade em assumir a nossa falta de controle em determinadas situações. Individualmente, somos seres diariamente expostos ao medo e à necessidade de superá-lo. Ao mesmo tempo, como espécie, somos parte de uma teia autorreguladora que insiste em eliminar os excessos para manter o sistema em equilíbrio dinâmico. Por isso que, a cada ameaça que somos submetidos, seja ela individual ou coletiva, respondemos com uma ação que visa o controle. A pandemia mostrou isso. Não aceitamos, como indivíduos nem como espécie, ter nossa população reduzida por um vírus letal que tem uma função ecológica clara de controle populacional. Nossa resposta foi imediata. Isolamento, máscaras, higiene e ciência para elaborar vacinas e remédios. Uma resposta natural a uma ameaça natural. Ou não?

Na Natureza, sempre que uma espécie apresenta um crescimento populacional acima do que o ambiente pode suportar, mecanismos de controle são acionados (doenças, pragas, canibalismo, reversão sexual…). Em seu artigo “The Balance of Nature and Population Control”, publicado em 1967, Ehrlich e Birch já discutiam alguns desses mecanismos naturais de manutenção da dinâmica populacional das espécies. Por que nós, como uma espécie pertencente à Natureza, não estaríamos sujeitos a esses mecanismos também?

Talvez porque a morte para nós seja um grande tabu? Como lidamos com ela? De que forma as religiões nos colocam diante dela? Ou talvez porque temos dificuldade de aceitar nosso descontrole total diante da sua eminente chegada?

Por não refletirmos muito sobre essas questões, seguimos lutando contra a Natureza na esperança de que conseguiremos controlá-la através da ciência e da tecnologia.

Como reflete sobre o antropoceno à luz destas duas visões que apresentou: da capacidade humana de controlar a Natureza e de o ser humano ser um ser limitado que faz parte de uma complexa teia ecossistêmica que possui seus próprios mecanismos de autorregulação?

Luiz Fernando de Novaes Vianna – Percebo o antropoceno como um momento de profunda reflexão por parte da humanidade sobre a sua forma de lidar com a Natureza. Ao mesmo tempo em que vivemos as últimas quatro ou cinco décadas usufruindo dos benefícios dos luxos produzidos pelo nosso sistema econômico, tecnológico e científico, estamos começando a perceber que esse benefício, focado primordialmente na espécie humana, está trazendo consequências severas para as demais espécies. Como parte de uma teia ecossistêmica complexa, qualquer desequilíbrio acentuado no ecossistema pode causar um colapso imprevisível, com consequências severas para o todo.

A teoria de Gaia, de James Lovelock, nos ajuda a compreender esse momento. Imaginarmos a Terra como um ser vivo que está se aquecendo (como uma febre) em função de uma proliferação sem precedente de uma espécie que produz toxinas e as lança em grandes quantidades nas águas e na atmosfera nos permite olhar para nós mesmos quando estamos com alguma infecção. Se os vírus ou bactérias que nos infectam e nos causam doenças percebessem que poderiam nos matar, eles manteriam suas populações em níveis máximos o suficiente para não nos causar a doença. Assim poderiam se perpetuar como espécie em nosso organismo e viver em harmonia conosco. Essa é a diferença entre o parasitismo e o comensalismo ou o mutualismo.

Diante de Gaia: Oito conferências sobre a Natureza no antropoceno

No tempo em que éramos caçadores-coletores, vivíamos em mutualismo com Gaia. Nos alimentávamos dos seus frutos e ajudávamos a semear as florestas, contribuindo tanto para o nosso bem-estar quanto para a saúde de Gaia. Quando descobrimos a agricultura, passamos a viver em comensalismo. Nos beneficiávamos de Gaia, mas não a prejudicávamos, também não entregávamos nada em troca. Após a revolução industrial e o advento das commodities, passamos a viver como parasitas, extraindo ao máximo de Gaia aquilo que necessitamos a ponto de levá-la ao adoecimento. Esse é o antropoceno.

No artigo, você diz que “estamos desfazendo a teia da vida, transformando-a em uma ‘monocultura’ humana”. A que se refere especificamente? Pode explicar como isso está ocorrendo?

Luiz Fernando de Novaes Vianna – Chamei de “monocultura humana” o fato de o Homo sapiens ser a espécie dominante no planeta entre os mamíferos. Particularmente não gostei desse termo e espero encontrar algo mais adequado em breve.

Estamos diante do que os cientistas têm chamado de sexta extinção em massa. De acordo com os estudos de Bar-On (2018), se pegarmos todos os seres vivos do planeta e colocarmos em uma balança gigante, 82,4% da massa é de vegetais, 17,2% é de microorganismos e fungos e apenas 0,4% é de animais.

Do total de animais existentes na Terra, 6,8% são mamíferos. Do total de mamíferos, 96% são humanos e animais domesticados (60% bovinos e suínos, 36% humanos) e apenas 4% são mamíferos selvagens. O domínio da espécie humana e das demais espécies utilizadas pelos humanos para a sua sobrevivência são responsáveis pela extinção de outras espécies que são eliminadas através de processos associados, principalmente, à perda do seu habitat natural. Os dados da pesquisa de Bar-On apontam que cerca de metade dos animais do planeta tenha sido perdida nos últimos 50 anos. O antropoceno carrega consigo alguns aspectos negativos em relação a isso: 83% dos mamíferos terrestres desapareceram, e junto com eles foram 80% dos mamíferos aquáticos, 50% das plantas e 15% dos peixes.

O impacto da espécie humana na biodiversidade e na saúde do planeta é perceptível no antropoceno. Com apenas 0,01% da biomassa total de seres vivos sendo humanos, já fomos capazes de eliminar a maior parte da biodiversidade que encontramos aqui quando ainda éramos caçadores e coletores. Queremos continuar assim? Queremos ser apenas uma única espécie a habitar a Terra?

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