Há pouco tempo, ensinar o padre a rezar a missa era só uma expressão em sentido figurado. Em 2022, ensinar o Pai-Nosso ao vigário já não é força de expressão. A compaixão e o amor ao próximo tão citados no Evangelho são metralhados, aos olhos do Santíssimo, pela intransigência de quem já não ouve o padre, o bispo ou o papa porque colocou a verdade do WhatsApp, e não de Cristo, acima de todos
Matheus Pichonelli, TAB
No meu tempo, e não faz tanto tempo assim, ensinar o padre a rezar a missa era só uma expressão em sentido figurado.
A frase era sacada do coldre toda vez que um passageiro sem noção queria ensinar o caminho mais fácil para o taxista com 30 anos de estrada. Ou quando o convidado bêbado tentava convencer o DJ a tocar “Detalhes”, do Roberto Carlos, na festa de música eletrônica.
Você provavelmente já ouviu essa outra expressão antes, mas ela não é descartável pelo excesso de uso: a internet democratizou o acesso a informação. Verdade. Com isso, abriu também uma trilha de iluminação em direção a conteúdos que antes só eram acessados por especialistas.
Parecia libertador. Você chegava a uma consulta médica e já não ficava refém de quem queria ensinar o que era bom para a tosse só porque ficou oito anos trancado em uma universidade com residência médica para se especializar no curso mais concorrido da praça.
De repente, com um celular equipado com 4G e duas buscas, parecíamos prontos para discutir com o doutor se o caso da nossa micose era cirúrgico e qual remédio com vinagre, sal e cloroquina deveríamos tomar.
O empoderamento do especialista leigo pavimentava uma nova correlação de forças. Todos de alguma forma éramos médicos, engenheiros, jornalistas e advogados formados em Facebook com pós graduação em “e se fosse com a sua família?”.
Claro que não ia dar certo.
Os atalhos que levavam até uma fração de conhecimento criaram uma falsa sensação de poder. Pior: a internet que prometia abrir no muque uma biblioteca de Nínive ampliada no fim das contas democratizou também o acesso à desinformação. Sim, você também já ouviu isso por aí.
Em 2022, ensinar o Pai-Nosso ao vigário já não é força de expressão: é uma realidade em igrejas onde o púlpito já não separa, numa ideia de hierarquia clara, o sacerdote dos fiéis. Isso não seria um problema se as figuras de autoridade que se movem em velocidade de transatlântico entendessem logo uma demanda crescente por relações horizontalizadas, nas quais quem tem a função de falar tem também o dever de ouvir.
Nas escolas, por exemplo, qualquer aluno com um celular nas mãos pode hoje levantar o dedo indicador e confrontar os professores caso detecte um problema de cálculo, lógica ou veracidade histórica na lousa. Os professores descobriram assim que já não tinham o monopólio do conhecimento.
Mas, passado o impacto dessa nova configuração de forças, ninguém imagina que um estudante que viu no YouTube a lista das dez maiores cidades do mundo esteja pronto para dar aula de geografia. Deixar a mola expandir, nesse caso, foi o recurso necessário para que ela voltasse naturalmente ao seu ponto de equilíbrio, sem ser reprimida.
Tudo se complica quando essa nova configuração chega até os corredores da Igreja Católica, onde ainda se rezava em latim até outro dia.
Dias atrás, um padre de uma igreja em Jacareí (SP) decidiu falar sobre intolerância em sua homilia, mas cometeu o “pecado” de citar Marielle Franco, vereadora metralhada em uma via pública no Rio de Janeiro, em 2018, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips, mortos neste ano em uma emboscada na Amazônia.
Uma devota formada no seminário de filosofia e teologia no WhatsApp resolveu interromper a fala aos gritos — e o que se viu passou longe de reeditar a luta do século entre Ratzinger e Habermas na Baviera, em 2004.
“O senhor não vai falar de Marielle Franco dentro da casa de Deus. O senhor não vai falar de Marielle Franco, uma homossexual, uma envolvida com o tráfico de drogas, o senhor não vai falar de Marielle Franco dentro da casa de Deus. Uma esquerdista do PSOL, uma homossexual, que quer a ideologia de gênero dentro da escola das crianças”, gritou a mulher.
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Quem ali tinha olhos para ver, ouvidos para ouvir, e celular para gravar entendeu, pelo exemplo prático, a noção de intolerância de que falava o sacerdote e a palavra de Deus.
A compaixão e o amor ao próximo tão citados no Evangelho eram metralhados, aos olhos do Santíssimo, pela intransigência de quem já não ouve o padre, o bispo ou o papa porque colocou a verdade do WhatsApp, e não de Cristo, acima de todos.
Nesse tiroteio no escuro, a verdade é quase sempre a primeira a ser alvejada, como descobriu tragicamente o padre interpretado por Aldo Fabrizi em “Roma, Cidade Aberta”, clássico de Roberto Rossellini sobre a ocupação nazista na capital italiana.
Marielle não tinha envolvimento com o tráfico de drogas e não queria “ideologia de gênero dentro das escolas”.
Mas era nisso que a fiel acreditava. E entre ela e sua verdade não existe mediação — nem que Jesus voltasse à terra era capaz de livrá-la da gosma do ódio e da incompreensão vendida a ela como projeto político. Pobre Cristo: era capaz de ser crucificado novamente se voltasse à Terra com sua mensagem de paz e justiça social.
Cenas do tipo têm se proliferado pelas igrejas no país. Outro dia um padre foi hostilizado no meio da missa, no interior do Paraná, por dizer que “o Deus da vida nunca vai pactuar com as forças da violência”. Pra quê? Uma fiel levou a palavra para um terreno arenoso, cheio de espinhos, e viu nascer ali uma propaganda velada ao aborto e à tal “ideologia de gênero”.
As abordagens mostram a encruzilhada de uma Igreja de mais de 2000 anos hoje sob ataques alimentados pelos dispositivos eletrônicos que deixam qualquer beato mal-educado e mal-informado do jeito que o Tinhoso gosta. Outras denominações entenderam que era impossível vencer a concorrência e se aliaram a ela.
Muitos, sem qualquer pudor, já enviam de dentro de templos mentiras sobre fechamento de igrejas e apologia a armas e intolerância.
Na Bíblia tem lado os que se identificam com o pai da mentira. Era um prenúncio (uma profecia?) do desafio que é, em 2022, dialogar com quem botou a palavra do Zap acima do próprio padre e agora quer ensiná-lo a rezar a missa.
Se prestasse atenção no Evangelho daquele domingo (16), a fiel indignada com a lembrança das vítimas assassinadas pelas injustiças mundanas talvez saísse da igreja com a alma alimentada pela leitura de Lucas, capítulo 18, versículos 1 a 8. “Quando o filho do homem vier, encontrará fé aqui na terra?”.
Eram as palavras finais da leitura mais importante daquele domingo, Dia da Ciência e da Tecnologia e também o Dia Mundial da Alimentação.
Celebrava-se também o dia de São Geraldo Majela, padroeiro das pessoas acusadas falsamente, e de Santa Edwiges, protetora dos pobres e endividados.
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