Economia

Economia trata de quê?

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O pensamento econômico tradicional escolheu dar centralidade à escassez de bens e recursos, na suposição de que esta é resolvida pelas forças do mercado. Porém, a questão fundamental é a subsistência do homem: seu direito à renda, ao emprego, a escapar da fome e da precariedade

Imagem: ABr

Nathan Caixeta*, Brasil Debate

Do que tratamos em Economia? Da produção e distribuição da riqueza a partir da utilização de fatores produtivos escassos? Isto é, da racionalização ótima do modo de produzir e consumir das sociedades, dado o prodígio das ciências aplicadas em criar métodos de produção e tipos de bens de consumo que inovem a forma de viver? Será que a Economia como campo de conhecimento e partícula decisiva (e decisória) da vida social se resume à questão do know how daqueles que governam, pela política e pelo dinheiro, as sociedades, assobradados por fortalezas institucionais “bem comportadas”?

Se a Economia se resume a isso, então abandonemos os debates sobre a concretude das relações sociais e podemos nos ocupar apenas de nossas preferências pessoais e egoístas, nossa visão distorcida da felicidade etérea e da transcendência dos desejos sobre os sentidos. Não! Não é disso que se trata a dita cuja ‘Economia’ (em seu sentido tradicional), abarrotada de números, modelos e previsões para tudo explicar, sem nada esclarecer ou sequer refletir sobre qualquer outra dimensão da vida que transborde o reino das trocas.

O problema econômico fundamental é a subsistência do homem, como assinalou Karl Polanyi. O fato econômico, como também nos ensinou Keynes, em nada se confunde com a resolução da escassez, isto é, de uma instância natural e inescapável da vida humana ante à natureza.

A escassez de bens, alimentos, trabalho, ou qualquer coisa que satisfaça o moinho entre produção e consumo aparece apenas, e tão somente, como um dado particular do problema econômico, mas não constitui seu fundamento. Segundo o pensamento econômico tradicional, a escassez existe num duplo sentido: garantir a equivalência entre oferta e demanda (consequência) e cristalizar a racionalidade (inata ou evolutiva) dos indivíduos em suas decisões sobre a forma de alocar seu recurso de forma eficiente, isto é, de modo que a escassez garanta tanto o crescimento da produtividade do trabalho e do capital. Garantindo, portanto, o pleno emprego, quanto ofereça estabilidade ao sistema de preços, salvando os incautos das ilusões monetárias e fiscais empreendidas por governos que se atrevam a estimular a demanda e a criação de empregos.

Colocar a escassez como essência da ação econômica do homem é como abdicar de responder as desigualdades produzidas pela dominação do dinheiro-potência sobre a vida dos homens, oferecendo como solução a espontaneidade da transformação das aflições do espírito em agonia materializada da vida humana. Adam Smith e, antes dele, os Fisiocratas escolheram explicar a Economia pelo dilema da escassez tanto como esforço sincero de investigação, quanto sincero exercício de justificar as aparências pela mera existência de correlações.

Provavelmente, François Quesnay, o principal fisiocrata, no rabisco de seu TableauÉconomique enxergava, na relação entre a produtividade da terra e a riqueza alcançada pela transformação da natureza em bens de consumo, algo semelhante ao seu ofício médico: quanto mais acelerada, ou mais lenta a batida do coração, maior a chance de o paciente “bater as botas”. Uma constatação oferecida inúmeras vezes pode dar a impressão de que investigar suas raízes e fundamentos é mero exercício de curiosidade e interesse particular que, com sorte, trará benefícios para o bem-estar geral da sociedade. Investigar as causas dos problemas cardíacos, sem dúvidas, salvou incontáveis vidas. Investigar a escassez como fundamento da Economia produziu apenas flatulências verbais que compõem os incontáveis Tratados de Economia Política.

Arguir, por princípio e de início, como ocorre a geração de riqueza, atribuindo a distribuição da riqueza à escassez, é antecipar a solução antes da colocação do problema. A pergunta fundamental deveria ser: o porquê da produção de bens materiais para garantia da subsistência sob o despotismo do trabalho e da exploração capitalista?

A reposta mais óbvia é a de que a “barriga dói”, a insuficiência alimentar adoece e mata, a insegurança material deprime as relações sociais e aniquila a vontade de viver. A subsistência é, por princípio, uma esfera elementar da vida. Resume-se à manutenção da própria vida humana.

Na ausência da provisão divina, do maná que vem dos céus, ou do azeite que se multiplica em jarros vazios mediante o ato inconteste da fé, a solução do homem para a subsistência se baseou durante milênios na caça e na agricultura. Por habilidosos que fossem os caçadores, o instinto da presa poderia surpreendê-los. Por mais organizada que seja a produção de alimentos, o excesso, ou falta de chuva, a inaptidão do solo, dentre outras intemperes naturais, poderiam condenar o homem que empunha a enxada à falência alimentar irremediável.

A formação de organizações sociais mais complexas a partir dos antigos impérios do Mediterrâneo até o aparecimento dos impérios Helênico e Romano consolidou a distribuição dos meios de subsistência segundo critérios subjetivos de dominação. Os governantes, sacerdotes e membros da nobreza absorviam parcelas maiores da produção social, ao passo que aqueles aprisionados no âmbito privado, as mulheres, os escravos e trabalhadores comuns repartiam a porção sobrante da produção social para subsistir. Eis que mesmo recorrendo às sociedades antigas, verificamos algo em muito distinto do naturalismo da escassez como fundamento da produção social e do impulso inato à troca que a interpretação de Adam Smith nos fez presumir.

Objetivamente, a combinação do trabalho com a técnica para subtrair da natureza os bens que permitam a subsistência humana verifica-se como hábito cotidiano e essencial. Essencial, mas auxiliar, pois o trabalho para subsistência resumia-se, nas sociedades pré-capitalistas, à atividade diária para carregar as baterias vitais que permitissem a realização de outras atividades humanas mais centrais à vida e à felicidade. A religião, as artes, o estudo da filosofia e das ciências, as relações comunais e familiares ocupavam a centralidade da vida humana e diante delas o trabalho não passava de um eixo auxiliar, uma obrigação diária para responder às necessidades fisiológicas.

Há, portanto, uma clara separação: a substância concreta da vida humana se realiza na vida social, enquanto os fenômenos econômicos da produção e do consumo se restringem à parcela da vida humana preservada para a privacidade em igual termo de importância com os cuidados com a saúde, a educação dos filhos, o descanso e o lazer.

A ideia de uma divisão social do trabalho como centro de organização da vida social, isto é, um moinho imparável entre produção e consumo cuja distribuição dos frutos do trabalho é dada pela escassez, é uma ideia tão falsa, quanto sua falsidade só pôde adquirir aparência de concretude na modernidade, ou ainda a partir da explosão comercial, urbana e colonialista que desembocou no desenvolvimento da indústria entre os séculos XIV e XVII. Antes disso, o avanço da produtividade do trabalho não se deveu à necessidade mercantil de aumentar a produtividade, mas da preguiça humana que deu origem à roda.

O impulso para o comércio baseia-se na ideia da constituição de excedentes entre o que é produzido e consumido. Isto é, quando se produz mais do que é necessário para subsistência, é possível e desejável a troca, primeiro para diversificação do consumo e, modernamente, para o processo de acumulação. O escambo, a reprodução simples na qual o dinheiro atua como equivalente geral entre os diversos tipos de bens, são formas que nascem do excedente. O fenômeno da acumulação, por outro lado, não nasce da produção do excedente, mas é um transbordamento da atividade humana do trabalho como o mais poderoso fundamento de dominação entre os que se apropriam do trabalho alheio podendo acumulá-lo e aqueles que trabalham para subsistir.

A acumulação não dá origem ao capital, mas se origina dele. Assim como o capital não nasce da acumulação de qualquer bem, mas da transformação do trabalho em valor pela existência precípua do dinheiro. Por mais que alguém produza batatas, produza mais do que consome, troque por porções de outros bens, não interessa nem ao produtor, nem ao comprador acumular batatas, arroz, açúcar. A acumulação tem uma forma universal, o dinheiro como riqueza potencial. Todas as outras formas de riqueza são formas transitórias para chegar ao dinheiro.

É da existência do dinheiro que se explica a acumulação e nela está colocada a aparição do capital, não como conjunto de bens que constituem a quantidade de riqueza (física ou financeira), mas como relação social de exploração e dominação. O dinheiro como riqueza potencial transborda a função do intermédio das trocas, pois esta é sua função acessória ao evento mercantil (compra-venda). A função elementar que explica a existência do dinheiro, sua forma como riqueza potencial, constitui o fundamento para atuação do dinheiro como equivalente geral das mercadorias, motivação para a produção mercantil de excedentes e, em última instância, do desenvolvimento da divisão social do trabalho.

O dinheiro como potência equivale à propriedade da riqueza ao fenômeno do poder. Como nos ensinou Aristóteles, o poder se consuma na potência do ato, isto é, no adiamento do ato para sua expansão. O exemplo cabal é o homicídio. O poder de definir o destino da vida de alguém, apontando uma arma, por exemplo, se efetiva quanto mais a ameaça aparente consolidar-se a qualquer instante. Quando o tambor da arma precipita o disparo da bala contra o corpo de outro, ou a faca se move ofensivamente contra o rival de seu possuidor, o ato se efetiva e o poder deixa de existir ao se consumar em ato. Noutro sentido, quando a potência perde capacidade de adiar o ato, o poder se deprecia, pois o ato deixa de aparentar viabilidade. No exemplo do homicídio, se o possuidor da arma deixa de apontá-la para o corpo ao qual a bala está prometida, o indivíduo ameaçado pelo medo da morte adquire dose de esperança na sobrevivência.

No caso do dinheiro, a relação entre potência e ato é um tanto mais complexa, pois é espalhada entre o desejo e a necessidade. O desenvolvimento do capitalismo só foi possível porque antes da inventividade dos homens o dinheiro assume função central na organização da vida social.

Enquanto necessidade, o dinheiro significa o transbordamento do trabalho para subsistência, como medo concreto da fome. Enquanto desejo, simboliza a busca pelo poder de uns sobre os outros, isto é, da potência da transformação do dinheiro em qualquer outra coisa, inclusive aquelas capazes de remediar a fome. Entre o desejo e a necessidade, percebe-se a fluidez do dinheiro como poder, ao igualar formalmente as pessoas, concedendo-as “poder de escolha” e impulsionar à diferenciação social desencadeada pela dinâmica da acumulação, onde uns trabalham para subsistir (antecipando o ato pela ameaça da fome), enquanto outros acumulam riqueza, transitando-a entre suas formas para, no fim, expandir a potência do dinheiro, adiando perpetuamente o ato.

A passagem do trabalho como meio elementar e acessório do cotidiano, reservado à esfera da privacidade, para uma espécie de processo generalizado de submissão do trabalhador ao capitalista, escorre pelas veias da divisão social do trabalho, mas se efetiva quando o dinheiro se transforma em capital. E, antes disso, aparece como forma concreta do trabalho abstrato num processo de abstração real, no qual a geração de riqueza se dá pela exploração, sua distribuição pela estrutura de dominação capital-trabalho e a subsistência fica aprisionada à dinâmica do desemprego.

Como recordam Belluzzo e Galípolo na obra “Dinheiro: o poder da abstração real”, publicada em 2021, a abstração real “não se opõe ao mundo concreto, não o força ou o obriga como força externa, mas o coloniza por dentro, o assimila em suas leis”. Prosseguem os mestres, sobre os efeitos da abstração real: “é um vetor da realidade nem visível nem tangível: tão invisível que, em sua construção da realidade, essa força subterrânea só pode produzir o esvaziamento do concreto”. Como resultado do processo de abstração real: “Isso significa que, simultaneamente, produz e dissimula a realidade”.

É mediante a abstração real, movimento concreto como eixo de gravitação das formas da riqueza que se conectam a exploração do trabalho à acumulação, a subordinação da subsistência à geração de excedentes destinados à mercantilização. Ao produzir e dissimular a realidade, o poder do dinheiro como abstração real, ensina a dupla Belluzzo-Galípolo, promove a naturalização das aparências como fenômenos concretos e o esvaziamento da existência da realidade concreta, como aspecto perturbador da ordem social dissimulada pela exploração do trabalho imposta pelo redemoinho entre a necessidade e o desejo, instintos sociais disparados pela figura do dinheiro.

É perturbador no sentido de que, se dissipada a cortina de fumaça entre concreto e abstrato, a perquirição inicial sobre a geração de riqueza perde sentido prático, obrigando os sábios economistas ao passo anterior: o questionamento das desigualdades sobre a propriedade da riqueza e seu potencial sistêmico de aprofundamento das disparidades nos níveis de renda, de segurança ocupacional, das condições dignas de vida e, no limite, da questão fundamental. Porque, para alguns, a inviabilidade da subsistência se impõe como fato irremediável, enquanto para outros a abundância aparece como fato perpétuo que desqualifica a igualação formal pela ilusória “liberdade de escolha”. E revela a dinâmica precária da diferenciação social pela detenção do poder sobre o dinheiro, isto é, pela expansão da capacidade de adiamento do ato diante da crescente potência do dominador em subjugar o dominado.

Diante desses fatos, a Economia Política Clássica e sua prole moderna (a teoria das expectativas racionais, o calabouço lógico do hiato de produto como indicador das políticas econômicas e a conclamada ideia da austeridade como indutora “mágica” do crescimento econômico) se veem sem saídas senão admitir que não tratam, como nunca trataram, de Economia. Mas de um simulacro sustentado pela ideia de criar uma física social de péssima qualidade cuja capacidade de responder ao problema econômico – a subsistência do homem – é insuficiente, senão completamente nula.

Admitir a centralidade da escassez como condição de equilíbrio das forças do mercado e rota que induz à inobservável relação entre o egoísmo metódico e o bem-estar geral foi a saída encontrada para escapar da discussão central da Economia: como garantir meios dignos de vida para todos, sobretudo, a generalização da subsistência humana como princípio universal da organização social e não como resultado da mão invisível smithiana, da concorrência desigual entre possuidores e despossuídos, ou da prodigiosa geração de progresso técnico que revoluciona o modo de vida, mas preserva os avanços para os detentores da riqueza, espalhando as migalhas da produtividade do trabalho para aqueles acorrentados ao trabalho como meio de subsistir.

Para sintetizar, enquanto as leis de movimento do capitalismo, voltadas para a acumulação monetária, impõem, mediante suas contradições, a escassez para poucos, a Economia Política se afasta das questões centrais para impor a escassez como fenômeno genérico que equilibra as decisões individuais. O dinheiro, em seu duplo papel, como desejo e necessidade, opera a abstração real, produzindo um simulacro da realidade, invisível, fetichizada, que oculta a dependência entre acumulação de capital e exploração do trabalho, uma espécie de ficção ultrarrealista do cotidiano.

No subterrâneo do simulacro social, a questão da subsistência sucumbe ao perpétuo movimento das estruturas de dominação, de reforço dos laços que submetem o homem a dependência do trabalho, subtraindo da vida humana todos os seus aspectos de dignificação, isto é, de alcance da felicidade genuína – nem perene, nem impossível, mas mediada pela espontaneidade, pela criatividade, pelas paixões, pelas artes, pela cultura, pela religiosidade desarraigada do fanatismo, pela vida familiar, pelas amizades e pela fraternidade humana, sem a qual a ordem social impõe-se como abstração real em movimento.

Como encerramento, volto ao início: a nós economistas, cientistas sociais e participantes do debate público é premente a necessidade de nos desfazer do cadafalso das ideias que se incrustam no inconsciente como “verdade absoluta”, ou mandamento divino do deus-mercado, entregando-nos ao debate do real problema da Economia cuja emergência no mundo que vivemos é aterradora: o problema da subsistência humana, do direito à renda, ao emprego e, como consequência, a extirpação da fome, da miséria e da precariedade da vida preenchida tão somente pela concorrência meritocrática, pelo cotidiano da mão para a boca sob os ditames do regime do capital.

*Nathan Caixeta é economista pela FACAMP, mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP (NEC/FACAMP).

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