Bolsonaro corta maior programa de acesso à água do Nordeste: construção de cisternas caiu nos últimos 4 anos e praticamente parou em 2022
Carlos Madeiro, Uol
A agricultora Ivone Valéria da Silva, 45, precisa andar 4 km da sua casa até um pequeno barreiro na comunidade Itapeipu, em Jacobina, no sertão baiano, para buscar água. Sem uma cisterna em casa, ela e o marido, Julivaldo de Jesus, 38, fazem esse trajeto a cada dois dias.
“Temos um jegue e uma charrete para isso. Uso essa água para beber, cozinhar e tomar banho”, conta ela, mostrando a água com aspecto sujo que armazena em um galão com capacidade para apenas 200 litros.
Ao longo dos quatro últimos anos, o governo federal reduziu e em 2022 praticamente parou as construções de cisternas, tecnologia fundamental para garantir o acesso à água a famílias que convivem com a seca.
As cisternas para uso humano são grandes caixas de água com capacidade para armazenar 16 mil litros de água da chuva ou aquela colocada por carros-pipa (em épocas de seca). No caso, para armazenar água da chuva, são instaladas calhas ao longo do telhado que despejam o líquido diretamente na cisterna.
Nos últimos meses, o governo tem executado apenas contratos antigos ou feito cisternas com verbas destinadas por emendas parlamentares.
Em junho, o programa entregou apenas 18 equipamentos, o recorde negativo desde que ele foi lançado, no final de 2003.
Entre 2003 e de 2018, o governo federal entregou 929 mil cisternas de água para consumo humano (além desse tipo, há ainda as cisternas para produção e escolares, ambas com capacidade de guardar 52 mil litros de água).
No governo de Jair Bolsonaro (PL), de janeiro de 2019 até junho deste ano, foram apenas 37,6 mil. O número de equipamentos entregues vem caindo a cada semestre desde 2018.
O pequeno número de obras tem relação direta com o baixo nível de investimento federal. Além de colocar menos dinheiro no orçamento, o governo não vem executando os valores previstos.
Em 2020, por exemplo, foram orçados R$ 74,7 milhões, mas apenas R$ 2,5 milhões foram executados. Neste ano, até o dia 21, apenas R$ 160 mil foram executados.
Gastos com cisternas:
2019
Projeto de lei: R$ 75.000.000
Executados: R$ 67.048.067
2020
Projeto de lei: R$ 74.700.000
Executados: R$ 2.557.629
2021
Projeto de lei: R$ 61.242.000
Executados: R$ 32.238.447
Saiba mais: Bolsonaro acaba com programa de cisternas e favorece uso político de distribuição de água
2022
Projeto de lei: R$ 37.072.015
Executados: R$ 160.611*
* Até 21/09
Fonte: Siga Brasil/Senado
Para 2023, o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) enviado por Bolsonaro ao Congresso traz um orçamento ainda mais reduzido: R$ 2.283.326, o que paga menos de 500 equipamentos —que custam em média R$ 5.000 entre mão de obra e material.
A coluna procurou o Ministério da Cidadania para que comentasse sobre a redução do orçamento e de entrega de cisternas, mas ele não enviou resposta até a última atualização deste texto.
À espera de uma cisterna
A falta de uma cisterna traz problemas a quem vive no semiárido. Ivone da Silva conta que a água que traz do pequeno barreiro ainda serve para manter uma pequena plantação de pés de acerola, banana, tomate e coco.
“Sem cisterna a dificuldade é muito grande, não dá para plantar muita coisa. Quando não é época de estiagem, ainda pego água aqui do lado, no tanque aqui dos meus vizinhos. Mas essa época de seca é sofrimento“. – Ivone da Silva, agricultora.
Sem alavancar as plantações pela falta de água, ela não consegue produzir em quantidade suficiente para vender e aumentar sua renda. Por isso, a família dela —que inclui na mesma casa um filho de 17 anos e um neto de 9— sobrevive apenas do Auxílio Brasil.
A realidade de Ivone é a mesma de outras famílias no semiárido do Nordeste. A aposentada Maria José da Silva, 62, tem uma rotina também pesada.
“Minha vida é todo dia pegar uma carroça ou um carro de mão e ir buscar água e trazer de balde em balde. Começo às 5h da manhã e só termino às 10h”, conta ela, que mora com o marido.
Cansada de esperar por uma cisterna, decidiu aderir a um custeio de uma minicisterna de 6.000 litros, que é feita pelo grupo Fundo Rotativo Solidário.
O equipamento dela, mais simples e barato, custa R$ 935. Com a aposentadoria de um salário mínimo que recebe, ela vai destinar contribuição mensal de R$ 30 até restituir o valor da cisterna.
Ela agora conta os dias para a obra ficar pronta. “Falta muito pouco, vai ser uma coisa boa demais para nós. Graças a Deus, porque vou ter água aqui para beber, lavar roupa e tomar banho”, comemora.
Programa premiado
O Programa Cisternas é uma referência mundial e recebeu prêmios internacionais como o Prêmio Sementes 2009, da Organização das Nações Unidas (ONU), concedido a projetos de países em desenvolvimento feitos em parceria entre organizações não governamentais, comunidades e governos.
Também recebeu também a premiação “Future Policy Award” (Política para o Futuro), em 2017, da World Future Council, em cooperação com a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação.
“As cisternas são a única modalidade de acesso e desconcentração da água para as populações esparsas do semiárido. O programa significou a libertação de milhões de pessoas. Alocar R$ 2 milhões no orçamento é dizer às 350 mil famílias que ainda necessitam de cisternas que permaneçam sedentas”. – Naidison Baptista, coordenador da ASA na Bahia.
Em artigo publicado em dezembro de 2021, o pesquisador César Nunes de Castro, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), afirmou que o Programa Cisternas contribuiu decisivamente “para a consecução das metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6, tratado internacional do qual o Brasil é signatário”.
“Entre as metas do ODS 6, a mais abrangente destas refere-se à universalização do acesso à água, e, nesse sentido, é inegável que a contribuição do programa é significativa, especialmente ao considerar-se que a área de atuação prioritária do programa é o semiárido, região brasileira com a maior proporção de família sem acesso a fontes seguras e regulares de água”, diz.
Programa Um Milhão de Cisternas
O programa Um Milhão de Cisternas, criado pela Articulação do Semiárido (ASA), uma organização que congrega mais de 3.000 entidades da região, passou a ser financiado, a partir de 2003, pelo governo federal, na época do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A meta do programa (um milhão de cisternas) foi atingida em 2014, mas as construções continuaram até que, agora, os recursos destinados pelo governo inviabilizaram novas construções.
Somada às cisternas pagas com verba pública e de entidades para a produção agropecuária, os governos de Lula e Dilma Rousseff (PT) indicam ter construídos mais de 1,2 milhão de equipamentos para armazenamento de água.
→ SE VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI… considere ajudar o Pragmatismo a continuar com o trabalho que realiza há 13 anos, alcançando milhões de pessoas. O nosso jornalismo sempre incomodou muita gente, mas as tentativas de silenciamento se tornaram maiores a partir da chegada de Jair Bolsonaro ao poder. Por isso, nunca fez tanto sentido pedir o seu apoio. Qualquer contribuição é importante e ajuda a manter a equipe, a estrutura e a liberdade de expressão. Clique aqui e apoie!