“Deus, Pátria, Família!”: três palavras que se gritadas nessa ordem são uma blasfêmia e deveriam representar para todos o espectro de uma prisão
“O ídolo é sempre um falso antropológico, fonte de alienação. ‘Deus, Pátria, Família!’: três palavras que se gritadas são uma blasfêmia e deveriam representar para todos o espectro de uma prisão”, escreve Enzo Bianchi, monge italiano e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Repubblica. A tradução é de Luisa Rabolini, Unisinos
Eis o artigo.
Estamos em uma hora em que falha o pensar, o refletir e até a linguagem se ressente disso. Não só se empobrece como se torna grosseira, bárbara e recorre a slogans. Por outro lado, todos nós sabemos: quando falta o pensamento, sobem os tons e as palavras ressoam para provocar emoções, e isso vale para todo lugar, até os comícios de rua. Sendo idoso não esqueço as palavras desbotadas nos muros que ficaram da época fascista: “Acreditar, Obedecer, Lutar!”, “Autoridade, Ordem, Justiça!”, “Deus, Pátria, Família!”.
↗ O Deus fascista de Bolsonaro
Parece-me significativo que tenham voltado a ressoar hoje: “Deus, Pátria, Família” é um slogan que me perturba. Porque essas três palavras colocadas uma após a outra, feitas bandeira e estandarte entre pessoas que se julgam fortes, para mim ressoam não apenas sinistras, mas até blasfemas. Palavras de um tempo e de uma cultura que eu não gostaria de viver.
Como cristão, estou convencido de que a palavra “Deus” é um termo eminente, mas insuficiente, por trás do qual se escondem emoções que são projeções humanas. A maior parte das imagens que forjamos de Deus são perversas. Como cristão, estou convencido de que só Jesus falou e mostrou quem é Deus. O Deus de Jesus não gosta de ser proclamado, nem invocado contra alguém, mas gosta de ser pensado como “Deus conosco”. Não precisa de nós para defendê-lo ou impô-lo à sociedade em que vivemos. É ofendido se for instrumentalizado como elemento identitário, se for arrastado para a arena política.
Quanto à Pátria, felizmente a minha geração não mais serviu à ideologia nacionalista, um ídolo em nome do qual, nas guerras, tantas vidas humanas eram sacrificadas.
Amamos a nossa terra, mas também aquelas dos outros, convencidos de que “cada terra para o cristão é estrangeira e toda terra estrangeira para o cristão é pátria”, como lemos na Epístola a Diogneto, texto de um cristão do século II, quando os cristãos podiam viver como minorias em diálogo e em paz na maré pagã do Império Romano. Não, para nós hoje não é mais nobre morrer pela pátria.
Quanto à “Família”, aquela que podia ser invocada não existe mais, foi estilhaçada com o paternalismo, a submissão das mulheres, a impossibilidade de os jovens tomarem a palavra.
Nascemos numa família e somos acolhidos por ela, e isso é uma grande graça. Mas quando temos que construir uma vida buscamos o amor fora da família. Significa que também a família é insuficiente: não devemos torná-la um mito ou um ídolo.
É preciso ser vigilante contra o familismo que forja uma ideologia não a serviço do amor humano, mas dos controladores da ordem moral. Ficamos escandalizados se esses slogans são gritados hoje na Rússia pelo poder religioso e por aquele político, mas depois permitimos que sejam propostos como um programa na nossa cansada e velha, mas ainda válida, democracia. O ídolo é sempre um falso antropológico, fonte de alienação. “Deus, Pátria, Família!”: três palavras que se gritadas são uma blasfêmia e deveriam representar para todos o espectro de uma prisão.
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