Grávida de gêmeas siamesas desabafa após aborto negado: "Vou gerar por nove meses para pegá-las sem vida nos braços". Médicos descobriram em consulta que fetos desenvolveram um terceiro pulmão, além de compartilharem outros órgãos. Mãe também corre risco de vida
Agência Globo
Com 30 semanas completas de gestação, a merendeira Lorisete dos Santos, de 37 anos, teme pela própria vida e por talvez precisar esperar o nono mês para dar à luz gêmeas siamesas que podem nascer sem vida, segundo médicos que acompanham o caso. Durante consulta realizada nesta quinta-feira em Porto Alegre, a cerca de 470 quilômetros de São Luiz Gonzaga, cidade em que mora com o marido e os dois filhos, de 15 e 4 anos, ela foi avisada de que os fetos haviam desenvolvido um terceiro pulmão. A gravidade da situação causa ainda mais ansiedade na espera pela quinta e última tentativa de interromper legalmente a gravidez, junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Segundo laudo médico, as gêmeas da paciente são unidas por um tronco único e duas cabeças. Na região do tórax, elas compartilham os pulmões. Foi observado ainda dois corações muito próximos que dividem a mesma artéria aorta. Na região abdominal, os fetos apresentam um único fígado e dois estômagos, além de uma mesma bexiga e dois rins.
“Portanto, devido ao fato de haver um tronco único e o compartilhamento de uma série de órgãos nobres, a separação dos gêmeos após nascimento se torna inviável e o caso foi considerado incompatível com a vida pelos especialistas em medicina fetal do nosso hospital. Nos casos em que a gestação prossegue é frequenta o aparecimento de complicações como polidrâmnio (aumento do líquido amniótico), somando-se ao fato de a paciente já ter realizado cesarianas prévias, o risco de uma ruptura uterina com o prosseguimento da gestação fica potencializado. Além disso, a manutenção da gestação aumenta o risco da paciente desenvolver complicações sérias como doença hipertensiva (hipertensão específica da gestação) e diabetes gestacional. Portanto, a continuidade da gestação, por si só, determinar um risco potencial à saúde materna”, concluiu o laudo.
Devido às condições raras da gestação, Lorisete diz sentir muitas dores na barriga e foi afastada do trabalho devido ao acúmulo de líquido na placenta. Abalada, a merendeira conta que ela e o marido, Marciano da Silva Mendes, de 37 anos, não planejaram comprar enxoval, pois confiam no diagnóstico dos médicos de que as meninas não sobreviverão fora do útero.
“Os médicos ficaram assustados quando me contaram da gravidade da situação e me disseram que, caso elas nasçam vivas, não sabem como agir devido à existência de três pulmões. Eu não sei se acredito mais que consiga o aborto legal a tempo, vou gerar minhas filhas por nove meses para pegá-las sem vida nos braços”, relata Lorisete.
Desempregado, Marciano vivencia junto a esposa o drama de ter que percorrer mais de 400 quilômetros ao menos duas vezes ao mês para realizar exames. Além da tristeza pela condição das gêmeas, ele teme pela vida de Lorisete, com quem é casado há 17 anos. “Eu temo à Deus, mas é muito difícil a nossa situação. Não sei como vai ser quando ela for internada para dar à luz”.
Caso é analisado há um mês
A angústia de Lorisete já dura pouco mais de um mês. Após ouvir dos médicos que a situação de seus bebês era bastante delicada e que poderia acabar morrendo durante o parto, ela procurou a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul no último dia 8 de setembro. No dia 12, a primeira ação pedindo a interrupção da gravidez, por risco à vida da paciente, já era movida no Tribunal de Justiça do RS. O pedido foi indeferido.
O juiz Kabir Vidal Pimenta da Silva, da Vara Criminal da Comarca de São Luiz Gonzaga, em sua decisão, destacou casos veiculados na imprensa onde médicos conseguiram realizar partos de gêmeos siameses e separá-los com sucesso, e argumentou que só por estar grávida a mulher já estaria correndo um risco. O magistrado também acrescentou que o caso não se enquadra na lei do aborto legal porque “não há comprovação efetiva de risco iminente e concreto à vida da gestante”, apesar de a defesa afirmar o contrário.
Além do risco à gestante, o defensor público Andrey Melo, que acompanha o caso, apontou que a gestação da merendeira é análoga a de bebês anencéfalos — quando o embrião não desenvolve o cérebro e o cerebelo. A anomalia é uma das condições em que o aborto legal é permitido no Brasil. Hoje, o aborto legal é direito garantido em casos de risco à vida da gestante, sem importar o tempo gestacional. Além disso, o procedimento é autorizado quando a gravidez é proveniente de violência sexual e, também, quando é constatada anencefalia fetal — por decisão do STF, desde 2012. Teoricamente, pode ser realizado sem a necessidade de autorização judicial.
MPF enviou parecer favorável ao aborto
No processo, foi anexado um parecer da subprocuradora-geral da República, Maria Caetana Cintra Santos, onde ela afirma que, analisados os exames apresentados, revela-se urgente a necessidade de interromper a gravidez.
“Não se está a desmerecer a vida intrauterina e o direito do nascituro. Porém, a eventual criminalização do aborto em casos como dos autos, em que as instâncias precedentes não analisaram o pleito, seja pela complexidade da matéria, seja por supressão das instâncias, acaba por violar diversos direitos fundamentais da mulher, em especial o seu direito à vida, exposto pela gravidez de risco, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade”, diz a subprocuradora-geral no ofício.
“Não se está a desmerecer a vida intrauterina e o direito do nascituro. Porém, a eventual criminalização do aborto em casos como dos autos, em que as instâncias precedentes não analisaram o pleito, seja pela complexidade da matéria, seja por supressão das instâncias, acaba por violar diversos direitos fundamentais da mulher, em especial o seu direito à vida, exposto pela gravidez de risco, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade. Diante do exposto, manifesta-se o Ministério Público Federal pelo provimento do agravo regimental interposto, para conceder a ordem pleiteada”, conclui.
Demais instâncias negaram aborto
Para tentar aprovação do procedimento junto às demais instâncias, o advogado Andrey Melo, entrou com pedidos de habeas corpus no próprio TJ-RS e, em seguida, mesmo sem esgotar os recursos na 1ª instância, foi ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), pedindo liminar que autorizasse a realização do procedimento. Eles foram negados e o ministro Jorge Mussi, do STJ, disse entender que um aborto fora dos padrões legais estabelecidos necessitava de “melhor exame de provas” apresentadas pela defesa no TJ-RS.
A 2ª turma do Supremo Tribunal Federal (STF) também negou, por maioria, dar prosseguimento a um recurso de habeas corpus que daria autorização a um pedido de aborto legal feito pela defesa. A decisão foi tomada em sessão virtual, nesta quinta-feira (13), onde além do relator, o ministro André Mendonça, os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes também votaram contrários ao pedido. O ministro Edson Fachin foi voto vencido.
“Decidimos entrar com um habeas corpus após o juiz negar o alvará em primeira instância, porque é a saída jurídica mais rápida. Todas as instâncias, incluindo o TJ-RS, STJ e STF afirmam que o habeas corpus não é válido nessas condições, mas ele é, sim, um meio jurídico em casos extremos, que pode ser usado para contornar situações graves como essa. Esse é o único remédio para que ela consiga o aborto antes do nascimento, mas tememos que a Justiça falhe com a Lorisete”, afirma o advogado da mulher, Andrey Melo.
De volta ao TJ-RS, os defensores públicos aguardam ainda por mais uma decisão, que deve ser publicada ainda nesta quinta-feira, sobre o pedido de habeas corpus para realização da interrupção da gravidez.