87 denúncias de assédio sexual em uma semana: em um mundo justo, bastaria apenas uma denúncia de uma mulher para que fosse realizada uma investigação séria a respeito de uma violência sexual. Mas esse mundo ideal não existe
Isabela Del Monde, Universa
Em um mundo justo, bastaria apenas uma denúncia de uma mulher para que fosse realizada uma investigação séria a respeito de uma violência sexual. Essa mulher se sentiria segura de que não tem qualquer responsabilidade ou culpa na violência que sofreu e buscaria apoio em alguma delegacia. Lá, seria ouvida com respeito e privacidade a respeito de sua história, podendo apresentar, com tranquilidade, outras evidências que corroborassem seu depoimento ou poderia dizer, também com tranquilidade, que não tem outras provas porque a má conduta ocorreu a portas fechadas.
De posse do depoimento de apenas uma mulher, a polícia daria início a uma investigação para identificar se o fato alegado ocorreu e se é possível prová-lo. Para tanto, destinaria seus melhores e maiores esforços, como perícia forense em dispositivos digitais do acusado, coleta e análise de imagens de segurança dos locais próximos ao local do fato, exame de corpo de delito e perícia no local dos fatos e nos domicílios do acusado. O conjunto dessa investigação seria remetido ao Ministério Público para tomada de decisão quanto à apresentação de uma denúncia ou não contra o acusado.
Caso a má conduta tivesse ocorrido no local de trabalho ou estudo da vítima, ela também se sentiria segura e confiante para reportar aos canais de ética internos dessas instituições, pois teria convicção de que não seria acusada da violência da qual foi alvo, bem como teria a certeza de que sua palavra bastaria para o início de uma apuração interna pautada pela centralidade da vítima, fundamentada contra traumas e norteada pela justiça e pela equidade entre todas as pessoas.
↗ Mulher, você se sente segura em São Paulo?
Mas esse mundo ideal não existe. O mundo real, o mundo brasileiro concreto em que estamos hoje, não quer investigar a alegação de apenas uma mulher. Ao buscar apoio, seja junto às autoridades públicas ou aos canais internos de instituições, essa mulher, em regra geral, é automaticamente percebida a partir de estereótipos machistas e desumanizadores: ela é mentirosa, ardilosa e está frustrada porque não foi correspondida em seus desejos por um homem que agora ela acusa apenas com a intenção de destruir sua vida.
Além disso, é claro, essa mulher sabe também que mesmo não tendo nenhuma culpa ou responsabilidade pela decisão de agredi-la —que foi tomada única e exclusivamente pelo homem que indica como seu agressor— ela será acusada de ter, de uma forma ou de outra, causado a violência que sofreu, seja pela roupa que vestia, pela hora ou lugar onde estava ou pelo fato de ter sido cordial e simpática com ele. “Oras, se não quisesse que mexessem com você, que não saísse por aí distribuindo sorrisos e ficando até tarde na rua”, é o que pensa quem deveria nos amparar.
Infelizmente, uma mulher sozinha não tem condições, e não teria como ter, de enfrentar toda a estrutura machista e misógina que atravessa as instituições e as pessoas que a compõem. Entretanto, quando essa mulher descobre outra mulher na mesma condição que ela, as condições de enfrentamento parecem menos desfavoráveis. E quando vem mais uma, mais 10, mais 50, mais 80 mulheres, o cenário muda.
Sabemos o poder que temos quando estamos em dezenas de nós. Sobrevivemos e resistimos ao ódio que sofremos porque todos os dias nos estendemos a mão, umas às outras. Seja cuidando do filho de uma vizinha que precisa ir ao médico, seja acompanhando uma amiga em um compromisso importante, seja nos organizando para uma vaquinha de apoio a outra irmã que precisa de ajuda.
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Nesse sentido, é a própria estrutura de desigualdade de gênero que impulsiona mulheres a se organizarem coletivamente para denunciarem condutas de violência sexual, como está acontecendo no caso Marcos Scalercio, juiz do trabalho e ex-professor —ele foi desligado da instituição em que lecionava devido ao volume de denúncias organizado pelo Me Too Brasil, que já chegam a 87.
Inclusive, é aquela estrutura que permite que predadores sexuais em série, que vitimizam em massa, assim o façam sem qualquer receio, pois eles sabem que apenas uma mulher não será acreditada.
O que predadores sexuais não contam, porém, é com a nossa coragem em nos ampararmos e em rompermos com o silêncio que amordaça todas nós. E, se olharmos com mais atenção, veremos que sempre fomos nós por nós. A nossa organização é força destruidora do patriarcado.
Por isso, inclusive, o patriarcado insiste disseminar o ódio entre nós. Imagina o quanto poderíamos mover se não fôssemos educadas para desconfiar uma das outras?
Querida leitora, te proponho que quando você sentir raiva de uma mulher, se pergunte: quando você precisou, quem estava por você era um homem ou uma mulher?
Expresso toda minha solidariedade às vítimas desse caso e minha admiração pela coragem em romper o silêncio com o apoio do Me Too Brasil, o qual parabenizo no nome da advogada Luanda Pires, responsável pelo apoio jurídico às vítimas de mais um provável predador que se refestelava no medo das mulheres e que agora vai ter que se entender com a coragem de todas elas juntas.
Nota da OAB-SP
Em nome da OAB SP, a presidente Patricia Vanzolini se manifestOU sobre as denúncias envolvendo o juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região.
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