Eduardo Bonzatto
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Colunistas 05/Out/2022 às 16:20 COMENTÁRIOS
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Amor cósmico

Eduardo Bonzatto Eduardo Bonzatto
Publicado em 05 Out, 2022 às 16h20

O indivíduo separado é exigente e colérico e deseja pra si o amor. E o amor que era parte de tudo vai sendo aprisionado numa forma residual do indivíduo e nessa prisão começa a metamorfosear

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

As palavras são desvios de origens. Humberto Eco havia tentado resgatar essas origens na rosa, em que forma e conteúdo estão ligados para muito além desses desvios.

Talvez por que não existam caminhos seguros nas grandes árvores da vida e cada galho leva o curioso prum lugar.
Então decidimos atribuir uma palavra como envoltório para o sentimento e vamos cultuando, polindo essa palavra para que o sentimento não disperse e para que possamos comunicar ao mundo da vida nosso grito de pertencimento.

Quando o mundo era jovem, ou já era velho e não media o tempo, o amor era celebração. Do nascer do sol aos trovões da noite adentro, todos os sentimentos eram de gratidão e de generosidade, pois a vida não parecia ter fim e a felicidade vibrava em cada planta, em cada bicho, em cada mão que tecia o tempo.

Um amor cortês quebrou a celebração, pois apenas um poderia oferecer, apenas um poderia dar, apenas um poderia receber. Esse amor, justamente por ser singular, foi sendo tecido pelo sexo amoral, essa forma de sexo que aproxima o corpo do sentimento e em que o sentimento é ainda tudo que importa.

Então o amor foi acolhendo toda sorte de caminhos a que chamaram de libertino. Era uma forma de retardar os limites que o singular ansiava. Pois o amor não deveria ser singular e não deveríamos submeter uma energia do tamanho do amor ao reduzido do indivíduo.

O indivíduo separado é exigente e colérico e deseja pra si o amor. E o amor que era parte de tudo vai sendo aprisionado numa forma residual do indivíduo e nessa prisão começa a metamorfosear.

Se afasta das danças telúricas com os corpos do inframundo e com os astros siderais para ocupar um lugar mesquinho de exigências. Chamam agora de amor burguês, que aprisiona, que reduz, que humilha. O esquecimento cumpre sua mais perversa natureza, de apagar o amor para uma forma de símbolo, que pode ser tudo, paixão, ternura, apego.

E nessa forma miúda, o amor prolifera os corações apaixonados, sempre em busca de estabilidade, longevidade, dura Lex, sede Lex.

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Então cantam o amor, inventam o amor, lustram esse amor prosaico como se ocupasse um altar de reverência. E ninguém mais ri. E tudo fica solene, a natureza, a fertilidade, a festa, tudo fica solene para que o ser respeite uma divindade sem cor.

O mundo agora pode ser quantificado e em seu numerário, o mundo é conhecimento. E o amor é também conhecimento e é um atributo do ser. Esse ser, contudo, é um ser singular, de amor singular, em sua privação gera imediata provação. E o que importa é a aprovação para um mundo nada prosaico.

E eis que os que fogem chamam esse amor de livre, um amor de liberdade e a liberdade já nem é libertinagem, mas tão somente contravenção. E acreditam voltar ao corpo da natureza e dançam com as roupas em trapos, para que os efeitos sejam de bricolagem e de espalhafato.

E os filhos passam a investir no amor rarefeito do compromisso. É o círculo das repetições, que fazem do retorno algo eterno, sem que o movimento chegue a outro círculo. Mas o amor continua sua jornada e se adapta como algo novo.

Um sentimento de efêmero caminha junto a esse amor bucólico, pois o que compromete não mete e desmente a natureza que a todo instante manifesta.

É que o amor está sempre fora quando perde sua soberania. Daí que os compromissos, as alianças, a pressa e o aprisionamento que exige do amor sua submissão é apenas um arremedo, uma palavra, um esconderijo. Para que a posse possua sua natureza de possibilidades. E em cada poça, um resto do líquido que foi despejado na terra, que alguns chamam de vereda, pois que está cercado de ressequidão por todo lado e apenas um lodo musguento parece vivo ainda no fundinho da poça, mas que se alguém cutuca ali com uma varinha e pacientemente aguarda, vê medrando naquele fundo musguento uma coisinha cristalina, quase uma lágrima da terra e se olhares atentamente aquele pequeno espelho de vida, verás o céu e então entenderás que o amor não pode ser contido, não deseja ser aprisionado, é amor cósmico o único amor que liga os amantes à vida.

Como ele está na vida muito antes de nós, esse amor apenas convida os seres para a dança telúrica com o inframundo e com as vastas planícies siderais.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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