O homem queria que Deus intercedesse no Brasil. (...) explicou que, à Sua revelia, estavam Lhe citando como mentor intelectual e ideológico de políticas públicas. O rapaz elencou exemplos e disse que até o armamento da população era, indiretamente, passado à Sua conta
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Chegou no hall de entrada do Céu e reclamou que exigia conversar com Ele, com Deus. São Pedro explicou que, veja bem, não é bem assim. Imagina se todos que chegassem fizessem tal exigência. O recém-chegado tinha que ponderar que Deus é muito ocupado. Fomes, guerras, injustiças, orações desesperadas, orações gratuitas e as dizimadas…
O rapaz compreendia, é claro (sim, rapaz. Tinha pouco mais de trinta quando o acidente de moto o vitimou). Mas ocorre que havia marcado a audiência há algum tempo. Deus também não pode se achar assim todo-poderoso e não cumprir seus compromissos. Que São Pedro desse uma olhada na agenda celestial. Na certa estaria lá anotada a reunião. São Pedro foi conferir. Nada. Naquela manhã Deus estaria atento ao leste europeu. Os conflitos não diminuíam. Mas que diabos!, esbravejou o homem. Ao que logo pediu desculpa pela expressão referendando a concorrência. Mas é que não se conformava. Como Deus poderia falhar assim, não agendar a reunião confirmada?
São Pedro quis saber. Deus confirmara mesmo a audiência? Dificilmente ele marca compromissos assim, diretamente. Aí o rapaz explicou que, numa reza, solicitou. E, ao silêncio divino, interpretou que “quem cala consente”. São Pedro, já entendendo a situação e querendo logo lhe passar pro setor de protocolo, pra solicitar a morada eterna, e que não mais atrasasse a fila, que naquele dia estava grande (faltara medicamentos no SUS), fora interrompido por Ele, por Deus. Chegou com sua voz grave, mas suave, e sua barba e cabelos brancos, como os pintores renascentistas nos explicaram como ele é.
Quis saber que gritaria era aquela justamente na porta de entrada do Céu. São Pedro explicou a situação. E o rapaz, por seu turno, remendava, dando a sua versão. Ainda bem que acima Dele nem mesmo o STF, pois Deus deu uma mentidinha de leve, dizendo que com certeza que se lembrava da oração em que o rapaz pedia para, quando morresse, ir ter pessoalmente com Deus. É que geralmente as pessoas pedem um sinal confirmando algo. Um trovão, uma luz que se acende sozinha, a música preferida ser a próxima a tocar… mas o rapaz havia sido perspicaz. Pedir um sinal em caso negativo. Deus nem se deu por conta desse detalhe. Esperto. E Deus se rendeu ao pecado da vaidade. Que criatura esperta havia feito.
Pra evitar ainda mais confusão, Deus levou o rapaz até seu gabinete. Ofereceu-lhe um vinho. Era da safra deste ano. Jesus o havia transformado da água há algumas semanas.
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Deus já imaginava as hipóteses de reivindicações. A mais comum era pra voltar. Mesmo os que já estavam sepultados pediam isso. Ou rever algum familiar que chegara antes. Ou que pudesse virar espírito pra ajudar os seus que ainda continuavam no plano terreno…
Mas, mesmo sendo novo e saudável e tendo morrido por causa dum acidente violento, o rapaz estava conformado. Dizia-se resiliente. Se foi a vontade do Senhor, eu respeito, ainda disse.
O homem queria que Deus intercedesse no Brasil. Tinha uma filha de seis, a espertinha. Por ele, boêmio, mulherengo sem-correção, fumante e dado a um trago diário, o Brasil que virasse o que fosse. Mas temia pelo futuro da filha. E já não falou que a sapeca estava lendo? Pois bem, não queria um país sem emprego, sem consumo, sem respeito e sem civilidade pra guria que ia um dia se tornar adulta. Por isso reclamou esta reunião. Queria que sua luta por um lugar decente não parasse.
Deus serviu mais uma taça e suspirou tão profundamente, que os meteorologistas não entenderam o vento forte e não previsto no litoral.
Tomou um gole e explicou que era um assunto delicado. Ele havia dado o livre-arbítrio aos seus filhos. E eles, e novamente se encheu de orgulho das Suas criaturas, criaram a Democracia. Era o meio mais eficaz de mudar as coisas. Ademais, Deus não achava adequado se meter em política. Citou algumas teocracias atuais e de outrora.
Nenhuma logrou êxito…
Mas foi interrompido pelo ousado filho. O rapaz explicou que, à Sua revelia, estavam Lhe citando como mentor intelectual e ideológico de políticas públicas. O rapaz elencou exemplos e disse que até o armamento da população era, indiretamente, passado à Sua conta.
Deus esbravejou e deu um murro na mesa. Houve terremotos em alguns lugares do mundo
O rapaz seguiu explicando a situação do País e se mostrando com razão preocupado.
A reunião se estendera por mais do que Deus pensava. Várias preces deixaram de ser ouvidas no período. Mas Ele estava interessado no caso.
O rapaz foi enfático. Só havia um nome capaz de unir o País de novo. Prova disso é que o candidato se uniu a um nome capaz de agradar ao diabólico “mercado”, que nem Deus sabia explicar bem o que era.
Deus falou que, se votasse, certamente iria optar por esse candidato. Mas seria complicado provar seu domicílio eleitoral. Ficou sabendo dalguns que tentaram mudar de endereço de última hora e não conseguiram provar no TSE…
Mas o rapaz queria mais que apenas um voto que, no Brasil, mesmo sendo divino, valeria o mesmo. Foi objetivo: será que ele não poderia, só pra garantir, alterar o resultado caso o candidato das armas, contrariando todas as estimativas, vencesse?
Deus se opôs. Explicou que as urnas eletrônicas são invioláveis. E novamente se orgulhou das Suas criaturas, especificamente as brasileiras, que criaram um mecanismo tão seguro.
Ao que o rapaz questionou o que poderia ser feito, só rezar?
Deus disse que inútil. Não poderia intervir.
Mas, como o corpo do rapaz estava na ambulância, a caminho do hospital, sem que os paramédicos tivessem ainda constatado seu óbito, lhe fez voltar à vida.
Que pelo menos terminasse a campanha eleitoral com saúde. Pela sua filha e pelos demais.
Sorridente, Deus fez um dia ensolarado em todos os lugares.
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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