A arte pode ser bela. Mas o conceito de beleza também pode ser complexo e subjetivo. Um ralo, objeto tão útil quanto nojento, pode ser o condutor não de uma porção de água que já não nos serve, mas de sentimentos que não sei se nos foram úteis, mas também não os queremos mais em nós. E há beleza nisso. Há poesia nessa proposta
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Nos últimos tempos, a arte no Brasil vem sofrendo sucessivos, sistemáticos e pretensiosos ataques. O objetivo é óbvio, mas convém lembrar: enfraquecer as diversas expressões artísticas possíveis.
Mas há resistências e resistentes.
Jonatã Nunes é coletor de resíduos reciclados, profissão também conhecida como gari. Ele foi objeto duma reportagem do Jornal Zero Hora deste ano. É que, em meio às adversidades inerentes à profissão, que podemos imaginar, ele escreveu um livro de poesias. Por definição própria e livre, diferencio poema de poesia. Com algum esforço, penso que qualquer um possa ser um “poemador”. Basta seguir determinados critérios de escrita e fazer algumas rimas, talvez. Ser poeta, entretanto, não é tão simples, embora eu pense que podemos treinar nossa sensibilidade para tal.
Achei a história de Jonatã no mínimo interessante. Colecionador e leitor de livros, adquiri um exemplar de “O Tempo é Prioritário” com receio de ter em mãos apenas um livro de poemas, mas não de poesia. Assumido preconceito com autores iniciantes.
Como todos os preconceitos, o meu também não tinha razão de ser. Há poesia nos poemas do Jonatã. Há sensibilidade transcrita nos versos livres. Há, e isso também diferencia um escritor dum mero autor, o transporte ao ambiente narrado. Podia ser eu aqui, num dos sofrimentos amorosos pelas quais passei, que sou um sofredor incorrigível: “Há 1 da manhã / sentado na calçada / com os sentimentos vagos / ascendo mais um cigarro”.
Ele não poderia se encaixar num padrão. O artista é antes de tudo um transgressor, alguém que só não flerta com o anarquismo porque o anarquismo tem lá as suas regras: “Perdido pelas ruas / de quadra em quadra / de esquina à esquina / reprendido e confuso / me sinto um maluco / com um parafuso a menos / conversando com meus botões / me vejo / sem razão / e sem padrões (…)”.
Jonatã transgride e se rebela. Não com a vida que vive, mas contra a vida que não quer viver. Ele vê, sente (e nos conta) a poesia do dia a dia. A dor do poeta é, em muitos casos, a nossa dor. Jonatã é também um corajoso em compartilhar o seu (e nosso?) sofrer. Esta faz doer aquela dor que um seu colega de versos escreveu há algum tempo, a ferida que dói e não se sente: “Queria lembrar / do seu cheiro / dos seus beijos / dos seus abraços / (…) / de ver seu sorriso / em algoz / (…) / cenas abstratas / em amores de deserto(…)”.
Em demonstração de coragem, Jonatã se lança às palavras e escreve um livro mesmo com pouco estudo. Os erros gramaticais e ortográficos, ao fim das contas, são parte intrínsecas a sua poesia, pois são parte dele. E não, não se pode separar o artista da pessoa. Um complementa o outro. À sua amada, Jonatã diz o que nos serve talvez de explicação e satisfação a seus leitores: “(…)palavras bonitas, só buscar no dicionário e para com suas / atitudes bizarras, porque já está fazendo apenas mais um papel / de otário(…)”.
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E por falar em artista rebelde (com a escusa da redundância), o professor Tôni Rabello está transgredindo o ordinário do quotidiano e também enxergando possibilidades poéticas em objetos a princípio inóspitos.
Desde 2013, Rabello vê o ralo como uma possibilidade de interação artística. Ele utilizou o artefato para a sua pesquisa de mestrado.
Passados quase dez anos, Tôni não abandonou o ralo. Compreensível. Não vivemos sem ele.
Agora, em 2022, professor Tôni está fazendo com seus alunos das séries finais do ensino fundamental a proposta “Ralo das emoções: escoamento de sentimentos”.
Nela, preocupado com as várias emoções negativas relativas e/ou por causa da pandemia, Tôni propõe reflexões e diálogos com os estudantes sobre esses sofrimentos e lutos. “Em uma folha de papel, os estudantes escreveram o que ou quem perderam nos últimos dois anos. Nesta mesma folha, sinalizaram em que fase do luto se encontram e, por último, escreveram em que contexto essa perda aconteceu.” Ao final, todas essas emoções negativas são colocadas no ralo ao centro do círculo.
Se Jonatã assistisse a uma dessas aulas, talvez (re)escrevesse: “Os traumas que carregamos / dentro do peito / são tão inconsoláveis / pelas dores que já passamos / pelas ruínas que ultrapassamos / nossas angústias / são nosso porta-retratos”.
A arte pode ser bela. Mas o conceito de beleza também pode ser complexo e subjetivo. Um ralo, objeto tão útil quanto nojento, pode ser o condutor não de uma porção de água que já não nos serve, mas de sentimentos que não sei se nos foram úteis, mas também não os queremos mais em nós. E há beleza nisso. Há poesia nessa proposta.
Que o ralo é importante em nossas vidas, isso basta nos imaginarmos sem para saber. Mas, ao trazê-lo para tão perto de nós, no íntimo do nosso sofrer, ele é valorizado, donde projeto várias possibilidades metafóricas e alegóricas. A arte é de livre interpretação, ora. Será que estamos valorizando o tanto quanto merecem os objetos e as pessoas que nos rodeiam? Ou as utilizamos com muita precisão, mas as menosprezamos tal qual um ralo de banheiro?; ou ainda: será que nossos sofrimentos só estão em nós porque de alguma forma temos algum “ralo de escoamento” entupido?; a náusea incômoda oriunda do ralo não seria resolvida se parássemos de procrastinar a abertura dele para a limpeza e deixar que tudo que o está trancando seja levado para o desconhecido caminho do encanamento cloacal?
Definitivamente, não podemos ignorar nossos ralos.
Tôni e Jonatã são artistas na concepção profunda do conceito. Veem beleza e sentimentos em meio a resíduos que já não nos servem mais.
Mas em tempos de em voga reciclagem e reutilização, e em meio às dificuldades políticas, econômicas e sociais pelas quais passamos, nos resta a arte verdadeira para sobrevivermos ao lixos metafóricos que tentam nos contaminar.
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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