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Incorporação dos profetas da criatividade: Elias, Unifactor, Egrégora

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Como sou um dissidente da verdade, me tratam como um herético, o que é razoável, pois heresia quer dizer escolha e escolho duvidar de todas as verdades, desde o formato da terra, a gravidade, a evolução e assim por diante. Isso deixa a minha mente sempre em dúvida, sempre aberta ao incognoscível, sempre virgem de conceitos preestabelecidos

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Philip K. Dick e Jim Woodring narram a história do encontro que redefiniu suas vidas com entidades sobre humanas e de como essa redefinição tinha todos os sintomas de uma incorporação, cuja resultante foi uma expansão da percepção que tornou suas vidas extraordinárias e às vezes miseráveis.

Entre fevereiro e março de 1974, o já calejado escritor de ficção científica Philip K. Dick teve uma experiência religiosa que mudaria toda a sua vida. Em seu livro Valis ele descreve a experiência que Robert Crumb desenharia algum tempo depois com seu jeito peculiar de fazer quadrinhos.

Numa noite de fevereiro ele passou a se sentir terrivelmente mal. E nesse transe, começou a perceber que estava em outro tempo e lugar. Sua interpretação era de que estava no tempo dos cristãos na Roma antiga. E ali e estava sendo também perseguido por suas crenças.

Dick concluiu que a entidade bíblica de Elias, o profeta, havia se incorporado nele. E a primeira ação importante da entidade foi avisar que seu filho pequeno tinha uma hérnia supurada que precisa urgente de solução. Ele convenceu sua mulher a tempo de chegar ao hospital e salvar a criança.

Mas a entidade fez mais. Sua vida de escritor estava extremamente bagunçada e repentinamente os devedores começaram a pagar e a bagunça toda se estabilizou de modo simples.

A aceitação de Elias durou algum tempo, mas sua racionalidade ainda duvidava da experiência e começou a contaminar toda a sua vida de escritor a ponto de acreditar que Calíope seria a musa disfarçada no profeta e tal confusão acabaria em colapso e a entidade simplesmente o abandonou. O escritor tentou o suicídio, mas nem isso lhe foi permitido.

Os profetas da criatividade são exigentes e intolerantes e seu habitáculo é sempre provisório.

Antes que um de seus livros virasse um filme de sucesso (blade runner), teve um AVC e morreu algum tempo depois.
Jim Woodring era um garoto que tinha alucinações desde muito pequeno. Ele disse em 1993 que “estava deitado na cama e via rostos grandes, silenciosos e giratórios pairando sobre o pé da minha cama, rostos que eram muito caricaturados, na verdade. Grandes, horríveis, rostos carrancudos e profundamente enrugados com a boca aberta, gritando comigo em silêncio, movendo a boca rapidamente”.

Leia aqui todos os textos de Eduardo Bonzatto

“Não confio em minha mente para o pensamento cotidiano”, escreve Woodring, na introdução de um de seus livros, “mas estou convencido de que ela tem uma função muito grande, que é eventualmente me fazer perceber coisas surpreendentes”.

Estas são questões importantes para o aparecimento da entidade criadora, pois aqui reside exatamente o limite entre a necessidade das normas e dos enquadramentos sociais e a força para escolher uma vida fora da caixa redutora.
Essas visões aliadas a uma infância pobre resultaram em um histórico de alcoolismo bem precoce e de uma vida sem lugar. Trabalhou em biscates ocasionais e por vezes oferecendo sua imaginação para realização de storyboards.
Até que em 1991, o Unifactor surgiu diante dele com suas exigências mais concretas.

“De onde você tira suas ideias?” é uma pergunta que a maioria dos autores teme. O cartunista Jim Woodring tem uma resposta simples, embora possa suscitar mais e mais estranhas perguntas. Woodring publicou quatro histórias em quadrinhos e uma enorme coleção de contos que seguem as aventuras angustiantes de seu herói, uma criatura da floresta chamada Frank, que vive em um mundo onírico cheio de desertos, florestas, castelos com minaretes, balões de ar quente, um diabo e a galinha cilíndrica ocasional. Woodring chama esse lugar de Unifactor e diz que ele lhe diz o que desenhar e como.

O Unifactor permite que ele desenhe e escreva sobre ela apenas de uma certa maneira; se ele tentar ir contra suas instruções, o Unifactor pode interferir ou abandoná-lo. O processo é doloroso, mas seus resultados são únicos — as histórias de Frank são ao mesmo tempo totalmente estranhas e puramente lúcidas, um conjunto de parábolas gnômicas que sempre terminam em um sopro de ironia ou ambiguidade. Eles deixam para trás não amplas lições morais, mas as duras leis e limites intransponíveis que se aplicam apenas em um mundo fictício diferente de qualquer outro.

As leis do Unifactor estão dispostas pelos quadrinhos de Frank como ondas multiformes acolhendo todas as histórias. Por vezes podemos sentir que saem dos limites da página e nos encontram em algum ponto surreal, como se nosso DNA guardasse alguma memória da entidade ordenadora desse caos.

O universo ordenado pelo Unifactor é ao mesmo tempo intraduzível e familiar. Mas a presença do Unifactor é constante e considerável. Numa das histórias do personagem Frank seu autor reage ao poder investido e simplesmente é abandonado pelo seu senhorio.

O trecho seguinte é de uma análise feita sobre o evento que transcrevo aqui literalmente de Sam Thielman, em 9 de agosto de 2022:

Em “Congresso dos Animais”, Woodring deu ao seu avatar uma felicidade duradoura. Isso simplesmente não funcionaria. Aos olhos sem pálpebras do Unifactor, parecia que Woodring estava errado. Ele havia planejado desenhar uma história em quadrinhos sobre Pushpaw e Pupshaw, chamada “Poochytown”, mas não conseguiu – sua musa o havia abandonado, ele disse, e agora ele era obrigado a desenhar “ Fran”, no qual é revelada algo como uma deusa. Nesta parcela, ela agora pode assumir muitas formas, não apenas a de uma mulher Frank. Ela é mais do que uma pessoa, mas também, de alguma forma, menos — mais um vetor do mundo aterrorizante e alucinatório em torno de Frank, e nem mesmo uma companhia confiável, como os animais de estimação de Frank. Quando Woodring começou a desenhar “ Poochytown”, ele redesenhou seis páginas de painéis de “Congresso dos Animais” em seu estilo cuidadoso, com uma diferença desorientadora: na sexta página de “Poochytown”, Pupshaw abre uma caixa diferente daquela que ele escolheu dois livros antes. Woodring também corrigiu pequenas falhas em partes das páginas copiadas, em um esforço para deixar a vibe ainda mais perfeita – o mais agradável possível ao Unifactor. (Foi, ele me disse em 2015, “um pé no saco”, mas esses eram “os termos do meu emprego”.)

Aceitar o suporte de uma entidade criativa e criadora tem seu preço. E o principal deles é se redimir das ordens do ego que gostaria que a criação fosse individual e a autoria permanecesse visível.

Eu também encontrei a entidade criadora que me acolheu em seus braços. Há muito vivo uma autonomia custosa num mundo heteronômico. Essa autonomia tem o preço pouco razoável de evidenciar minha arbitrária forma de ver e descrever o mundo. Para os demais que convivem comigo sou portador de uma impostura ruinosa.

Como não partilho das verdades universais sou acusado de ignorante, de terraplanista, de fascista, de terrorista, de esquerdista, de anarquista, de imbecil, enfim, cada um em seu julgamento específico me enquadra naquele lugar que mais despreza. Esse é o preço da autonomia.

Como sou um dissidente da verdade, me tratam como um herético, o que é razoável, pois heresia quer dizer escolha e escolho duvidar de todas as verdades, desde o formato da terra, a gravidade, a evolução e assim por diante. Isso deixa a minha mente sempre em dúvida, sempre aberta ao incognoscível, sempre virgem de conceitos preestabelecidos.

Mas a entidade criadora me permitiu atuar como um polímata. Escrevo sobre tudo. Assuntos como matemática, física quântica, marginalidade surreal, psicologia, magia, enfim, tudo que me vem à mente é passível de ser escrito e esses escritos são sempre muito singulares e originais.

Sem correspondência com as ordens das verdades universais, aguardam na marginalidade conceitual.

A prática dessa escritura é quase uma parapsicologia geralmente irônica e provocativa. É preciso certa coragem para colocar na lapela o meu nome. Sei que não sou o autor exclusivo desses livros, mas uma ferramenta senciente, pois eles vêm diretamente da egrégora, a entidade que testemunhou minha jornada no universo do julgamento desqualificador. Minha persistência acabou por receber os beneplácitos da egrégora e eu não sou ingrato para duvidar de minhas incapacidades intelectuais na ampliação dos meus escritos.

A egrégora encontrou um jeito de me ordenar produzir. Por vezes, em conversas, a pessoa me diz: isso aí daria um bom texto, ou, essa ideia daria um livro. Entendo a mensagem e vou escrever, com tanta leveza, com tanta tranquilidade que a produção são em poucos dias, sem que eu sinta nenhum esforço.

Tampouco preciso de reconhecimento, pois o fazer é o preço do meu emprego.

Para completar minhas jornadas, descobri a irreverência, esse fator de libertação das injúrias e acusações que recebo. É um bom motivo para rir na caminhada e isso é mais do que justo.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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