A Gal, sempre tão delicada ao se expressar, nos deixou de solavanco. Sem qualquer preparação ou espaço para sofrimento prévio. Bateu forte no coração de todos. Fez o país parar alguns minutos e lembrar que a arte é expressão humana. Por isso mesmo, jamais pode soar estranho ao ser humano o que é libertador
Anderson Pires*
Nem sabia que era fã da Gal. A forma delicada e sedutora que sempre se apresentou parecia não me invadir. Nunca parei para escutar a Gal, mas sempre esteve presente. Impossível um dia de música que não tenha algo cantado por ela. Contudo, sempre remetíamos a Caetano, Gil, Chico, João Gilberto e tantos dos maiores compositores desses país.
A Gal sempre esteve lá, ocupando um espaço enorme sem invadir. Embora sempre exuberante, não dimensionava o espaço que ocupava. Talvez porque seu lugar sempre foi no palco. Não foi figura de palanques, apesar de ser uma militante. Como ela disse certa vez, sua intervenção era mais estética que política.
Porém, não lhe faltou coragem para se manifestar quando necessário. Deixou clara sua inconformidade com a ditadura. Resistiu em representar o tropicalismo quase que solitária, depois que Caetano e Gil foram para o exílio, após serem presos pelos militares no Brasil.
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Se não era figura carimbada em manifestações, cantou sem levantar a voz em Divino e Maravilhoso, alguns dos versos mais fortes e emblemáticos contra a ditadura. Gal se vestia de liberdade, expressava muito do Brasil plural, marcante na sua crença e generosa com tantos.
Mas sua arte sempre foi maior. Seu jeito quase blasé quando tratava de questões diversas, aliviava o peso dos temas. Recentemente, em uma entrevista durante a pandemia, ela disse: “eu sou fora Bolsonaro”. De forma tão despretensiosa, mas extremamente esclarecedora. Era como dizer o que deveria ser óbvio para todos: eu sou humana. Não tem como corroborar com esse cara.
Gal guardava energia para cantar e o sorriso que enfeitiçava todos. Sua arma era viver a artista, que de tão marcante nas suas interpretações foi empossada pelos maiores nomes da música brasileira como proprietária das suas composições.
Impossível não lembrar de Vapor Barato, Vaca Profana, Pérola Negra, Baby, Brasil, Sua Estupidez e tantas outras como não sendo obras de Gal. Nunca pensei como seria o Brasil sem sua voz. Certamente, me faltou sensibilidade. Não enxerguei para além da militância nos moldes formais da política. A dureza que tem sido viver em nosso país paralisa muitos dos sentimentos.
A Gal, sempre tão delicada ao se expressar, nos deixou de solavanco. Sem qualquer preparação ou espaço para sofrimento prévio. Bateu forte no coração de todos. Fez o país parar alguns minutos e lembrar que a arte é expressão humana. Por isso mesmo, jamais pode soar estranho ao ser humano o que é libertador.
*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.
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