O bolsonarismo não apenas determina o que é ser brasileiro, mas também quem pode ou não dar pitaco sobre o país. Nessa realidade paralela, o Brasil "de verdade" é arcaico, conservador, branco, adulto, só tem espaço para um modelo de família e uma única religião
Matheus Pichonelli, Uol
O bolsonarismo é uma fábrica de construção de realidades, como pode atestar o último discurso de seu representante máximo na Assembleia Geral da ONU, em Nova York.
Nessa imagem invertida projetada sobre o país, o Brasil “de verdade” é arcaico, conservador, branco, adulto, só tem espaço para um modelo de família e uma única religião — ou melhor, um único entendimento sobre uma religião abarcada por inúmeras denominações.
Nesse entendimento de si, que suprime realidades diversas e mais complexas do que supõe o pensamento binário, não cabem manifestações populares como o samba, o carnaval, o funk, as estéticas de origem afro e quaisquer outras propostas para a geração de riquezas e a preservação do meio ambiente que não sejam mediadas por armas ou correntões. Todo o resto é ilegítimo e se os institutos de pesquisa e as urnas eletrônicas apontam qualquer coisa que não seja a mais absoluta submissão a esse projeto é porque “algo de anormal aconteceu“.
Essa corrente do pensamento (sic) nacional tem como característica o entendimento de que seus integrantes detêm o monopólio da verdade e habitam o centro do mundo, inclusive quando vão para o exterior.
É o que permite ao presidente transformar uma viagem para a Inglaterra, onde deveria participar do funeral da rainha Elizabeth 2ª, em uma micareta fora de hora e época para mostrar que está nos braços do povo, esteja onde estiver — ainda que esse “povo” seja treinado, pago e orientado para fazer perguntas apenas convenientes ao capitão.
Como numa panela que esquenta a água aos poucos em fogo leve, nos acostumamos a achar normal o que aos olhos do mundo ainda parece um absurdo. Tipo um presidente gritar no meio de um velório que pode fazer e festejar a vida como bem quiser porque não é coveiro.
Um cidadão britânico, desacostumado com a catarse da turma, manifestou seu estranhamento ao ver um grupo de brasileiros transformar o funeral de sua rainha em um ato de campanha. Ele se lembrou de pedir aos mais acalorados que tivessem algum respeito pela falecida. Expressou assim em voz alta um desconforto que é quase consenso na análise da diplomacia, ainda que esta se manifeste apenas à boca pequena.
O anfitrião foi mandado para inúmeros lugares, inclusive Cuba e Venezuela. Para o bolsonarista raiz, não há opção a quem se nega a dobrar a espinha ao capitão a não ser mudar de país. Mesmo para quem já não mora no Brasil.
No vídeo do bate-boca, chama a atenção a virulência com que um brasileiro se dirige ao homem perguntando se ele já esteve no Brasil e se sabia o que se passava lá.
“Por que você está dando a sua opinião, você não sabe nada”, disse um apoiador do presidente diante do cidadão indignado com a forma com que outro brasileiro residente em Londres foi tratado por se opor à manifestação pró-Bolsonaro.
Era um modo de dizer que ele não estava autorizado a sequer falar sobre o Brasil. A não ser que fosse para prestar continência. Tem uma mensagem implícita ali: o Brasil é coisa nossa e nós o estragamos como bem entendemos.
O bolsonarismo é assim: ele não determina apenas o que é ser brasileiro, mas também quem pode ou não dar pitaco sobre o país. Isso não inclui apenas o olhar do estrangeiro, mas também quem traduz a realidade local para inglês ver e entender o que se passa por aqui.
Isso explica a virulência de um grupo liderado por um youtuber extremista que decidiu cercar uma equipe da BBC Brasil enquanto seus repórteres entrevistavam os manifestantes. Os profissionais tiveram de sair do local escoltados e sob gritos de “imprensa lixo” e “vai para Cuba”.
O próprio presidente, durante a viagem, se irritou com a pergunta de um jornalista sobre o tom de campanha usado em uma viagem oficial. Só porque levou na comitiva amigos e cabos eleitorais, foi até um posto de gasolina gravar uma fala de campanha e usou a sacada da Embaixada brasileira para fazer discurso eleitoreiro e xingar seu adversário.
Cenas parecidas foram registradas durante a viagem a Nova York, onde apoiadores foram escalados novamente para evitar o contato do presidente com manifestantes e as perguntas da imprensa. A ideia era abafar qualquer questionamento aos gritos de “bandidos”, “eu vim de graça” e novos convites para visitar a Venezuela.
Com a testa colada em seu ídolo, ou na tela dos celulares por onde recebem todo tipo de conteúdo enviesado, o campo de visão dessa turma parece conter uma trava que os impede de observar o que acontece ao redor. De vez em quando alguém levanta a mão (ou o canhão de luz projetado sobre edifícios) para dizer que aquele mito está nu.
No conto de fada bolsonarista, quem não perdeu a capacidade de se indignar e apontar o absurdo não causa qualquer constrangimento para quem foi desnudado em flagrante. Ouve apenas que precisa se mudar para Cuba e deixar os patriotas passarem vergonha em paz.
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