Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Sou historiador de formação e à época da minha graduação uma amiga recém casada me convidou à sua casa.
Chegando lá me apresentou um antigo livro, desses usados em contabilidade, capa preta, folhas duras pra resistir a um tempo em que não havia ainda registros virtuais.
E me contou a história do livro. Uma tia avó de seu marido havia feito inscrições do tempo da guerra, que marcou sua infância e parte da adolescência.
Como vivia numa família ilustrada, foi recortando as icônicas e cartunescas charges dos jornais sobre a guerra no momento em que eram publicadas, e colava ajustadamente nas páginas do livro contábil.
O resultado é uma obra única, de uma menina de classe elevada sobre os aspectos de uma guerra que lhe dizia respeito. Aparentemente era uma família judia de imigrantes.
Minha amiga me pediu para tentar fazer algum estudo sobre esse estranho e incomum objeto de memória, no que aceitei de imediato. Levei para casa e deixei por um tempo adormecendo em minha mente, para que o material acomodasse meus instintos e minha intuição.
Algum tempo depois ela me pediu para devolver, pois a família do marido não queria que essas intimidades memorialísticas se tornassem de alguma forma públicas. Mas em vez de devolver, acabei me esquecendo do livro.
Agora estou velho e reencontro essa história no meio da minha biblioteca. Acho que é o momento de refletir sobre isso finalmente.
Já não é possível senão imaginar as motivações da menina ao recortar e colar cada quadro em charge, um ao lado do outro, em disposições que certamente dizia algo para si mesma. Mas é bem razoável desvendar sua narrativa. Há muitas histórias ali naquelas páginas únicas.
A Charge é um tipo de cartum que tem por finalidade satirizar certo fato, como ideia, acontecimento, situação ou pessoa, envolvendo principalmente casos de caráter público.
Gênero textual relacionado com o humor, as charges constroem seus significados a partir da relação entre linguagem verbal e não verbal. É um tipo de ilustração que geralmente apresenta um discurso humorístico e está presente em revistas e principalmente jornais, quando os havia ainda.
No caso da menina que se impressionou com essa linguagem podemos adivinhar que havia um interesse no aspecto humorístico e que essa atração pretendeu se conservar num momento de apreensão, sofrimento e confusão como deve ser a proximidade de uma guerra na produção industrial de mortes.
O riso sempre parece desafiar a razão. E a razão da guerra é impositiva demais.
Imagino essa menina aguardando ansiosa os jornais da manhã, sim, os jornais, pois as charges pertencem a jornais diversos, o que poderia ser interpretado que a família mantinha-se informada além do usual com as notícias da guerra na Europa.
E ir à sala de leitura num bairro de classe média da antiga São Paulo procurar nos jornais os indícios irônicos, satíricos, bizarros dessa outra guerra que tangencia a descrição da escritura com os arranjos de outra similitude, distorcida, fragmentária, provocando risos nervosos nos adultos e naturalmente carregada de um humor que encontrava na menina uma acomodação suave não parecia ser um estranhamento.
Ela não queria perder esse momento da sua vida, vivida sob uma auréola monstruosa que o mundo adulto parecia necessitar.
Podia ver em paralaxe, na sua peculiar distorção, que nascera sob a égide da metamorfose. Afinal, havia uma incongruência com os terrores da escrita e a bizarrice das charges. Ela optou pelo riso. Queria deixar uma memória diferente daquela que parecia insistir em ser preservada pelos textos lineares e dicotômicos dos jornais.
E se nos jornais as charges isoladas não chegavam a produzir uma história, em seu livro de recortes tornava absoluta sua percepção de menina.
Ela não deixou de anunciar sua ironia na capa do livro contábil: uma imagem de Stalin ocupando o rosto de Monalisa, de Michelângelo com uma pequena referência: Quadros Ilustres, o misterioso sorriso da Gioconda.
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Não há como não prestar muita atenção aos detalhes. A figura gigante ostenta nas costas da mão que repousa na outra, um pequeno fascista italiano, genérico e careca encimado pelo boné negro.
Ao virar a capa para a primeira página nos defrontamos com os detalhes do livro, um livro fiscal de Minas Gerais de 1906. Ela foi buscar o volume nas gavetas em que armazenavam registros contábeis.
Juca, um personagem de Belmonte, é o cicerone da jornada da menina. Não o escolheu impunemente. O cartunista Belmonte (1896-1947), foi o criador do personagem Juca Pato: careca “por tanto levar na cabeça”, cujo lema era “podia ser pior”, e que encarnava as aspirações e frustrações da classe média paulistana. Inconformado, sintetizava a figura do homem comum, trabalhador, honesto, acossado pela burocracia, pelo aumento do custo de vida e pela corrupção. Numa época pré-merchandising, Juca Pato estampou carteiras de cigarros, cadernos escolares, balas, água sanitária, marchinhas de carnaval, além do bar Juca Pato, ponto de encontro de intelectuais e artistas.
Na escolha de nossa menina, as duas páginas estampam o personagem Juca lendo no jornal: telegrama de Londres: durante os ataques de ontem foram abatidos 130 aviões inimigos. Nós perdemos apenas 25 aparelhos.
Na página ao lado, um braço abre uma cortina transparente inscrito no punho os dizeres “pacto tripartido”, a cortina translúcida revela um Mussolini rosado, um Hirohito Imperador japonês e um Hitler enfadonho. Enquanto Juca pronuncia, do outro lado da cortina: “afinal, aquela mão apenas abria uma cortina transparente”.
Farsas são tecidas por todas as guerras. E é isso que ela quer entender, as farsas que começam nas charges e certamente avançam pelos veículos de divulgação das verdades universais.
Virada a segunda página reencontramos Juca com o jornal na mão e as inscrições: “telegrama de Berlim: por ocasião das reides efetuadas ontem, o inimigo perdeu 150 aviões, enquanto nós perdemos 25”.
Uma página dupla guarnecida por dois momentos do Juca. Fechando a página ele reflete: “Não é negócio ser inimigo! Os inimigos, em qualquer caso, sempre saem perdendo”.
Não é possível deixar de receber o recado dessa menina e sua intenção imediata na produção de seu livro de memórias da guerra. No centro dos dois momentos do Juca uma charge também de Belmonte. Nessa, uma mulher nua encoberta por roupas nos braços e que troca com sua serviçal as roupas que essa aguarda para oferecer. A descrição é mais que saborosa: “Hodie mihi cras tibi…” e a fala da auxiliar “Gretchen: Paciência madame. São coisas da vida: um dia é da caça, outro é do caçador”. A frase latina diz do tempo, “eu hoje, você amanhã”. Uma frase que encimava os principais cemitérios do mundo.
As charges são impressas em branco e preto, mas a menina não deixou de pintar com lápis de cor algumas delas.
Suas escolhas não deixam sempre se surpreender a um olhar atento. Era uma menina culta e a seu modo uma artista, cuja sensibilidade não deixava escorregar as interpretações sempre sofisticadas necessárias à leitura de charges e cartuns. As resumidas exigências do cartum custam tanto ao artista quanto ao leitor. Não é a toa que atualmente fazer charge está em franco desuso, pois os leitores se ligaram aos musgos das redes virtuais que fazem do olhar uma espécie de túmulo refletindo o adormecimento da mente.
Importante constar que a charge não torna a guerra mais inocente ou ingênua, mas a torna mais crua e muito menos ideológica.
O riso sempre foi um acinte e uma afronta. Denuncia sempre a caretice dos puretas. E essa menina de outro tempo confirma que já houve tempo em que a inteligência era menos presunçosa e muito, muito mais divertida.
A última charge do livro une dois momentos. Um gaúcho tradicional em meio a uma plateia admirada e uma imagem de dois homens, sendo um deles um Hitler bigodudo animada pela frase: “que é isso, chefe”?! Quero ver se, com esta bigodeira, consigo mudar o destino da guerra a meu favor”.
A versão da guerra sob o olhar dessa menina durou menos de cem páginas e em cada uma delas a guerra industrial mais brutal do século XX é esmiuçada com uma autópsia peculiar. A palavra autópsia vem do grego e significa “ver por si próprio”, termo que hoje está completamente ausente da prática das pessoas substituída por sua versão mais melancólica de examinar corpos mortos.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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