Bolsonaro se elegeu presidente declarando guerra contra quem come camarão e arrota peru. Fez isso vendendo-se como o próprio tio do churrasco, aquele parente que fala absurdos enquanto pica a cebola e no minuto seguinte ri sozinho da própria piada com a boca cheia de farofa. Mas os tiozões da vida real não têm mala para carregar tanto dinheiro. Não têm mala sequer para carregar as roupas compradas a prestações
Matheus Pichonelli, Uol
Quando se cansou da vida de deputado do baixo clero, onde dormia tranquilo e só saía a cada quatro anos para pedir votos de militares aposentados e viúvos da Guerra Fria, Jair Bolsonaro tomou um banho de loja para vencer a fama de político de nicho e falar direto ao coração do brasileiro comum.
A fantasia, construída à base de camisa “pirata” de time, pão com leite condensado e iogurte servido para doutor, era tão autêntica quanto uma nota de R$ 200, inexistente na época, mas tinha como objetivo estabelecer pontes e prospectar votos em trincheiros onde o monólogo em defesa de torturadores e dos bons tempos da ditadura não alcançava.
Foi assim que o parlamentar, há décadas na vida política, se transformou em um candidato “antipolítica”. A metamorfose fez o morador de um condomínio de luxo em área nobre do Rio virar “capitão do povo”.
A fantasia vinha a calhar em 2018, quando os concorrentes de terno bem cortado e fala polida entraram na mira dos eleitores cansados de velhas fórmulas para resolução dos problemas de sempre.
Antes de ser preso, o favorito naquela disputa ainda era o ex-presidente Lula, líder popular que costumava trocar os discursos decorados pela espontaneidade e povoava o imaginário dos eleitores deixando-se fotografar na praia, sem camisa, equilibrando a caixa térmica de cerveja na cabeça.
Lula atravessou dois mandatos presidenciais sem deixar de polir as raízes de líder operário. Fazia isso sob escrutínio permanente. De vez em quando, e antes de o WhatsApp virar modinha, era acusado de trair o movimento com a difusão de correntes falsas a respeito de uma suposta vida suntuosa dos filhos, acusados de andar por aí em carros de luxo e frequentar bons restaurantes.
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Em seu mandato, não teve tio de churrasco que não jurasse ter passado em algum latifúndio rural nas férias de fim de ano sem ter ouvido de um interlocutor confiável, e jamais nomeado, de que tudo ali pertencia ao petista.
No dia seguinte ao seu casamento com a socióloga Rosângela da Silva, houve quem fosse até o local da cerimônia chafurdar o lixo da festa para flagrar possíveis excessos dos comensais. As garrafas de vinho descartadas viraram assunto em colunas de bastidores e fofocas. Causou ódio e escândalo a revelação de que o pessoal da limpeza havia recolhido as carcaças de um vinho português Pêra-Manca, safra 2014.
Bolsonaro se elegeu presidente declarando guerra contra quem come camarão e arrota peru. Fez isso vendendo-se como o próprio tio do churrasco, aquele parente que fala absurdos enquanto pica a cebola e no minuto seguinte ri sozinho da própria piada com a boca cheia de farofa.
As cenas, corriqueiras nas casas das melhores e piores famílias, eram registradas pelos filhos metidos a consultores de imagem e que corriam para lançar a farofada nas redes com uma mensagem: “Olha como é humilde e simplão o nosso presidente”.
Deu trabalho, mas deu certo, e talvez seja só ironia que justamente em seu mandato o conceito de churrasco, com cerveja e picanha, tenha virado objeto de luxo e ostentação.
O fascínio do personagem pode ser resumido por uma declaração da atriz Regina Duarte ainda em 2018. Para ela, o então candidato a presidente (e seu futuro ex-chefe) tinha “um humor brincalhão típico dos anos 1950, que faz brincadeiras homofóbicas, mas que são da boca pra fora, coisas de uma cultura envelhecida, ultrapassada”.
O estereótipo ganhava fãs via identificação. No caso da futura ex-secretária de Cultura, Bolsonaro representava uma espécie de figura de autoridade, simplória e paternalista, mas que não fazia mal a ninguém, a não ser ao próprio fígado embebido de revolta e piadas ruins.
A menção à semelhança com o pai deixava subentendida a preferência no momento em que ela e uma multidão de eleitores buscavam preencher o desamparo criado pela lacuna da crise política.
Bolsonaro era quase uma escolha estética, e soube como poucos se comunicar com esse público espalhando e protagonizando memes no zap com a mesma identidade visual que já habitava a caixa de mensagens instantâneas de nossos parentes assustados com um mundo em transformação.
Aquele “homem comum”, que nunca fez nada de extraordinário na vida, como definiu certa vez a jornalista Eliane Brum, chegou à Presidência com a bandeira das pequenas causas transformadas em prioridade política.
Entrava em cena o sujeito médio e tão preparado para o posto quando qualquer parente igualmente obcecado pela tomada de três pontas, o cinto de segurança, o carrinho das crianças no banco de trás, os pardais das rodovias, as multas por pescar em área proibida e outras legislações defenestradas em causa própria.
Em outras palavras: o parente sem noção do churrasco foi empoderado e finalmente encontrou um presidente para chamar de seu.
Essa fantasia só durou até a segunda página. Os capítulos seguintes traziam notícias estranhas sobre “rachadinhas”, viagens em primeira classe, imóveis de luxo, lobbies milionários e gastos em segredo do cartão corporativo.
Nesta semana, um levantamento feito pelos repórteres Thiago Herdy e Juliana Dal Piva publicado no Uol mostrou que quase metade do patrimônio em imóveis de Jair Bolsonaro e de seus familiares mais próximos foi adquirida em dinheiro em espécie. Ele, os filhos e os irmãos negociaram ao menos 107 imóveis, dos quais pelo menos 51 foram adquiridos total ou parcialmente com uso de dinheiro vivo. Em valores corrigidos, o montante equivale a R$ 25,6 milhões.
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Essa montanha em espécie parece não arranhar só o “mito” de candidato honesto e acima de qualquer suspeita. Ela já andava arranhada desde o surgimento em cena do ex-faz-tudo Fabrício Queiroz. Mas tem o potencial de instalar uma barreira nos canais de identificação entre aquele parente simplão e o homem do povo que chegou à Presidência.
Nosso cunhado tiozão da vida real não tem mala para carregar tanto dinheiro. Não tem mala sequer para carregar as roupas compradas a prestações. Vai seguir gritando “mito” enquanto o cunhado do presidente compra mansão em cash para montar clube de tiro?
A aquisição de alguns desses imóveis suspeitos da família presidencial já chamou a atenção e foi alvo de apuração do Ministério Público. Mas o clã tem costas largas e, graças ao voto dos brasileiros identificados e apaixonados, tem o poder de trocar o comando da polícia, indicar procurador fora da lista tríplice, abrir a carteira do orçamento secreto e mandar para longe o olho gordo.
O parente militante do zap segue endividado, não tem advogado e não anda com nota de R$ 200 na carteira. Menos ainda na mala. Quanto mais grita “mito”, mais os homens por trás do mito enriquecem.
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