A imagem mais marcante do ano
A cena, retirada de um vídeo, foi subestimada até agora como imagem capaz de resumir o Brasil. Esse é o resumo, mas a cena é bem mais do que isso
Moisés Mendes*, Extraclasse
Esta cena, retirada de um vídeo, foi subestimada até agora como imagem capaz de resumir o Brasil imerso no pântano do fascismo. Uma mulher tenta conter um bandido. Esse é o resumo, mas a cena é bem mais do que isso.
A mulher ergue um distintivo de policial. O homem, um guarda penitenciário, aponta um revólver. São os segundos que antecedem o assassinato do guarda municipal Marcelo Arruda.
Foi no dia 9 de julho deste ano em Foz do Iguaçu. O assassino é o bolsonarista Jorge Guaranho. Quem tenta detê-lo e o enfrenta é Pamela Silva, mulher de Marcelo.
A Globo, os jornais, as rádios, os sites, os blogs e os palpiteiros disseram durante dias que Pamela havia ido até o carro buscar alguma coisa, quando percebeu que Guaranho retornava ao clube onde estavam.
E repetiram durante dias que ela pegara e erguera alguma coisa. Repetiam a desinformação, quando já se sabia que a moça não tinha arma e nada que pudesse ferir ou matar. Tinha um distintivo.
O que chamavam antigamente de insígnia. Um emblema, um símbolo. Pamela ergueu um símbolo da lei e da autoridade para tentar conter o homem que iria matar seu marido.
A posição dela é de policial, a postura firme, a mão estendida na direção do bandido. É uma servidora treinada para impor sua força real e simbólica.
O homem a enfrentou, atirou, entrou no salão. Pamela deu um empurrão no assassino, mas não o suficiente para impedir o crime.
Um detalhe relevante. É Pamela quem, antes da ameaça do homem com o revólver, aponta o distintivo na direção do agressor. O distintivo é sua arma e seu escudo. Ela sabia que o objetivo dele era matar Marcelo.
Não funcionou, mesmo que o sujeito também fosse um servidor público da área da segurança, porque as índoles dos dois não convergem.
↗ A tese sobre a violência ‘abstrata’ de Bolsonaro
O distintivo de Pamela é a expressão do Brasil das instituições subjugadas pelo bolsonarismo, por omissão, ou por indiferença, ou por acovardamento.
O agressor é a representação do armamentismo e da violência por alguém que usa em seu favor (para resolver a questão pessoal de uma desavença política) o privilégio de ter uma arma.
Uma insígnia institucional vale pouco em meio ao avanço da extrema direita, em quaisquer circunstâncias.
O fascismo avançou porque as autoridades, em todas as instâncias, foram dominadas, mesmo que apenas parcialmente.
O bolsonarismo amordaçou Ministério Público, polícia e Judiciário e comprou o Congresso. Os que resistem, e Pamela é um exemplo, são a exceção num país resignado e com medo.
É esclarecedora a cena em que, pouco antes de tentar conter o bandido, a policial conversa com quem está no salão e parece dizer: eu vou resolver.
Ela é ali a autoridade, a polícia, a presença do poder de Estado. Não adiantou. O homem continuou avançando, certo da imposição do medo e da impunidade.
Assim funciona o fascismo. O assassino diz agora estar com amnésia. Não se lembra de nada do que aconteceu.
Todos nós sabemos, com roteiro completo, o começo e o desfecho do crime que ele cometeu. Essa imagem da foto, para não ser esquecida, é a expressão cruel dos nossos duelos perdidos até agora contra os fascistas.
↗ Responsável por câmeras de clube onde petista foi assassinado é encontrado morto
Pode mudar, se as instituições tiverem a valentia de Pamela. Mas não mudarão se, mesmo com o fim do horror, as altas autoridades com insígnias não tiverem o destemor da policial que não conseguiu salvar o marido. Mas tentou bravamente.
*Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre. Foi colunista e editor especial de Zero Hora. Escreve também para os jornais Extra Classe, Jornalistas pela Democracia e Brasil 247. É autor do livro de crônicas ‘Todos querem ser Mujica’ (Editora Diadorim)
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