Meio Ambiente

Guerra, pirâmides e agrofloresta: estudo revela como era a Amazônia 8 mil anos atrás

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12 mil anos de presença indígena na floresta amazônica nunca tiveram impacto negativo comparável ao que se vê hoje. Há milhares de anos, grupos que já cultivavam o que hoje é chamado de agrofloresta

Capturas de tela de uma animação 3D de um dos assentamentos grandes encontrados pelos cientistas, o Cotoca (Imagem: H. Prümers | Nature)

Juliana Domingos de Lima, Ecoa

É surpreendente pensar que o estudo de pedaços de rocha, cacos de cerâmica e outros materiais enterrados ou espalhados pelo chão pode nos levar a conhecer como eram os modos de vida e as sociedades há milhares de anos. Esse “milagre” feito pela arqueologia não é banal nem para quem convive com ele, como é o caso do pesquisador Eduardo Góes Neves. “A prática dessa disciplina requer uma boa dose de esperança”, ele escreve em seu novo livro.

Professor titular e diretor do Museu de Arqueologia da Universidade de São Paulo (USP), Neves é um dos principais arqueólogos atuantes na Amazônia. Entre 1995 e 2010, junto com uma equipe numerosa, ele se dedicou à escavação de sítios na Amazônia central, região que compreende a capital Manaus. “É quase um luxo ter a possibilidade de trabalhar tanto tempo fazendo pesquisa arqueológica numa mesma região”, disse a Ecoa.

A pesquisa resultou em uma ideia mais precisa sobre a história de povos que viveram ali há até oito mil anos, e foi sintetizada no livro “Sob os tempos do equinócio”, publicado em 2022 pela editora Ubu.

O arqueólogo falou a Ecoa sobre o que se sabe dos povos que viveram na Amazônia há milhares de anos, a necessidade de reconhecer a riqueza de sua história e a conexão do passado com o futuro da floresta.

Guerra e agroflorestas na Amazônia

Pelo menos cinco grupos habitaram a Amazônia central em diferentes épocas ao longo desses oito mil anos. No início houve pequenos bandos e, mais recentemente, há mil anos, grandes aldeias do tamanho de cidades do interior do Amazonas. Elas tinham formato circular: eram várias casas construídas ao redor de praças centrais, padrão que também está presente em outros lugares da Amazônia.

Também foram encontrados indícios de uma guerra ocorrida na virada do primeiro para o segundo milênio: vestígios de estruturas defensivas como paliçadas e valas indicam conflito entre grupos que estavam chegando e quem já vivia ali antes.

Apesar da diversidade entre os modos de vida dos grupos que habitaram a região, o arqueólogo destaca que o que havia em comum eram economias “baseadas na diversificação e não na especialização”, na agrobiodiversidade.

Há indícios, por exemplo, de grupos que já cultivavam o que hoje é chamado de agrofloresta há milhares de anos. Esse padrão também existiu em outras regiões da floresta.

“A gente escavou um cemitério com 37 indivíduos enterrados. Tem pouquíssima evidência de cáries nos dentes deles, que eram saudáveis, robustos. A gente percebe a presença de plantas como o milho, mas também de sementes, de frutas, de plantas que tecnicamente seriam selvagens juntamente com plantas cultivadas”, disse Neves. “Isso mostra que eles tinham economias agroflorestais, baseadas não só no cultivo de plantas nas roças, de ciclo mais curto, mas também de árvores nos pomares e no meio na mata.”

Relação ‘mais sutil’ com a floresta

Até os anos 1970, arqueólogos acreditavam que a Amazônia nunca tinha sido muito densamente ocupada. Hoje em dia já se sabe que essa ideia está errada.

Apesar disso, Eduardo Góes Neves ressalta que 12 mil anos de presença indígena na floresta nunca tiveram impacto negativo comparável ao que se vê hoje.

“A relação com a floresta era outra. Imagino que o gradiente de transição entre o domínio da floresta e o domínio das habitações era muito mais sutil”, afirmou.

Há outras explicações para isso além da prática agroflorestal. Neves lembra que o uso do machado de metal para derrubar árvores só foi introduzido pelos europeus. Até então, a derrubada de floresta para plantio era feita com outros instrumentos e não constituía roças com área totalmente definida, e sim as chamadas capoeiras, o que implicava uma degradação muito menor.

“Os povos indígenas do passado – assim como os do presente – também transformavam a natureza, mas numa relação muito menos drástica e com consequências muito mais interessantes do que o que está acontecendo hoje em dia” – Eduardo Góes Neves, arqueólogo.

Através das escavações, o grupo liderado por Neves também desvendou a composição das terras pretas, solo da região amazônica caracterizado pela alta fertilidade.

“A formação desses solos está intimamente associada à compostagem de lixo doméstico. Nós cavamos várias feições, como nós chamamos, que eram bolsões com muito material orgânico, muito resto de osso, de carvão e de cerâmica também, associados à formação inicial desses solos. Foi uma coisa que ninguém tinha feito anteriormente”, contou.

Para Neves, essas evidências mostram que a preservação da floresta não é incompatível com a presença humana, pelo contrário. O que deve ser discutido é o tipo de presença e os impactos que ela gera.

“A Amazônia que a gente conhece hoje só existe por causa dos povos da floresta, então para nós [arqueólogos] é impossível pensar em alguma solução que não contemple os modos de vida e o conhecimento desses povos”.

Pirâmides na Amazônia?

Em 2022, pesquisas lideradas pelos arqueólogos Heiko Prümers e Carla Jaimes revelaram a existência de pirâmides de mais de 20 metros de altura na Amazônia boliviana, feitas de terra batida.

Na Amazônia brasileira, embora também tenham sido construídas no passado estruturas complexas de terra como estradas, Neves considera improvável que tenha existido algo comparável a pirâmides.

A hipótese do arqueólogo é que isso se deve às características naturais e aos tipos de sociedade que se constituíram nas regiões em consequência delas.

Diferente da Amazônia brasileira, caracterizada por uma cobertura vegetal de floresta, a região dos Llanos de Mojos, na Amazônia boliviana, é formada por campos com períodos de alagamento em parte do ano e de seca prolongada em outra parte. Ele acredita que isso tenha a ver com a forma como a força de trabalho era mobilizada ou não por um poder central.

“Talvez, quanto mais concentrados forem os recursos, maior vai ser a possibilidade de encontrar evidências de estruturas sociais mais estratificadas, mais hierarquizadas. Em contextos de muita riqueza, isso é muito difícil”, pondera. “Se a gente pergunta para quem eram essas pirâmides e quem trabalhava para construí-las, vê que a abundância cria condições para uma recusa à aceitação da centralização política”.

Pré-história x história antiga

No livro “Sob os tempos do equinócio”, Neves se refere à história da região anterior à chegada dos europeus como história antiga e deixa de lado o termo pré-história, usado por arqueólogos no passado.

“Pré-história é um conceito anacrônico porque traz a ideia de que não havia história aqui e quem inaugurou a história foram os europeus. É uma visão colonialista, parece que [os indígenas] viviam num estado vegetativo à espera da chegada dos colonizadores. E na verdade o que a arqueologia mostra é que há uma história que é muito rica, dinâmica, interessante”, diz.

Outras possibilidades, como pré-colonial e pré-colombiana, também são adequadas. “Mas eu acho mais legal falar em história antiga porque é um termo consagrado na literatura para pensar o berço das civilizações ocidentais, lá na Grécia, no Egito, em Roma, na Mesopotâmia. Por que não pensar também numa história antiga pra Amazônia? Ele tem o mérito de reconhecer a capacidade que esses povos tiveram de produzir a sua própria história”.

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