O Lula venceu, e agora?
Reestabelecer a democracia será um desafio gigantesco. Mas também temos que resgatar limites humanitários e civilizatórios. Os desafios como gestor serão grandes
Anderson Pires*
Lula é parte da história do Brasil. Certamente, é o líder mais longevo que já tivemos. Em 1978, quando começou a despertar atenções e medos, ninguém poderia imaginar que aquele metalúrgico seria o político com maior legado popular no país e, sem dúvida alguma, o mais respeitado internacionalmente.
Talvez as pessoas no Brasil não dimensionem o que é a história do Lula. Afinal, é figura comum. Nos últimos 40 anos, praticamente todos os dias é parte do noticiário brasileiro, intercalado por momentos épicos e dramáticos. Apesar de toda sua relevância, deixou de ser novidade.
Se formos filtrar nas grandes nações, é provável que só Mandela tenha vivido situações tão marcantes entre alegrias e sofrimentos. A luta contra o racismo que travou assumiu proporções mundiais, por ser uma questão humanitária que extrapola nações e disputas políticas. Assim como Lula, foi preso injustamente e, depois de libertado, eleito presidente da África do Sul.
Quando alguém fora do Brasil escuta tudo que Lula passou desde criança até chegar à presidência da República, sucedido por uma série de ataques jurídicos que visavam lhe matar politicamente e favorecer grupos empresariais externos, com a quebra da nossa indústria petroleira e de engenharia, custa a crer que os ataques que o levaram à prisão foram capitaneados por um juiz e procuradores federais, que conduziram processos de forma ilegal, parcial e sem provas materiais.
A trama toda só foi completamente desmascarada após um hacker vazar as conversas entre procuradores, auditores, advogados e o juiz da Operação Lava Jato. Parece roteiro de filme de ficção, mas foi exatamente assim. Porém, o estrago já estava feito, a prisão de Lula possibilitou a eleição de Jair Bolsonaro para presidente e o Brasil caminhou para um período de retrocessos diversos nos campos político, econômico e social.
Chegamos em 2022, a chance de Lula escrever um novo capítulo da sua história
Bolsonaro não tinha mais a Lava Jato, nem uma facada para se esconder durante a campanha. A disputa que deveria ter acontecido quatro anos atrás virou realidade.
Quem achava que seria um passeio de Lula, não conhece a direita conservadora brasileira, nem o que são capazes de fazer para ganhar uma eleição. Se for somado tudo que foi feito com uso da máquina pública para se ganhar votos, temos uma conta perto dos 100 bilhões de reais. Foram auxílios, benefícios, isenções, emendas e até operações com uso de instituições do Estado, a exemplo da Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, com intuito de dificultar o voto em Lula e favorecer Bolsonaro.
Os flagrantes de assédio eleitoral praticados por empresários bolsonaristas foram inúmeros. Remeteram a época que o voto de cabresto no Brasil era prática comum. Foram muitos vídeos e áudios com ações de patrões coagindo seus funcionários a votarem na reeleição do presidente. Tiveram também prefeitos que ameaçaram beneficiários do Auxílio Brasil de perderem os recursos caso Lula fosse eleito. Para completar, a fábrica de fake news agiu da maneira mais pesada já vista. Torraram milhões para acuar quem votaria em Lula e passar a imagem que eram ampla maioria entre os eleitores.
Pois é, mas, apesar de tudo isso, Lula venceu. O que provavelmente deverá ser o capítulo final da trajetória política do retirante de Caetés. Esse novo mandato assume uma proporção maior que a esperada para um presidente. O desafio é bem maior que fazer uma boa gestão num cargo público. O Brasil que Bolsonaro desenhou nesses quatro anos está impregnado de desumanidade e medo.
Ninguém imaginaria que depois de tantos avanços que tivemos em pautas de cunho humanitário após a ditadura militar, que voltássemos a ter posicionamentos explicitamente racistas, homofóbicos, machistas, contra a liberdade de credo, com propagação de absurdos como kit gay, banheiro unissex e ideologia de gênero. Como parte da estratégia de criar um exército antilula, investiram no medo e preconceito como armas para aglutinar setores das classes média e alta.
Contraditoriamente, os mais suscetíveis a essa investida foram os de maior acesso a educação e informação. Muitos deles de origem europeia, o que deveria lhes servir como referencial histórico para perceberem que o cenário construído por Bolsonaro não é verdadeiro e repete táticas vistas em outros momentos. Vale também ressaltar, que em outro campo, tivemos uma ação incisiva de pastores evangélicos propagando muitas das falsas pautas do bolsonarismo, mas de fácil eco no público das igrejas que usam do cristianismo distorcido para convencimento e, também, geração de medo.
E onde está a contradição?
Todos esses movimentos que transformaram os bolsonaristas em quase metade da população brasileira, já foram usados em outros países no passado e aqui também. Não precisamos ir muito longe, mas a base da popularidade de Hitler foi construída com propaganda nazista que acusava judeus de serem uma praga que corroía valores e a economia alemã. Usavam símbolos como Deus, pátria e família, da mesma forma que vemos hoje no Brasil. Um dos filmes mais veiculados nos cinemas da Alemanha Nazista associava judeus a ratos comendo a bandeira alemã, numa alusão que eram responsáveis pelos problemas do país e, como uma praga, deveriam ser exterminados.
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Bolsonaro usou das mesmas práticas, com um poder de propagação muito maior, pelas facilidades tecnológicas que temos hoje. O medo está presente em tudo. Seja no que diz respeito a questões econômicas, com afirmações ridículas de que o Brasil caminhará para situação semelhante à Venezuela, até riscos de medidas de expropriação de bens. Imagine, alguém pensar que Lula conduziria o país para o isolamento econômico como Nicolás Maduro e tomaria os imóveis dos brasileiros. Esquecem que foi no seu governo que as relações internacionais mais prosperaram, a construção civil mais cresceu, quitamos a dívida externa e nos tornamos donos de um banco de fomento internacional concorrente do FMI, o Bando dos BRICS. Isolado e sem respeito do mundo estamos hoje, por todas as políticas equivocadas de Bolsonaro.
Mas a cultura do medo implantada pelo bolsonarismo não ficou só em questões econômicas. Foi além e agiu de maneira intensa para colocar gente contra gente. Bolsonaro propagou o ódio do rico pelo pobre, do heterossexual pelo homossexual, do branco pelo negro, do sulista pelo nordestino, do evangélico pelo umbandista, além de difundir a violência como se fosse um instrumento libertador, com proliferação de armas, muitas vezes usadas para crimes de preconceito.
O que foi o kit gay e agora o banheiro unissex? O que se quer quando divulgam fotos de crianças de três anos de idade beijando no rosto e dizem que estavam sofrendo doutrinação da ideologia de gênero? Qual a intenção de marginalizarem moradores de comunidades pobres e associá-los ao adversário político? Em todas essas ações, a intenção é utilizar o medo como aglutinador. Tarefa fácil entre conservadores e segmentos sociais que estão espremidos economicamente. Assim, acreditam que a solução está em tirar de quem tem pouco e não em dividir dos que têm muito. Afinal, a propriedade é um valor conservador e muitos defendem até o que não têm.
A missão de Lula será de redefinir esses padrões. Não será fácil mostrar para o pequeno empresário que sua realidade é mais próxima dos seus funcionários do que do banqueiro. O sulista de origem alemã precisará entender que o nordestino não é seu concorrente e que, ao contrário do que a xenofobia propaga, faz suas escolhas políticas por razões objetivas, com senso crítico, sem qualquer lógica de confronto regional.
O ódio provocado pelo medo que o bolsonarismo propagou só serve para ampliar desigualdades, enfraquecer instituições e gerar instabilidade. Esse cenário serve a quem ganha com a concentração de renda, com a especulação e o enfrentamento entre pessoas que fazem parte da mesma classe e que deveriam estar juntos.
Reestabelecer a democracia será um desafio gigantesco. Mas também temos que resgatar limites humanitários e civilizatórios. Os desafios como gestor serão grandes. A escolha das prioridades pode gerar novos conflitos, já que os medos ainda estão muito latentes. A pauta econômica gera muita expectativa. Mas em todas as ações o maior desafio será combater preconceitos que foram reacendidos com muita força. Quebrar esse ciclo de ódio, de gente contra gente, trabalhador contra trabalhador, certamente, será a parte mais difícil.
*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.
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